terça-feira, 30 de outubro de 2018

Falou e disse...



"Se levarmos em conta que falar qualquer coisa está mais fácil, que falamos em excesso e falamos coisas desnecessárias, um novo consumismo emerge entre nós, o consumismo da linguagem. O problema é que ele produz, como qualquer consumismo, muito lixo. E o problema de qualquer lixo é que ele não retorna à natureza como se nada tivesse acontecido. Ele altera profundamente nossas vidas em um sentido físico e mental. O que se come, o que se vê, o que se ouve, numa palavra, o que se introjeta, vira corpo, se torna existência". *

* TIBURI, Marcia. O consumismo da linguagem. In: __________. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. 9 ed. Rio de Janeiro: Record. 2017. p. 134-135.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Estragado por dentro, só me resta votar. Domingo é 13!


Creio que já disse, nalguma postagem anterior, que considero Eliane Brum um dos grandes talentos do jornalismo atual. Suas colunas na edição brasileira do El País devem ser elencadas, sem nenhum exagero, entre os textos de maior qualidade da nossa imprensa. Neste período eleitoral, então, tornaram-se imprescindíveis para mim.

Numa das mais recentes - Como resistir em tempos brutos - , publicada no último dia 9, ela observou, com desgosto, que "Jair Bolsonaro, aquele que é chamado de 'coiso' nas redes sociais, ganhou esta eleição mesmo antes da votação no primeiro turno". Vitória,  nesse contexto, significa que a candidatura do PSL, mesmo tendo desprezado a discussão política, eclipsou todas as outras. As pautas reacionárias e obscurantistas de seu interesse, além de suas declarações odiosas, dominaram as conversas, tornando-se o tópico central de toda a campanha presidencial e deixando ocultos temas urgentes - como, por exemplo, combate ao desemprego, financiamento da saúde pública ou a possibilidade da implementação de reformas (entre elas, a previdenciária). ¹.

Os motivos para essa vitória nada têm de positivo: um deles me aflige particularmente:

"Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ter ganhado um número expressivo de votos no primeiro turno" - escreve Eliane Brum - "porque conseguiu mergulhar uma parte das pessoas numa paralisia amedrontada, como se estivessem estragadas por dentro. Jamais se esqueçam que a primeira vitória da opressão é sobre a subjetividade. É o que faz uma mulher cotidianamente espancada ficar calada. Ou uma mulher estuprada não denunciar o estuprador. Há algo que a amarra por dentro. É como se perdesse a voz mesmo tendo voz, perdesse a força mesmo tendo força. Esse é o efeito de ser violentada ou violentado. Vi muita gente assim no final da campanha de primeiro turno, vivendo a campanha violenta de Bolsonaro e de seus apoiadores como uma violência sobre o próprio corpo, sobre sua mente e sobre seu espírito. Mulheres, principalmente, mas também homens".

É isso. Encontro-me "numa paralisia amedrontada", como se estivesse estragado por dentro. Não serei energúmeno a ponto de comparar meu estado de ânimo ao de uma mulher que foi espancada/estuprada, pois, na condição de homem, mesmo que venha a sofrer tais brutalidades, não seria capaz sequer de conceber toda a dor e o trauma vividos por mulheres que passaram por isso. Posso dizer, porém, que a violência da cruzada bolsonarista produziu mesmo um efeito inquietante sobre minha mente e sobre meu espírito. Há quem possa querer negar, mas não tenho dúvida de que a violência - efetivada ou em potência - foi a maior marca da campanha do deputado. (Isso gera consequências deletérias. Indivíduos que se julgam ou se sentem agindo em nome de Bolsonaro têm demonstrado conduta violenta, tanto verbal quanto física, inclusive dentro das polícias. Creio que isso se intensificará após 28 de outubro).

Na coluna citada, a autora faz um chamado ao leitor: apesar do cenário de desalento, "é preciso lutar neste segundo turno para o autoritarismo não se instalar no Brasil pelo voto, mais uma contradição da democracia". Pessoalmente, não acredito numa derrota eleitoral de Bolsonaro neste domingo e, mesmo que ela ocorra, a erupção do fascismo à brasileira, encampado pela burguesia predatória local, já tomou conta do cenário (o que pode, paradoxalmente, talvez dar um novo impulso à luta política no Brasil - conhecendo agora quão fascista parte significativa da sociedade brasileira é, tem-se que pensar em estratégias de confrontação diferentes). Contudo, ao contrário de mim, que já desisti da peleja, Eliane Brum ainda não esmoreceu: "Mas não podemos permitir que nossos dias sejam devorados, porque, no banquete dos perversos, nossas almas é que são comidas. Há que se resistir ao devoramento das almas"

Ah, e antes que venha a (surrada, oca e repetitiva) acusação "ela-deve-ser-uma-petralha-de-carteirinha!", atenção para este outro trecho:

"Uma parte [dos eleitores que são avessos ao PT], na qual me incluo, terá que segurar o estômago para votar num partido que reeditou o projeto da ditadura civil-militar na Amazônia, reduzindo a floresta a objeto de exploração, evidenciado nas grandes hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, e na expulsão dos povos da floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá que tampar o nariz para votar num partido que assinou a lei antiterrorismo e que usou a Força Nacional para perseguir e reprimir manifestantes e trabalhadores nas cidades e na floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá pesadelos para votar num partido que até hoje não se manifestou contra a ditadura assassina de Nicolás Maduro na Venezuela (Nem isso, PT, nem isso...). Uma parte, na qual eu também me incluo, sofrerá para votar num partido que consumiu os esforços de pelo menos duas gerações de brasileiros com a promessa de que seria diferente dos outros e, como os outros, se corrompeu no poder e se aliou ao que havia de mais nefasto na política nacional. E sofrerá também porque o PT fez tudo isso e nenhuma autocrítica. Nem uma autocrítica bem pequenina, uma autocriticazinha. Nada que mereça esse nome"

Atente, porém, também para o complemento:

"Mas uma parte, na qual de jeito nenhum eu me incluo, usa o ódio contra o PT para justificar o injustificável. É um truque. E esse truque precisa ser desmascarado. Se você votou e votará em Bolsonaro, não é porque é contra a corrupção. Havia outros candidatos que não eram suspeitos de corrupção e você não votou neles no primeiro turno. Você votou em Bolsonaro porque compartilha de suas ideias e compartilha do seu ódio. E se você compartilha com quem afirma o que ele afirma - ser contra negros, contra mulheres, contra LGBTQ, contra indígenas, contra camponeses e a favor das armas e do autoritarismo e da tortura e do atirar para matar - então é isso que você defende. E, principalmente, é esse tipo de pessoa que você é"

(Em casos extremos, hoje comuns, o antipetismo leva a crenças absurdas. Para compreender melhor o fenômeno, sugiro a leitura do artigo A estigmatização do PT e o irracionalismo na eleição, de Cláudio Couto, cientista político e professor da FGV, publicado no Nexo Jornal)

Tenho visto uma hashtag circular no Twitter: #OBrasilÉMelhorQueOBolsonaro. 

Não é não.

Finalmente estamos caindo na real e constatando que a imagem do "brasileiro boa praça", vendida para os turistas, nunca passou de um tremendo conto do vigário. Há por aqui uma quantidade imensa de pessoas integralmente adeptas do emprego da violência para a resolução de todo e qualquer conflito e outro tanto de indivíduos movidos por um ódio primitivo. Todos eles sentem-se plenamente representados - e pior, legitimados - neste momento.

Algumas personalidades que respeito e admiro - como o rapper Emicida, por exemplo - têm ponderado, com razão, que nem todos os eleitores de Bolsonaro são fascistas ou proto-fascistas. Muitos deles, sobretudo entre os mais pobres, fazem essa opção por estarem completamente desiludidos com o establishment político. Desassistidos pelo Estado, procuram pela candidatura que lhes pareça mais antissistêmica. Sem mencionar os convencidos (ou seria manipulados?) por pastores e outros representantes religiosos. Há também aquele eleitor, como escreve Eliane Brum, que está "muito furioso e muito triste com o país e votou com raiva, votou como quando dá aquela vontade de quebrar tudo e ver o circo pegar fogo". 

Tudo isso é verdade. É pena que não há mais tempo para conversar com esses eleitores. E, para ser franco, nem sei se adiantaria alguma coisa.

Por falar em argumentar com eleitores, lembrei de outro excepcional texto de Eliane Brum, Bolsonaro e a autoverdade, publicado em julho deste ano.

"Quando a imprensa mostra que Bolsonaro se revelou um deputado medíocre" - escreve ela -, "que ganhou seu salário e benefícios fazendo quase nada no Congresso, quando mostra que ele nada tem de novo, mas sim é um político tão tradicional como outros ou até mais tradicional do que muitos, quando mostra que falta consistência no seu discurso, assim como projeto que justifique seu pleito à presidência, há pouco ou nenhum efeito sobre os seus eleitores. Porque o conteúdo pouco importa. As agências de checagem são um bom instrumento para combater as notícias e as declarações falsas de candidatos, mas têm pouca eficácia para combater a autoverdade" [Segundo a autora, a autoverdade é "a valorização de uma verdade pessoal e autoproclamada, uma verdade do indivíduo, uma verdade determinada pelo 'dizer tudo' da internet", acrescentando que "o valor dessa verdade não está na sua ligação com os fatos"]

A exposição de evidências, as alegações fundamentadas, até a racionalidade, em certa medida, tornaram-se completamente irrelevantes nesta eleição. Um dos motivos para eu estar estragado por dentro vem disso: não é possível argumentar com a quase totalidade dos eleitores de Bolsonaro, muito menos com seu fandom raivoso e cheio de testosterona. Eles só querem aceitar e só vão acreditar naquilo que favoreça seu candidato. Todo o resto é fake news. Tem mais, porém: todas as falas do deputado - pejadas de racismo, homofobia, apologia à tortura, ameaça ao estado democrático de direito, misoginia, etc - são percebidas, por seus eleitores, como "apenas brincadeira" ou exemplo de que ele é "autêntico".

Mas mesmo com tudo o que foi dito até agora, nem é a figura individual de Jair Bolsonaro, com sua canalhice intrínseca, o que mais me causa desespero e apreensão. São os esteios que o sustentarão no poder.

. . . . . . . 

Há alguns meses, o filósofo, ensaísta e poeta Francisco Bosco escreveu um ótimo artigo para o caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo ².

Intitulado O mês que não terminou, o texto procura apontar o "legado" das chamadas "Jornadas de Junho". Bosco considera que

"o sentido geral de junho de 2013 era a revolta acumulada contra a tendência progressivamente privatista da democracia liberal (tiveram o mesmo sentido o Occupy Wall Street, em Nova York, e os Indignados, em Madri), que comprimia  cada vez mais o espaço do comum, e contra um sistema institucional endógeno, blindado, que asfixiava a participação política, reduzindo ao mínimo possível sua intensidade [...] Não era só por 20 centavos. Estava em jogo o poder empresarial submetendo o poder público e o interesse dos cidadãos; um péssimo serviço a preço alto; péssimas condições de circulação. Estava em jogo, em suma, o direito à cidade".

Lembro-me de que olhei com entusiasmo toda aquela agitação (o articulista assim também o fez) e "muitos apostaram nessa movimentação social como a esperança para pressionar, furar ou renovar a política institucional". Após junho de 2013, diversos grupos de esquerda (Muitas, Bancada Ativista, entre outros) e de direita (Vem pra Rua, Novo, entre outros) buscaram representação legislativa. Bosco observa que "apesar das diferenças ideológicas - e, pelo menos no caso do MBL, das estratégias baixas -, são todos sintomas da formação de uma nova cultura política, com o objetivo comum de transformar o sistema político institucional"

Mas os ventos esperançosos das "Jornadas de Junho", passados cinco anos, dissiparam-se quase sem vestígio.

Para Francisco Bosco (e eu concordo com ele),

"O gigante rapidamente foi se revelando menos progressista do que reacionário. Menos esclarecido do que irracional. Menos espontâneo do que titerizado por setores poderosos. Por fim, menos democrático do que autoritário. 
Junho de 2013 foi uma montanha que pariu um pato - e uma récua de cavalgaduras. Chega a quase dar saudade daquelas figuras de direita da Veja e até do delírio paranoico de Olavo de Carvalho, inofensivo perto da regressão em massa dos infantilizados adoradores de Bolsonaro"

Vivi, ainda criança, o governo Figueiredo, o último da ditadura militar, do qual tenho nítidas memórias (desagradáveis muitas delas). Passei perrengue, junto com minha família, durante o desastroso governo Sarney e sua hiperinflação. Estudante secundarista, participei de alguns protestos contra Collor. Não fiquei satisfeito com o conjunto da obra, mas reconheço avanços durante os mandatos de FHC, mesmo sem nunca ter votado nele. Tenho sido eleitor do PSOL desde 2006, mas votei em Lula antes (quatro vezes), por me identificar, naquela época, com o programa de seu partido. Desde então, só digitei o número do PT na urna eletrônica nos segundos turnos, porque considerava  seu adversário, o PSDB, uma alternativa ruim (e considero até hoje).

Aprendi algumas coisas nesse tempo todo.

E após o desanimador resultado das "Jornadas de Junho", é muito difícil olhar o Brasil com confiança.

Chegamos a 2018. O que temos?

De um lado, mais uma vez o PT, representado agora por Fernando Haddad. O partido, todos sabemos, tem muito o que explicar, desde o Mensalão. Mas seria desonesto da minha parte não admitir que políticas públicas implementadas nos mandatos de Lula e Dilma - algumas bem sucedidas, como o Bolsa Família - tinham como objetivo mitigar a indecente desigualdade social brasileira. E, com todos os seus defeitos, o PT, desde a sua fundação, tem jogado o jogo democrático.

Do outro lado, está um sujeito desequilibrado e que já deu mostras exaustivas de que o autoritarismo não o repugna, muito pelo contrário. E quando vemos que os financistas do mercado, os picaretas travestidos de líderes evangélicos, os tubarões do agronegócio desmatador e empresários inescrupulosos apoiam com euforia a sua candidatura, prevendo ganhos e lucros futuros, não tenho muita dúvida do que fazer.

No próximo domingo, voto em Fernando Haddad. Voto 13!

Não tenho mais ilusões quanto a eleições e democracia representativa ³. Como escreveu o historiador e cientista político camaronês Achille Mbembe (A era do humanismo está terminando), "a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro" e, nesse duelo, já sabemos quem será sacrificada. A transformação da política em apenas mais um braço do mercado é visível. A política, como espaço de disputa e também de negociação, poderá (e acho mesmo que será) eliminada em breve pela voracidade do capitalismo financeiro. Quais as alternativas para evitar isso (se é que existem)?

Uma delas é a ação direta. Ir para as ruas e lutar. Mas não só protestar. Lutar mesmo, no real sentido da palavra. Porque o poder econômico, como todo poder, não deseja contestação. Reagirá. E sua reação, garanto, será feroz. O Estado pouco ou nada pode fazer; na maioria das nações, aliás, o Estado está a serviço do poder econômico, inclusive (e principalmente) suas forças de repressão. Como não tenho a coragem necessária para a luta real, tento a outra alternativa.

Que é continuar escolhendo representantes políticos (sempre democraticamente, mesmo reconhecendo as falhas da democracia representativa), acreditando que, se estes não conseguem frear o poder econômico, podem ao menos tentar aliviar um pouco as consequências nefastas das ações de financistas, banqueiros e megacorporações, sobretudo para as parcelas mais pobres da sociedade.

É provável que um hipotético governo Haddad pouco possa fazer para contrapor-se ao poder econômico. Contudo, não tenho dúvida de que um hipotético governo Bolsonaro é o sonho dos canalhas endinheirados, loucos para que bobagens (estou sendo irônico, viu?) como direitos humanos, direitos trabalhistas, garantias constitucionais, auditorias, fiscalizações ambientais caiam por terra e possibilitem maior lucro.

Claro, posso estar completamente equivocado e o apologista da tortura pode fazer um bom governo, mostrar-se à altura do cargo e nem recorrer ao autoritarismo e a violência sistematizada. Porém, acho isso altamente improvável. O consórcio que tentará sustentá-lo - agronegócio, sistema financeiro, setores rapaces do empresariado, parte da mídia corporativa - não está disposto a ceder um centímetro de terreno, sobretudo após o bem sucedido golpe parlamentar-judicial de 2016. E o deputado do PSL é o cara certo pra completar o serviço.

Há um último ponto que quero abordar.

Uma característica dos governos autoritários é limitar e mesmo reprimir a exteriorização de opiniões contrárias a eles.

Sei que sou um ninguém, mas é também característica dos governos autoritários criar ou incentivar a criação de uma rede de delatores, dispostos a vigiar e denunciar pessoas com opiniões contrárias ao governo autoritário, que podem acionar seus próprios meios de repressão ou deixar isso a cargo de milícias ou grupos de valentões não-oficiais.

Corro risco? "O medo, o medo daquela ridícula Regina, me tomou", como desabafou o escritor e artista plástico Nuno Ramos.


No próximo domingo, voto em Fernando Haddad. Voto 13!

__________
¹ Para sermos honestos, se recuarmos até 2014, veremos que aquela campanha foi também pobremente propositiva, além de excessivamente agressiva, tanto do lado do PT (lembram-se como foi feita a "desconstrução" de Marina Silva pela militância petista?), quanto do lado do PSDB. Ainda assim, a deste ano apresenta um nível de baixeza quase inacreditável da parte bolsonarista.

² BOSCO, Franciso. O mês que não terminou. Folha de S. Paulo, São Paulo, 3 jun. 2018. Caderno Ilustríssima, p. 4-5

³  Por favor, não se entenda com isso que me oponho à democracia. Defendo a democracia. Aponto apenas que a democracia representativa tem seus limites, É hora de começarmos a implementar a democracia direta, com mais plebiscitos e referendos, além de favorecer a criação de conselhos populares, dando a estes poder de deliberação.

BG de Hoje

Apesar de gostar de ambos, devo dizer que o primeiro disco da banda potiguar, radicada em São Paulo, FAR FROM ALASKA (Mode Human, lançado em 2014) tem um som mais pesado (e mais do meu agrado) do que o segundo (Unlikely, de 2017). Um exemplo é a ótima faixa Dino vs Dino.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Anti-intelectualismo e o vozerio dentro deste bar


"Em meio à onda anti-intelectualista, não causa surpresa que a lógica do pensamento passa a trabalhar com categorias pré-modernas como o 'messianismo' e a 'peste'. O messianismo identifica-se com a construção de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados, bravos e destemidos, mas que não são necessariamente cultos ou inteligentes, nem corajosos, mas usam uma performance política em que gritar e esbravejar provocam efeitos populistas). A lógica da peste identifica cada um dos problemas brasileiros como um mal indeterminado, em sua extensão, em suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal, contra o qual só Deus ou pessoas iluminadas podem resolver. Só há 'messianismo' e 'peste', fenômenos típicos de um conservadorismo carente de reflexão, onde desaparece o saber e a educação".

Marcia Tiburi e Rubens Casara - Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo




Uma das frases mais famosas de Jean-Jacques Rousseau é "prefiro ser um homem de paradoxos que um homem de preconceitos". Tenho que admitir: a máxima tem lá seu charme. Porém, quando olhada de pertinho... Pois para demonstrar um paradoxo, Rousseau, a meu ver, lançou mão de um preconceito no seu Discurso sobre as ciências e as artes.

Tentarei esclarecer isso logo, logo. No momento, contudo, gostaria de dividir com o(a) eventual leitor(a) a birra que me dá um certo cacoete hermenêutico, manifestado por um considerável número de comentadores e estudiosos, diante de textos filosóficos.

Pego para ler Obra aberta, de Umberto Eco, e A escritura e a diferença, de Jacques Derrida, por exemplo. Consigo compreender satisfatoriamente o primeiro livro; não entendo bulhufas do segundo. Derrida praticava uma escrita desnecessariamente hermética; Eco, não. Seja como for, se interpreto determinada sentença do pensador italiano seguindo diretamente o que está escrito - sentença esta bastante precisa, sintática e semanticamente -, corro o risco de topar com alguém que me advertirá: "Não foi isso que ele quis dizer". Como assim? Está lá escrito, qualquer um pode entender! Por outro lado, se tal situação acontecesse quando me arriscasse a decifrar algo produzido por uma figura como Derrida, eu aceitaria de bom grado a admoestação. Até agradeceria, se logo em seguida viesse a ajuda para sacar o que o filósofo franco-argelino está argumentando naquele seu aranzel.

Eis o busílis:

  • Muitas vezes, o filósofo não está interessado em complicar e só quis dizer aquilo mesmo que está lá no seu texto (sem mistério nenhum, sem nada de enigmático). Não é preciso uma super capacidade exegética para entender o sentido do que foi escrito.  (Isso vale para os autores que prezam a clareza do texto, não os Derridas da vida)
  • Todavia, muitas vezes também - porque se admira aquele pensador ou porque algumas de suas ideias são caras ao comentarista/estudioso -, toma-se um cuidado excessivo para "protegê-lo" das "más interpretações", não raro atribuindo maior profundidade ou complexidade a perspectivas do autor que nada têm de profundas ou complexas (e, olha lá, não estou afirmando que só tem valor o que é profundo e complexo...)

Veja o caso de Jean-Jacques Rousseau.

Está sempre cercado de "protetores" por ter sido um grande defensor da igualdade e, principalmente, da liberdade. É uma peça-chave na história do pensamento político ocidental e todos reconhecemos isso. Mas tem sempre alguém da turma do "não-foi-isso-o-que-ele-quis-dizer" para "corrigir" interpretações "erradas" das suas palavras, mesmo quando o sentido delas é cristalino.


Bem, para este blogueiro, é gritante a visão anti-intelectualista do escritor genebrino, sobretudo em seu primeiro grande trabalho, o Discurso sobre as ciências e as artes. Como o tema central da postagem de hoje é justamente o anti-intelectualismo, falar um pouquinho desse texto (elaborado em 1749) vale a pena. E se a maneira como julgo Rousseau é resultado de "má interpretação" de suas palavras, paciência.

Antes de mais nada, convém darmos uma definição de anti-intelectualismoNOTA: Talvez fosse oportuno distinguir irracionalismoanti-racionalismo e anti-intelectualismo; contudo, a tarefa tornaria a postagem muito longa (meus escritos já são habitualmente beeem compridos) e tiraria a ênfase que quero dar à atmosfera anti-intelectual na qual estamos imersos atualmente. Assim que possível, publicarei no blog um texto cujo único objetivo será fazer a distinção desses termos.

Utilizemos uma conceituação bem simples, disponível no verbete da Wikipédia:

"Anti-intelectualismo descreve um sentimento de hostilidade em relação a, ou suspeição de, intelectuais e seus objetos de pesquisa. Isto pode ser expresso de várias formas, tais como ataques aos méritos da ciência, educação, arte e literatura" 

Eu acrescentaria que a aversão se estende aos resultados da atividade intelectual, como por exemplo, livros, artigos científicos, programas de ensino, espetáculos musicais ou teatrais, obras de arte, etc.

"Entre as suas motivações mais comuns" - continua o verbete -, "podemos enumerar: ressentimento de pessoas pouco instruídas contra eruditos; hostilidade em relação ao trabalho realizado pelos intelectuais, como educação, pesquisa, crítica social e cultural, literatura; acusação de parasitismo social (os intelectuais não teriam uma 'função' econômica na sociedade, sendo esta última compreendida, portanto, de maneira organicista); acusações de subversão e morbidez".

Penso que o anti-intelectualismo tornou-se um forte traço de nossa época, não obstante os índices de escolaridade atuais, os mais altos da história. No Brasil, nesse gravíssimo momento de tensão política, as posturas anti-intelectuais são algo patente. Mas o anti-intelectualismo não é um evento novo. Periodicamente, o estatuto do intelectual e seu papel dentro da sociedade são alvo de ataque. Não é preciso recuar muito no tempo. Olhando apenas para o século passado, sabemos que a caça às bruxas macarthista, realizada nos EUA no início da Guerra Fria, não poupou escritores e outros artistas, perseguidos com a desculpa de que "promoviam o comunismo". Notaremos também que muitos estudantes, após o Maio de 68, passaram a repudiar o saber teórico, visto por eles como inerentemente conservador e submisso ao poder. Ao anti-intelectualismo, acorreram, de tempos em tempos, tanto a direita quanto a esquerda. Entretanto, o fenômeno se torna particularmente funesto quando o identificamos como um dos elementos constituintes de influxos políticos de viés autoritário (e até mesmo totalitário). Convém lembrar que o fascismo e sua variante, o nazismo, eram fortemente anti-intelectualistas, assim como o stalinismo e o maoismo (sobretudo a partir da Revolução Cultural Chinesa).

Na definição da Wikipédia reproduzida acima, vimos que uma das acusações dirigidas aos intelectuais por parte de seus detratores é considerá-los parasitas da sociedade. A esse respeito, atentemos para esta passagem localizada na segunda parte do Discurso sobre as ciências e as artes ¹:

"Se nossas ciências são inúteis no objeto que se propõem [o encontro da verdade, de acordo com Rousseau], são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem. Nascidas da ociosidade, por seu turno a nutrem, e a irreparável perda de tempo é o primeiro prejuízo que determinam forçosamente na sociedade. Na política, como na moral, é um grande mal não se fazer de algum modo o bem e todo cidadão inútil pode ser considerado um homem pernicioso. [A seguir, Rousseau faz uma série de alusões a alguns pensadores e homens de ciência, entre estes Newton e Leibniz - importante notar que, no século XVIII, filosofia e ciência não eram ainda reconhecidos como ramos distintos do conhecimento e o termo filósofo designava também o que hoje chamamos de cientista] Respondei-me, pois, filósofos ilustres, vós por intermédio de quem sabemos por que razões os corpos se atraem no vácuo; quais são, nas revoluções dos planetas, as relações entre as áreas percorridas em tempos iguais; quais as curvas que têm pontos conjugados, pontos de inflexão e de retrocesso; como o homem vê tudo em Deus; como, sem comunicação, se correspondem a alma e o corpo, tal como o fariam dois relógios; quais os astros que podem ser habitados; quais os insetos que se reproduzem de modo extraordinário - respondei-me, repito, vós de quem recebemos tantos conhecimentos sublimes, se não nos tivésseis nunca ensinado tais coisas, seríamos com isso menos numerosos, menos bem governados, menos temíveis, menos florescentes, ou mais perversos? Reconhecei, pois, a pouca importância de vossas produções e, se o trabalho dos mais esclarecidos de nossos sábios e de nossos melhores cidadãos nos proporciona tão parca utilidade, dizei-nos o que devemos pensar dessa chusma de escritores obscuros e de letrados ociosos que, em pura perda, devoram a substância do Estado".

OK, OK. Sei que o próprio Jean-Jacques Rousseau admitia que o Discurso sobre as ciências e as artes foi mal escrito ². Sei também que ele não defendia o fechamento das universidades, nem acreditava que a ciência é uma maldição que se abateu sobre o planeta, nem pregava a morte a pauladas dos artistas e das pessoas cultas. Não obstante, acho difícil não atestar que o excerto acima está carregado do mais genuíno anti-intelectualismo. Para demonstrar um paradoxo - como o restabelecimento das ciências e das artes (durante o Iluminismo) não contribuiu para aprimorar os costumes -, o autor lançou mão de um preconceito - em geral, os praticantes das ciências e os artistas não têm como preocupação fundamental fomentar a virtude, dedicando-se a atividades supérfluas para a boa organização da sociedade, e por isso a contribuição não se deu. A passagem acima reproduzida serve para ilustrar um ponto de vista muito difundido em meio ao senso comum, tanto o da época quanto o de hoje, do qual Rousseau não conseguiu se desvencilhar.

A pressuposição de que a atividade intelectual e a criação artística são pura perda de tempo se não forem convertidas em algo "útil" acompanha a humanidade há milênios - com a ideia de utilidade variando de época para época, de cultura para cultura (no caso da nossa, útil será o mesmo que lucrativo). Do mesmo modo, é antiga a crença na futilidade da erudição, ainda mais quando confrontada com a premência do trabalho que garante o sustento. Para o anti-intelectualista, de ontem e de hoje, os "letrados ociosos" que "devoram a substância do Estado" são um problema. Qual o corolário? Se ninguém precisa deles, diz o anti-intelectualista, não há necessidade de mantê-los.

Passemos a outro trecho do livro, agora retirado da primeira parte:

"Onde não existe nenhum efeito não há nenhuma causa a procurar; nesse ponto, porém, o efeito é certo, a depravação é real, e nossas almas se corromperam à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram no sentido da perfeição. Dir-se-á ser uma infelicidade própria de nossa época? Não, senhores; os males causados por nossa vã curiosidade são tão velhos quanto o mundo. A elevação e o abaixamento cotidianos das águas do oceano não foram mais regularmente submetidos ao curso do astro que nos ilumina durante a noite quanto a sorte dos costumes e da probidade aos progressos das ciências e das artes. Viu-se a virtude fugir à medida que sua luz se elevava no nosso horizonte e observou-se o mesmo fenômeno em todos os tempos e em todos os lugares"

A virtude (ou seja, a retidão moral desejável nos "homens de bem", segundo Rousseau) é corrompida à medida que se avança intelectualmente. Importante notar que essa afirmação vai ao encontro da concepção de natureza humana defendida pelo pensador genebrino: o ser humano vai se degenerando à medida que se sociabiliza.  A visão preconceituosa do saber intelectualizado - essa "vã curiosidade" que causa "males" -  tem forte relação com a tradição cristã de considerar o orgulho do conhecimento a causa do pecado original. O anti-intelectualista dirá que o incremento científico e o apuro artístico provocam a fuga da virtude e, portanto, os intelectuais e os artistas são imorais.

Seria possível fazer desaparecer ou, ao menos, atenuar esse preconceito?

. . . . . . .

Em um breve artigo publicado na revista CULT em outubro de 2016 (Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo), a filósofa Marcia Tiburi e o jurista Rubens Casara escreveram:

"Há, dividindo espaço com opressões próprias ao campo do saber, um estranho ódio ao saber em sua forma crítica e desconstrutiva. Um ódio que se relaciona com a ameaça libertária do saber, um saber capaz de desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a ignorância que serve de base para todos os preconceitos. O pensamento e a ousadia intelectual tornaram-se insuportáveis para muitas pessoas chegando a um nível institucional e, não raro, acabam excluídos ou mesmo criminalizados.
Diversos exemplos de anti-intelectualismo podem ser observados na sociedade brasileira. Desde a caricata presença do ator Alexandre Frota (menos pelo que ele é, mas sobretudo pelo que ele representa) como formulador de políticas públicas do Ministério da Educação [Frota foi recebido pelo então titular da pasta do MEC, Mendonça Filho, em 25/05/2016]  ao projeto repleto de ideologia (e mais precisamente: da ideologia, de viés autoritário, da 'negação do saber') da 'Escola sem partido'. Do silêncio em torno da exclusão de disciplinas (filosofia, sociologia, artes, etc.) do ensino médio (MP 746) à expressiva votação de candidatos que apostam no uso da força, em detrimento do conhecimento, como resposta aos mais variados problemas sociais. Do descaso com a educação (consagrado na PEC 241) [depois PEC 55, quando passou da Câmara dos Deputados para o Senado, e virou a Emenda Constitucional nº 95, estabelecendo um teto de gastos públicos para os próximos 20 anos, afetando áreas como saúde e educação] ao tratamento conferido aos professores em todo Brasil [...]".

Este blogueiro poderia dar outros exemplos, como o cancelamento de uma exposição de arte após protestos de fanáticos raivosos insuflados por uma milícia ou, recentemente, o pedido (da parte dos pais e mães) para proibir, em uma escola, a leitura de um livro infantojuvenil considerado "comunista". Importa destacar, contudo, que estamos correndo o risco, como acertadamente sugerem Tiburi e Casara, de que o anti-intelectualismo se torne institucionalmente cada vez mais aceito e praticado, quem sabe até incentivado por representantes do poder público. A agressividade obscurantista e, pior ainda, intimidatória de parte significativa dos apoiadores de Jair Bolsonaro, direcionada a jornalistas, literatos, artistas e professores universitários que têm posicionamento contrário ao deles, é bastante preocupante, dado que o deputado é favorito para vencer as eleições presidenciais neste segundo turno.

Tiburi e Casara observam que, na lógica limitada do anti-intelectualista, existe, de um lado, o "messias" (ou seja, o salvador da pátria infalível) e do outro, "a peste" (ou seja, processos, eventos, organismos e indivíduos que precisam ser combatidos, aniquilados, sem pestanejar ou parar para pensar). Dentro dessa lógica, não cabem a complexidade e as contradições inerentes ao real, tudo é preto no branco, não há espaço para a reflexão, os intelectuais são supérfluos, não têm lugar. E, mais grave: para os milhares de anti-intelectualistas que estão emergindo, os intelectuais, mesmo tão metidos a inteligentes, não sabem lidar com "a peste" (alguns, até, estão contaminados por ela...),

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Outro dia, num dos bares que frequento aqui em Belo Horizonte, ouvi invectivas a Paulo Freire na mesa ao lado. Serei franco com o(a) eventual leitor(a): pessoalmente, me desagrada uma certa hagiolatria que costuma cercar o educador recifense, expressa por alguns de seus estudiosos. Nem por isso contesto a grande relevância de sua obra para a pedagogia e para a filosofia.

Da mesa vinham frases como "Paulo Freire é que trouxe esse comunismo todo pra dentro das escolas"; "Tem muita escola aí que é pura doutrinação esquerdista. Culpa desse Paulo Freire". Não me dei ao trabalho de apurar quem eram (além do mais, seria bem grosseiro da minha parte me intrometer na conversa alheia). Sou capaz de apostar, porém, que não eram professores (se fossem, saberiam que dentro de uma escola há tantos embaraços e reveses mais urgentes para serem resolvidos que ninguém tem tempo para uma suposta doutrinação esquerdista). Também apostaria que jamais leram uma página sequer dos livros de Freire.

Falando nisso, nesse mesmo bar, algumas semanas depois, escutei declaração semelhante de um conhecido meu, curiosamente, filho de um professora (aposentada) de escola pública. Quando perguntei se já lera algo de Paulo Freire, a resposta oblíqua me fez ver que ele (tal como as pessoas do outro dia) apenas reproduzia a catilinária rasteira, baseada em memes de mídias sociais e posts de veracidade duvidosa do WhatsApp, empregada nas disputas ideológicas desse nosso mundinho digital contemporâneo.

Eu ainda bebo habitualmente nesse e em outros dois bares próximos ao lugar onde moro. A ar está pesado em todos eles, pelo menos para mim. Botequins, claro, nunca foram espaços de conferências acadêmicas. Mas já foram pelo menos mais acolhedores a quem, num bate-papo acompanhado de umas geladas, se dispunha a apresentar fatos, corrigir informações falsas. Também não havia tantos esgares e olhares de fastio ou raiva mal disfarçada quando se tentava levar a conversa para temas menos ordinários.

O que tenho escutado nos últimos meses é um vozerio de indivíduos sem qualquer disposição para ouvir o outro, a dizer (e, as vezes, berrar) que "o coro vai comer", "esse povo vai entrar na linha", repetindo bordões cujo teor é marcado por uma completa ausência de empatia, por uma falta de preocupação social e senso de coletividade, revelando uma incultura que não conhece limites, a exigir, entretanto, que lhes prestemos continência.

O escritor Isaac Asimov disse certa vez: "Anti-intellectualism has been a constant thread winding his way through our political and cultural life, nurtured by the false notion that democracy means that 'my ignorance is just as good as your knowledge' " ["o anti-intelectualismo tem sido uma corrente constante insinuando-se através de nossa vida política e cultural, alimentado pela falsa noção de que democracia significa que 'minha ignorância é simplesmente tão boa quanto o seu conhecimento' "].

Infelizmente, temo não se tratar mais de algo que se insinua, que se infiltra paulatinamente. Acho que os ignorantes assumiram o controle de vez.

E todos iremos perder.

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Antes de encerrar, gostaria de fazer notar ao(à) eventual leitor(a) que a candidatura Bolsonaro, pelo que representa de obscurantismo e de ameaça ao regime democrático e à liberdade (inclusive a de expressão), tem sido repelida por muitos intelectuais e pessoas ligadas ao objeto que melhor nos representa - o livro.

Pode-se verificar o veto ao candidato do PSL na declaração dos escritores que representaram o Brasil na Feira de Frankfurt desse ano; no posicionamento de Luiz Schwarcz, presidente da Companhia das Letras, uma das mais prestigiadas e importantes empresas livreiras do país; e no Manifesto do Livro, assinado por diversos escritores e escritoras, editores e editoras.

[Atualização: 20/10/18]: Esqueci de citar aqui o sensacional texto-desabafo (Isto não é um poema) do cantor, compositor e poeta Arnaldo Antunes, também contrário à candidatura mencionada acima. Faço-o agora.

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¹ ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 321-352. (Coleção Os pensadores) [Tradução de Lourdes Santos Machado]

² Na Advertência incluída numa das edições do texto, o escritor registrou: "Que será a celebridade? Eis a obra infeliz a que devo a minha. É certo que essa peça, que me valeu um prêmio e me deu nome, será, no máximo, medíocre e, ouso acrescentar, uma das menores deste repositório. Que abismo de misérias não teria evitado o autor, se esta primeira obra tivesse sido recebida como o merecia! Mas era preciso que um favor inicial injusto me trouxesse, aos poucos, uma severidade que ainda é mais injusta".

BG de Hoje

The Same Boy You've Always Known é uma canção para a qual não dei muita bola há alguns anos, quando adquiri White Blood Cells, dos WHITE STRIPES. Aos poucos, entretanto - e era inevitável -, acabei chegando a conclusão de que é uma das mais bonitas daquele álbum (senão uma das melhores em toda a carreira da dupla de Detroit). NOTA: Prefiro a versão em estúdio (sempre prefiro as versões em estúdio), mas achei que a apresentação abaixo ganhou um tom que não sei definir (bem-vindo, todavia), ausente na gravação incluída no disco lançado em 2001.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A "hora milagrosa" nunca chegará



Já ouviu falar do Forte Bastiani, eventual leitor(a)?

Trata-se de uma "grande fortaleza, exemplo típico de engenharia militar, que guarda a única passagem entre o deserto dos tártaros e as encostas meridionais da cadeia de montanhas escarpada e ininterrupta que marca a fronteira entre os estados do Norte e os do Sul de um país sem nome", de acordo com o Dicionário de lugares imaginários, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi (Editora Companhia das Letras, 2003)

O Forte Bastiani, entretanto, tem um alcance simbólico bem maior - pelo menos na visão deste blogueiro e de outros milhares de leitores devotos deste livro sublime chamado O deserto dos tártaros (sobre o qual, aliás, já escrevi anteriormente, de forma breve, aqui no blog).

Já que mencionei Alberto Manguel poucas linhas acima, devo dizer que o ensaísta argentino-canadense é um desses leitores devotos do romance de Dino Buzzati, publicado pela primeira vez em 1940.

O forte, escreveu Manguel em Os livros e os dias ¹,  é "um lugar que parece impossível de deixar, mas também impossível de alcançar, tão ancorado em sua própria rotina que nada que venha do exterior pode atingi-lo".

Rotina... Até certa idade, pouca ou nenhuma atenção damos a essa palavra; não refletimos sobre o real significado dela, suas implicações. Como disse, só até certa idade. À medida que se envelhece, a maior parte de nós - cuja vida se resume a subsistir dentro das condições que nos são apresentadas e nada além disso - passa a compreender que uma porcentagem grande de nosso "ser no mundo" não passa de um amontoado de hábitos. Há um capítulo magistral em O deserto dos tártaros (o décimo), em que o narrador vai enumerando as "míseras coisas" que foram suficientes para amoldar o protagonista, tenente Giovanni Drogo, "ao monótono ritmo do serviço" ². Buzzati, habilidosamente, repete a palavra hábito(s) entre as primeiras frases de seis parágrafos seguidos no capítulo X, levando o leitor a captar o "torpor" no qual se encontrava Drogo, já impregnado com "o amor doméstico pelos muros cotidianos", em apenas quatro meses de trabalho no forte. O militar, sonhando com atos guerreiros e heroicos, reduz-se a um burocrata.

Se o(a) eventual leitor(a) me permitir, desejo fazer uma digressão.

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Escrito na forma de diário, Os livros e os dias revela um pouco do que sentia Alberto Manguel no momento do registro, além de mostrar que nossas leituras são sempre influenciadas pelo contexto circundante, pelo momento histórico em que se está vivendo. Por exemplo, na parte referente a O deserto dos tártaros, Manguel encontrava-se em St. John's, cidade da ilha de Newfoundland (Canadá), entre o finalzinho de 2002 e as primeiras semanas de fevereiro de 2003. O mundo estava apreensivo com a possibilidade da invasão do Iraque por tropas norte-americanas e britânicas - o que acabou acontecendo daí a um mês. Por isso, o ensaísta anota: "A guerra iminente não tem nada de heroico; sabemos que os motivos que conduzem as forças anglo-americanas são menos humanitários que financeiros", acrescentando logo em seguida:

"Na história de Buzzati, por outro lado, o trágico sentimento de absurdo que subjuga o leitor brota em grande parte da completa futilidade da empresa heroica. Nenhuma razão humanitária ou financeira pode ser invocada. A fronteira não apresenta nenhum problema, o deserto dos tártaros não viu nenhum tártaro até onde a memória alcança, os heróis nunca têm a chance de ser heroicos".

E então Manguel cita um trecho do segundo capítulo, quando Drogo, encaminhando-se, muito jovem ainda, para servir no forte Bastiani pela primeira vez, conversa com o capitão Ortiz, a quem encontrara por acaso na estrada:

"- Então o forte nunca serviu para nada? 
- Para nada - disse o capitão".

Eu também, nessa minha última leitura de O deserto dos tártaros, acabei influenciado pela conjuntura à qual estou sujeito.

No Brasil (e acredito que em vários outros países), membros das forças armadas, embora sejam agentes públicos, sobem nas tamancas quando comparados a outros servidores do Estado, a despeito do fato de que os vencimentos dos primeiros sejam pagos pelo erário, assim como acontece com os salários dos últimos. Um melindre que acarreta problemas, como estamos carecas de saber... Das funções atribuídas às forças armadas, a mais notória é defender a pátria, usualmente interpretado como proteger a nação de investidas provenientes de inimigos/agressores externos. Entretanto, quando não há necessidade dessa defesa, quando não se veem os invasores no horizonte,  quando os tártaros não vêm, o que esperar dos militares? Como devem se comportar?

A associação entre herói e soldado é, a meu ver, bastante discutível. Digo isso não só pelos vários crimes de guerra cometidos ao longo da história, mas porque a própria ideia de guerra em si não me predispõe a vinculá-la, automaticamente, ao heroísmo ³. De todo modo, soldados existem para guerrear. Mas vejamos a situação nas dezenas de nações pelo mundo afora que - felizmente, aliás - não têm invasores (refiro-me a outros exércitos) para combater. O Brasil, por exemplo. Seus militares, sobretudo oficiais, não acabam se convertendo em meros burocratas, aferrolhados a regulamentos, códigos e regras incompreensíveis para os "paisanos", tal como os personagens dentro do forte Bastiani? Há uma passagem no capítulo XIV de O desertos dos tártaros que vai bem ao encontro do que estou querendo dizer.

O comandante do forte, coronel Filimore, acaba de saber que a movimentação ocorrida no outro lado da fronteira é apenas um trabalho topográfico da parte do reino do Norte e não uma ameaça como chegaram a crer alguns de seus subordinados (e ele mesmo quase foi tomado pela esperança de entrar em combate, agir como guerreiro e tornar-se "herói"). Leiamos o último parágrafo do capítulo XIV:

"A mosca esvoaçava pela sala, a bandeira em cima do telhado do forte se afrouxara, o coronel falava em disciplina e regulamentos, na planície do norte avançavam fileiras de soldados, não mais inimigos ávidos de batalha, mas soldados inócuos como eles, não impelidos ao extermínio, porém enviados numa operação cadastral, e seus fuzis estavam descarregados, as adagas, sem fio. Pela planície do norte abaixo alastra-se aquele inofensivo simulacro de exército, e no forte tudo se estagna de novo no ritmo dos dias de sempre".

Penso que muitos militares (e aqui tenho em mente sobretudo o caso brasileiro) nunca encontraram (e nunca encontrarão) "inimigos ávidos de batalha". São "soldados inócuos". Por isso - e este é o grande perigo - podem acabar inventando adversários dentro do próprio país. E já que, na visão deles, trata-se de oponentes propensos à beligerância, precisam ser exterminados, pois é o que as forças armadas fazem: entram em guerra com o inimigo, buscando aniquilá-lo. Já foi assim durante a ditadura militar iniciada com o golpe de 1964. E nada garante que, a depender do resultado das eleições neste domingo (e seus desdobramentos), não volte a ser. Quem serão agora os indivíduos e grupos tachados como inimigos? Membros da sociedade civil - cidadãos e cidadãs cujas visões de mundo e ideário sejam distintos do que apregoa o mandatário de plantão - correm risco? Confesso que tenho muito receio e não estou tranquilo.

Voltemos, porém, à discussão do romance de Dino Buzzati.

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Há um personagem secundário em O deserto dos tártaros que nunca me sai da cabeça, malgrado sua insignificância. Falo do alfaiate Prosdocimo.

Ele é cheio de si, dá-se muita importância, mas vive nos porões do forte, esquecido. Afirma estar lá apenas em "caráter ab-so-lu-ta-men-te pro-vi-só-rio". E já faz 15 anos...

Prosdocimo representa, penso eu, a tendência negativa que muitos têm para se acomodar (sendo este blogueiro um desses muitos). O personagem aparece pela primeira vez no capítulo VII. Trabalha numa oficina, acompanhado de um velhinho (seu irmão) e mais três ajudantes (que riem dele disfarçadamente). Giovanni Drogo procura-o para encomendar uma capa. Ambos iniciam uma conversa, mas logo o alfaiate do regimento é chamado e sai. Nesse momento, o velhinho se aproxima de Drogo e faz um alerta: não fique no forte, saia enquanto é tempo, não faça como os outros, a esperar um evento que nunca acontece.

É quando o (então) jovem protagonista começa a dar-se conta de uma das maiores ilusões a vigorar no forte Bastiani: a esperança de cumprir um destino heroico.

Reproduzo a seguir os cinco últimos parágrafos do capítulo VII. Peço paciência ao(à) eventual leitor(a) - valerá a pena; a prosa de Dino Buzzati é muito bonita:

"Agora Drogo finalmente entendia. Fitava as sombras múltiplas dos uniformes pendurados, que tremulavam conforme oscilavam as luzes, e pensou que naquele exato momento o coronel, no recôndito de seu gabinete, abrira a janela para o norte. Estava certo: numa hora tão triste como aquela, pela escuridão e pelo outono, o comandante do forte olhava para o setentrião, para as voragens do vale. 
Do deserto do norte devia chegar a sorte, a aventura, a hora milagrosa, que, pelo menos uma vez, cabe a cada um. Para essa vaga eventualidade, que parecia tornar-se cada vez mais incerta com o tempo, os homens consumiam ali a melhor parte das suas vidas. 
Não haviam se adaptado à existência comum, as alegrias das pessoas comuns, ao destino medíocre; lado a lado, viviam com a mesma esperança, sem nunca mencioná-la, porque não se davam conta ou simplesmente porque eram soldados, com o pudor ciumento do próprio íntimo. 
Até Tronk, talvez. Tronk [o sargento-mor] seguia os itens do regulamento, a disciplina matemática, o orgulho da responsabilidade escrupulosa, e se iludia imaginando que aquilo lhe bastava. Mas se lhe tivessem dito: será sempre assim enquanto viver, tudo igual até o fim, também ele teria acordado. Impossível, teria dito. Alguma coisa diferente ainda deverá acontecer, alguma coisa de realmente digno, de que se possa dizer: agora, mesmo que tenha acabado, paciência. 
Drogo compreendera o fácil segredo deles, e com alívio pensou estar fora disso, espectador não contaminado. Dentro de quatro meses, graças a Deus, ele os deixaria para sempre. Os obscuros fascínios da velha construção tinham-se dissolvido, ridículos. Assim pensava. Mas por que o velhinho continuava a fitá-lo com aquela expressão ambígua? Por que Drogo sentia o desejo de assobiar um pouco, de tomar vinho, de sair ao ar livre? Quem sabe para demonstrar a si mesmo que estava realmente livre e tranquilo?"

Essa "hora  milagrosa, que, pelo menos uma vez, cabe a cada um" é raríssima, quase nunca surge. Mas a maioria de nós - pelo menos quando somos jovens - não consegue abandonar a crença de que algo grande nos aguarda, ainda que sejamos constituídos de pura mediocridade.

A esperança na "hora milagrosa" perdura, contudo. Segue-se com ela durante anos Até que, tardiamente, constata-se a fuga do tempo. E nada aconteceu. Os tártaros não vieram. Não se fez outra coisa além de aguardar. O que se ganhou com a espera?

O deserto dos tártaros pertence à categoria das narrativas que se escolhe ler pela vida inteira. Tenho certeza de que voltarei constantemente a esse livro. Saiba desde já o(a) eventual leitor(a) que tenho ainda muito a dizer sobre ele. Não faltará ocasião, espero.

Na próxima postagem, pretendo discutir o fenômeno do anti-intelectualismo, partindo, desabusadamente, do pensamento de Jean-Jacques Rousseau.

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¹ MANGUEL, Alberto. Os livros e os dias: um ano de leituras prazerosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. [Tradução de José Geraldo Couto]

² BUZZATI, Dino. O deserto dos tártaros. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017 [Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas]

³ Não estou alegando que não possa haver qualquer traço de heroísmo durante conflitos armados; a própria resistência ao fascismo e ao nazismo durante a 2ª Guerra Mundial é algo imensamente valoroso. O que estou dizendo é que a associação entre a figura do soldado e a figura do herói não é nem dada de antemão, nem imediata e muito menos óbvia per se.

BG de Hoje

Não sei por que até hoje nunca falei desta canção aqui no blog. Rocket Man foi lançada em 1972 (tem, portanto, a minha idade). Muitos críticos de música pop consideram-na uma das melhores composições de todos os tempos (eu concordo com essa avaliação). Na época do lançamento, ELTON JOHN contava com uma banda excelente. É a mesma que fez a gravação em estúdio, até onde sei, participando ativamente da elaboração dos arranjos (destaco o violão, o coro durante o refrão, a bateria suave - mas que se faz notar - e, claro, o piano do cantor-compositor britânico). Rocket Man também me fascina pela letra - triste e irônica ao mesmo tempo - falando de um sujeito que trabalha no espaço sideral (e que tipo de serviço poderia ser mais emocionante?), mas cumpre sua tarefa rotineiramente, sem qualquer sentimento especial, a não ser a saudade da esposa. Bernie Taupin, parceiro antigo de John, disse certa vez que, ao escrever a letra, foi inspirado, entre outras fontes, por um conto de Ray Bradbury, o autor de ficção científica mais poético que conheço. Abaixo, um vídeo lindo, dirigido por um cineasta iraniano (Majid Adin) e por um animador irlandês (Stephen McNaily), no qual a canção serve de trilha sonora para narrar o drama de um refugiado. Incluí também no BG uma versão feita pela desconhecida cantora Carol Kay, encontrada por acaso no Youtube, só voz e teclado, mas que achei muito bonita.