sábado, 22 de fevereiro de 2020

Como são calhordas as classes médias e a alta burguesia brasileiras


O blog está bem paradão, eu sei.

Como disse antes, porém, após tanto tempo batendo ponto neste microscópico espaço internético, não tenho planos de desistir do Besta Quadrada tão cedo.

Enquanto não consigo estabelecer a rotina ideal de leituras e postagens para as atualizações almejadas, vou remediando a "paradeza" de um jeito ou de outro.

A essa altura dos acontecimentos (e dado o volume de declarações pavorosas proferidas constantemente por membros do atual governo federal), já virou notícia velha a deplorável fala do Ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre um suposto fluxo de empregadas domésticas brasileiras que conseguiriam viajar para a Disneylândia quando o câmbio estava mais favorável ao real. Matreiro, Guedes dissera que o dólar alto é "bom para todo mundo". E completou, destilando toda a sua bile preconceituosa: "Todo mundo indo para Disneylândia, empregada doméstica indo para a Disneylândia. Uma festa danada".

Devido à repercussão negativa, o "posto Ipiranga" de Bolsonaro pediu desculpas posteriormente. Contudo, é obvio, não foi muito convincente. Afinal, quem consegue acreditar que um representante de banqueiros - ainda mais um representante de banqueiros brasileiros - reconheceria a dignidade de uma empregada doméstica e a enxergaria como sujeito de direitos, inclusive o direito ao lazer (por exemplo, viajando para o exterior, caso seja possível para ela)?

Pode ser notícia velha, mas a fala de Paulo Guedes é exemplar da mentalidade típica da classe dominante brasileira - e também das classes médias nacionais, que (sabe de nada, inocente!) julgam-se mais próximas dos ricos do que de nós, pobres. Razão pela qual a exclusão e a desigualdade social dificilmente serão mitigadas neste país. Para essa gente, os pobres deveriam reconhecer o "seu lugar", para melhor servir como mão-de-obra barata (quase semi-escrava nalguns casos). Para essa elite e essas classes médias, é essencial marcar e manter bem explícitas as distinções de status socioeconômico. A esse respeito, a série Os Santos, do quadrinista e roteirista Leandro de Assis (cuja primeira tira está reproduzida lá no início da postagem) e o esquete TED Talk, do canal humorístico Porta dos Fundos, são bastante ilustrativos (veja o vídeo abaixo):



E pra quem pensa que a fala do Ministro da Economia não tem nada de mais, sugiro a leitura desta excelente reflexão do cientista político Luis Felipe Miguel, professor e pesquisador da UnB. (NOTA: O texto foi publicado originalmente no perfil de Facebook do autor. Como, entretanto, não sou mais usuário dessa mídia social - felizmente! -, cheguei a seu conteúdo através do Diário do Centro do Mundo).


DECLARAÇÃO DE GUEDES É CHOCANTE, MAS NÃO TEM NADA DE SURPREENDENTE. 

Luis Felipe Miguel

O Brasil tem 7 milhões de trabalhadores domésticos – em geral, trabalhadoras. É mais do que qualquer outro país do mundo. E é também um emblema da nossa desigualdade social.

O trabalho doméstico, por suas próprias características, tende a ser pouco formalizado, com responsabilidades e horários definidos de maneira vaga. Isoladas entre si, as trabalhadoras têm dificuldade para se organizar em defesa de seus direitos.


A classe média vê a contratação da empregada doméstica como um dos elementos que definem sua própria posição. Nas carreiras profissionais competitivas, espera-se que as atividades domésticas estejam delegadas a outros – é quase um requisito, como percebem, com espanto, muitos estrangeiros que vêm trabalhar no Brasil.

A maior parte dessa classe média, porém, tem escassa condição de pagar um salário adequado à sua empregada doméstica. A difusão do trabalho doméstico remunerado leva a uma situação em que esse grupo, composto também quase todo por assalariados, se coloca objetivamente na condição de patrões, vendo direitos trabalhistas e garantia de condições materiais mínimas para quem trabalha como ameaças a seus interesses.

Não é à toa que a emenda constitucional que estendeu direitos aos trabalhadores domésticos foi um elemento central para produzir a revolta da classe média brasileira contra a presidente Dilma Rousseff.


Ao mesmo tempo, a empregada doméstica aparece, no discurso da nossa elite, como encarnação perfeita do “inferior” em relação a quem as distâncias sociais devem ser mantidas.


A “empregada doméstica no aeroporto” simbolizava a desordem das hierarquias que as (tímidas) políticas compensatórias do período Lula e Dilma anunciavam.


Em 2011, Delfim Netto – que foi o czar da economia durante a ditadura militar, mas que então se acomodava alegremente na posição de conselheiro dos governos petistas – observou a decadência do trabalho doméstico no Brasil com uma declaração inesquecível: “Há uma ascensão social visível. A empregada doméstica, infelizmente, não existe mais, ela desapareceu. Quem teve este animal, teve. Quem não teve, nunca mais vai ter”.

Depois, ele pediu desculpas. Mas sua frase é uma janela aberta para a mentalidade da elite brasileira – e, em particular, como ela vê a base da pirâmide social.


Delfim se referia a um momento em que, graças à expansão do emprego, muitas trabalhadoras domésticas abandonavam a atividade em favor de postos de trabalho no comércio, na indústria ou nos serviços, que podiam até não pagar mais, mas lhes garantiam maior prestígio social e relações laborais mais impessoais.


Isso mudou em seguida, com a política de ajuste anti-povo iniciada no segundo mandato de Dilma, aprofundada por Temer e levada ao paroxismo por Guedes. Desde então, o emprego doméstico, com frequência não formalizado, voltou a ganhar terreno.


A declaração de Paulo Guedes, ontem [12 de fevereiro], é chocante, mas não tem nada de surpreendente. É a marca de um governo que não tem pudor de escancarar aquilo que pensa. E de uma classe dominante que tem, como característica principal, uma absoluta alergia a qualquer forma de igualdade.


BG de Hoje

Com letras altamente politizadas, o grupo NEWEN AFROBEAT realiza uma incomum mistura musical: sons tradicionais dos povos originários do Chile com a batida que popularizou alguns artistas africanos entre o final da década de 1980 e início dos anos 2000. O resultado pode ser visto em canções como a (ótima) Come y Calla. Confira: