terça-feira, 6 de setembro de 2011

A Literatura Infantil sob a ótica de Walter Benjamin


No ensaio Livros infantis antigos e esquecidos*, Walter Benjamin ressalta um lado nada simpático da bibliofilia, frequentemente escamoteado. Diante da pergunta "por que você coleciona livros?", o que um adepto dessa atividade diria se induzido à autorreflexão? Escreve o pensador alemão:

"Como seriam interessantes as respostas, pelo menos as sinceras! Pois apenas os não iniciados poderiam crer que não existe aqui o que esconder ou racionalizar. Arrogância, solidão, amargura - muitas vezes esse é o lado noturno de muitos colecionadores cultos e bem sucedidos. Toda paixão revela de vez em quando os seus traços demoníacos, e nada confirma tão cabalmente essa verdade como a história da bibliofilia".

Mas não é esse traço da paixão de colecionar que será ressaltado por Benjamin ao analisar o conjunto de livros para crianças pertencente a um contemporâneo seu, Karl Hobrecker (nem a bibliofilia será o assunto principal dessa postagem, mas sim as opiniões do ensaísta sobre a Literatura Infantil).

É necessária certa predisposição de espírito para apreciar adequadamente uma coleção desse gênero. Segundo Walter Benjamin, o indivíduo precisará permanecer "fiel à alegria que experimentou quando criança, ao ler esses livros". E embora haja o interesse de preservar belos exemplares, os chatos e meticulosos sentir-se-ão deslocados: "é uma boa coisa que a pátina depositada nas folhas por mãos infantis pouco asseadas mantenham à distância o bibliófilo esnobe".

Benjamin nos informa que, de acordo com Hobrecker,

"o livro infantil alemão nasceu com o Iluminismo. Era na pedagogia que os filantropos punham à prova o seu grande programa de remodelação da humanidade. Se o homem é por natureza piedoso, bom e sociável, deve ser possível fazer da criança, ente natural por excelência, um ser supremamente piedoso, bom e sociável. E como em todas as pedagogias teoricamente fundamentadas a técnica da influência pelos fatos só é descoberta mais tarde e a educação começa com as admoestações problemáticas, assim também o livro infantil em suas primeiras décadas é edificante e moralista, e constitui uma simples variante deísta do catecismo e da exegese".

Ou seja, desvenda-se, na Alemanha iluminista, o mesmo que se percebe em outros lugares do mundo, mesmo em outras épocas: o "pecado original" da Literatura Infantil, cujo nascimento deixou-a no meio do caminho entre a pedagogia e a expressão artística (e, muitas vezes, a segunda é suplantada pela primeira, com resultados ruins).

O dono da coleção e também o ensaísta criticam esses textos excessivamente didáticos. "Mas" - diz  Benjamin - "essas falhas, já superadas, são insignificantes se comparadas com os equívocos que hoje estão na moda graças a uma suposta 'empatia' no espírito da criança: a jovialidade desconsolada das histórias em versos e as caretas hilares desenhadas por pretensos 'amigos das crianças' para ilustrar essas histórias"

E o pensador alemão acaba se metendo a psicólogo:

"A criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas não explicações infantis, e muito menos as que os adultos concebem como tais. A criança aceita perfeitamente coisas sérias, mesmo as mais abstratas e  pesadas, desde que sejam honestas e espontâneas [...]"

Cabe a pergunta: para se trabalhar com a Literatura Infantil é necessário algum conhecimento da psicologia infantil? Já respondendo, acho que sim, como é necessário em qualquer outro campo de atuação ligado à infância. E, preciso confessar, ressinto-me deste conhecimento.

Benjamin critica o preconceito decorrente da crença de que as crianças são seres cuja existência é "incomensurável à nossa"; faz concisas (e preciosas) análises sobre o conto de fadas e as fábulas; e fala com brilhantismo sobre o papel das ilustrações nesse tipo de produto editorial. Deixarei, porém, a discussão destes tópicos para outra oportunidade.

Quero destacar um último excerto, encontrado no final do ensaio, e que me parece atualíssimo (observo que o texto de Benjamin foi publicado em 1924). Ao falar de "abusos menos visíveis" presentes até na Literatura Infantil menos impregnada do "pedagogismo" extremo, o ensaísta nota certa perda de conteúdo ético:

"Liberta dessa dimensão ética [verificável mesmo nas obras mais "pedagogizadas" do século XVIII], tal literatura passou a depender dos estereótipos da imprensa diária. A cumplicidade secreta entre o artesão anônimo e a criança desaparece; escritores e ilustradores se dirigem cada vez mais à criança através da mediação ilegítima das suas próprias preocupações e das modas predominantes. A atitude sentimental, apropriada não a criança, mas à concepção pervertida que dela se tem, adquire nas imagens direito de cidadania. O formato perde sua nobre discrição, tornando-se incômodo".

E isso não vale para diversos outros produtos - música, cinema, objetos, etc. - voltados para a infância? Além disso, não revela a assimetria típica do gênero Literatura Infantil, como já discuti em outra postagem?

Na próxima semana, falo das minhas impressões sobre o Salão do Livro Infantil e Juvenil de Minas Gerais.
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* BENJAMIN, Walter. Livros infantis antigos e esquecidos. In: _______________. Magia e técnica, arte e política.: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 235-243 [tradução de Sergio Paulo Rouanet]

BG de Hoje

Ainda bem que encontrei este vídeo: foi a primeira apresentação do grupo vocal BR6 a que pude assistir, interpretando Chovendo na roseira. Ah, e tinha que ser no imprescindível programa Sr. Brasil (TV Cultura), apresentado pelo "patrimônio" Rolando Boldrin.