sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Pessimismo condensado

Memórias póstumas de Brás Cubas* é considerado por muitos o ponto de inflexão na obra de Machado de Assis, momento em que o escritor passa a produzir seus textos mais artisticamente elaborados. De fato, esse romance, publicado em 1881, ao menos do ponto de vista da forma, é estruturado de maneira nada usual, sobretudo se o compararmos a outras obras da ficção nacional da época. As constantes mudanças de ritmo na narrativa - perfeitas para seus capítulos curtos - fazem desse livro o palco ideal para algumas das mais célebres frases criadas por Machado de Assis. Roberto Schwarz (no livro Um mestre na periferia do capitalismo**), ressaltou que

"[...] a narrativa passa do trivial ao metafísico, ou vice-versa, do estrito ao digressivo, da palavra ao sinal (o capítulo à moda shandyana, feito de pontinhos, exclamações a interrogações), da progressão cronológica à marcha ré no tempo, do comercial ao bíblico, do épico ao intimista, do científico à charada, do neoclássico ao naturalista e ao chavão surrado etc. etc.."

O personagem Brás Cubas também é visto como um legítimo representante da parasitária oligarquia brasileira típica do século XIX. E é possível, como provaram Schwarz (no estudo acima mencionado) e outros críticos, fazer uma profunda análise sociológica a partir do romance.

Contudo, penso que Memórias póstumas... não deixa de ser por isso uma sensacional história sobre o egoísmo.

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Durante a leitura desse romance não é difícil constatar: Brás Cubas tem tudo para ser odiável, mas está longe de ser odioso.

A "simpatia" do narrador-personagem decorre, em grande parte, do lugar de onde provém sua narração: o pós-morte, único modo de diminuir sua hipocrisia.

O famoso último capítulo do romance consegue condensar toda a veleidade do protagonista - veleidade esta que proporciona o esquema narrativo da obra - , mas, principalmente, nos expõe seu arraigado egoísmo:

"Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplastro, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria".

A última frase - concisa, direta e impactante -, entretanto, revela ainda outro elemento: um pessimismo imenso. Porém, julgo que esse pessimismo não é do narrador - um garoto mimado na infância, bon vivant na juventude e um ocioso entediado na maturidade - e sim do próprio autor, Machado de Assis. Criador falando pela boca de sua criação. A miséria de que fala o escritor é a da espécie humana como um todo.

* ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 14 ed. São Paulo: Ática, 1990  [Série Bom Livro]

** SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 4 ed. São Paulo. Ed. 34, 2000  [Coleção Espírito Crítico]

BG de Hoje

A canção abaixo tem, em minha opinião, o mais belo solo de guitarra elétrica do rock'n'roll. A este, só consigo encontrar parecidos, no sentido da beleza, o de Mick Ronson em Moonage Daydream, de David Bowie, ou o de Kirk Hammett em One, do Metallica. Ainda assim, acho que David Gilmour, do PINK FLOYD foi perfeito nesta: Comfortbly Numb.


quinta-feira, 5 de agosto de 2010

As estranhas crianças de Henry James


"Aquilo significava que os outros, os intrusos, lá estavam. Embora não fossem anjos, ' passavam ' - como se diz em francês - e, enquanto lá permaneciam, faziam-me estremecer de medo de que dirigissem às suas vítimas mais jovens alguma mensagem ainda mais infernal ou uma imagem mais vívida ainda do que as que haviam julgado suficientes para mim".
A outra volta do parafuso - Henry James

No mês passado, na última edição da revista Conhecimento Prático: Literatura, publicou-se pequena matéria* analisando a famosa novela A outra volta do parafuso**, do escritor norte-americano (naturalizado inglês) Henry James, a partir da conceituação formulada pelo crítico literário Tzvetan Todorov sobre a Literatura Fantástica. Decidi, então, ler o texto de James e comunicar aqui minhas impressões. Antes, contudo, breve esclarecimento.

Em sua tipologia das narrativas dessa linhagem, Todorov, a partir do "estado" do leitor em relação aos fatos narrados, faz a seguinte distinção: existiria o fantástico estranho, em que se busca para estes fatos uma explicação baseada na plausibilidade racional; o fantástico maravilhoso, no qual há pleno domínio do sobrenatural sobre os acontecimentos; e o fantástico puro, cujos textos "mantém a ambiguidade até o fim, o que quer dizer também: além. Fechando o livro, a ambiguidade permanecerá". Tal é o caso de A outra volta do parafuso, de acordo com o crítico.

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Uma jovem e inexperiente preceptora torna-se responsável pela educação e cuidados de duas crianças ricas. Desloca-se para uma velha casa (alguém aí pensou em "mal-assombrada"?), na qual um "elemento inominado e inabordável" acaba tomando conta da vida das personagens. A recomendação de H. P. Lovecraft (citado na matéria acima mencionada)  é fundamental para melhor apreciar a novela: "[...] devemos julgar o conto fantástico não tanto em relação às intenções do autor e os mecanismos da intriga, mas em função da intensidade emocional que ele provoca". E, sem dúvida, a tensão e a sensação de desconforto nos seguem do início ao fim da narrativa.

Em A outra volta do parafuso, o primeiro narrador, ao atribuir a um terceiro (no caso, uma narradora) a "verdadeira" autoria do relato - feito em primeira pessoa - lança mão de um expediente comum da ficção para aumentar a verosimilhança do que é contado. E como esse recurso funciona admiravelmente para criar a atmosfera propícia de suspense e terror! Sim, estamos aqui no campo do mais puro terror, ainda que não haja nenhum episódio de violência corporal em toda a história. Menciono essa circunstância, porque, graças ao cinema industrial mais vulgar, terror tornou-se, para muita gente, sinônimo apenas da ação brutal de serial killers e outros psicopatas.

Para a difícil tarefa de obter "uma outra volta do parafuso da virtude humana comum", a protagonista da trama se vê diante de crianças cuja "beleza quase sobre-humana" e a "doçura absolutamente anormal" compõem um insólito "jogo, uma coisa estudada, uma fraude!". A presença de crianças, aliás - vistos geralmente como símbolos da inocência e da incorruptibilidade - só faz aumentar a sensação de terror.

Nesse aspecto, a propósito, a novela de Henry James me lembra narrativas cinematográficas nas quais as crianças tem papel fundamental para a história, como é o caso dos ótimos filmes O sexto sentido ( The sixth sense - direção de M. Night Shyamalan, 1999) e, principalmente, Os outros (The others - direção de Alejandro Amenábar, 2001)

Um modo extraordinário de olhar para esses pequenos seres.

* FERREIRA, Letícia. O parafuso a mais de Henry James. Conhecimento Prático: Literatura, São Paulo, n.30, jul. 2010, p. 38-41 [Editora Escala Educacional)

** JAMES, Henry. A outra volta do parafuso. In: ____________. Lady Barberina; A outra volta do parafuso. São Paulo: Abril Cultural, 1980  [tradução de Brenno Silveira]

BG de Hoje

Por enquanto, na seção, só bandas da época áurea do gênero (1965 - 1985). Abaixo, versão ao vivo de Good Golly, Miss Molly, com o vibrante CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL.


segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Arquipélago Gulag: o valor de um testemunho



"Que feche aqui o livro o leitor que espera que ele continue sendo uma acusação política.
Ah, se as coisas fossem assim tão simples! Se num dado lugar houvesse pessoas de alma negra, tramando maldosamente negros desígnios, e se se tratasse somente de diferenciá-las das restantes e aniquilá-las! Mas a linha que separa o bem do mal atravessa o coração de cada pessoa. E quem destrói um pedaço do seu próprio coração?..."

Alexander Soljenítsin - Arquipélago Gulag 


Fala-se bastante em dialética (aliás, já se falou mais; é preciso reconhecer que o momento histórico é outro). Mas, por incrível que possa parecer (ou não), o pensamento de esquerda, ao qual me alinho, tem-se recusado, muitas vezes, a utilizar esse necessário instrumento de crítica e reflexão - a dialética - quando o objeto de discussão é o chamado socialismo real ou comunismo real.

Digo isso porque, até hoje, intelectuais brasileiros, em virtude de seu posicionamento ideológico - denunciando as desigualdades sociais provocadas pelo capitalismo (denúncia, diga-se de passagem, com a qual concordo, obviamente) - deixam de condenar as violências cometidas por regimes...ahn... de "partido único". E, nesse ponto, já não concordamos . O que resulta disso? Em nome das convicções ideológicas, sacrifica-se a constatação das contradições inerentes a todos os processos históricos ou movimentos sociais e que acabam condicionando as existências individuais e/ou coletivas. Para o "bem" ou para o "mal".

Durante muito tempo, a (extinta) União Soviética, vista representativamente como o único contraponto à selvageria capitalista, foi defendida, de maneira acrítica, por milhões de pessoas em todo mundo. Descobriu-se, entretanto, que o Soviete Supremo produzira seus próprios mecanismos de selvageria...

Arquipélago Gulag*, escrito por Alexander Soljenítsin durante décadas e publicado pela primeira vez em 1973, ajuda a compreender um pouco quais são os métodos repressivos típicos adotados pelas ditaduras (qualquer ditadura). Embora Soljenítsin tenha ficado preso por "apenas" 11 anos, no final da 2ª Grande Guerra, o livro afirma que muitas das arbitrariedades e ações brutais do Estado soviético começaram bem antes da chegada de Stálin ao poder.

Em meio às "epidemias de detenção", num ambiente policialesco, de desconfiança e medo, no qual se recompensa o ato de delatar e a corrupção (contrariando a opinião imbecil de que as ações corruptas diminuem nos regimes ditatoriais), Arquipélago Gulag relata os espancamentos, torturas e maus-tratos praticados pelos famigerados "Órgãos", mas não exclui de seu texto a passividade, submissão e covardia da população em geral durante o período "contrarrevolucionário".

Para a composição da obra, Soljenítsin valeu-se, além das memórias pessoais, dos depoimentos de mais de 200 ex-detentos. Segundo o escritor, "as mais grosseiras aventuras da literatura policial e das operetas de bandoleiros foram levadas à pratica na escala de um grande Estado".

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Uma certeza vem se formando em mim, nos últimos anos: a nossa brutalidade atávica não se dissipou - e nunca se dissipará - em nenhum momento da trajetória evolutiva humana. E o exercício do poder (político, mas também econômico) é campo fértil para a crueldade e a estupidez que nos são próprias. Não custa lembrar que o livro Arquipélago Gulag descreve situações que ocorreram numa considerável porção do planeta, do Báltico aos limites com a Mongólia.

Soljenítsin faz um questionamento  válido, atualmente, para cada um de nós:

"Como surgiu essa raça de lobos em meio do nosso povo? É da nossa raiz? É do nosso sangue?
Sim, é.
Para não vestir sem motivo o manto alvo dos justos, interroguemo-nos: se a minha vida se tivesse apresentado diferentemente, ter-me-ia eu convertido num carrasco assim?
É uma pergunta terrível, se quisermos responder a ela honestamente".

Um testemunho como esse, mesmo afastado no tempo e tratando de um lugar distante, geograficamente falando, tem muito a dizer a qualquer cidadão do mundo contemporâneo.
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* SOLJENÍTSIN, Alexander. Arquipélago Gulag. São Paulo: DIFEL, 1975 [ tradução de Francisco A. Ferreira, Maria M. Llistó e José A. Seabra]

BG de Hoje

I´d love to change the world, bela canção do TEN YEARS AFTER, em seu refrão, dá o "conselho" que eu transmitiria a qualquer um (caso alguém me pedisse, é claro):

"I'd love to change the world
But I don't know what you do
So I'll leave it up to you"