quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Falou e disse...

 "[...] Certas associações hoje são fáceis - e isso são vantagens que vieram com a era digital. Mas não quer dizer que vá fazer com que a lógica solidária ou colaborativa suplante a lógica acumulativa. [...] Então a lógica da remuneração do capital vai prevalecer e seguir o curso que as coisas vêm seguindo. O que quero dizer é: não é a tecnologia que muda a sociedade. Nunca foi. A sociedade, ou os movimentos sociais ou as relações sociais, é o que dão sentido social e histórico para a tecnologia, e não o contrário. Você pode falar de uma razão da técnica, e existe sentido nisso. Podemos até dizer que a técnica é uma língua (tudo com certas relativizações), mas a técnica por si estabelece mais diferenças, mais concentração e vira o modo próprio que se identifica profundamente com a natureza do capital, e não com uma natureza solidária ou o que se quer que se queira". *

* Afirmações do jornalista e professor da ECA-USP Eugênio BUCCI, publicadas em entrevista reproduzida no livro Cultura digital.br, organizado por Rodrigo Savazoni e Sergio Cohn (Editora Beco do Azougue, 2009). A entrevista de Bucci faz parte da seção Comunicação digital e as afirmações estão nas páginas 206 e 207.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Quatro poemas de Mariana Ianelli


Insertado em minha cabeça, há alguns dias, está o início de um texto de Mariana Ianelli: "Agora o que me importa /é a nota que desafina o coro/o casaco mal talhado/que ficou sobrando nos ombros". Os versos fazem parte do poema A marca humana, do livro Vida dupla, lançado em 2022 (integrante da coleção Madrinha Lua, da Editora Peirópolis). Se verdadeiramente humanos, carregamos uma "célula de desordem"; carregamos "o cômico e o patético enleados", como se lê noutras passagens desse mesmo ótimo poema.  

Na postagem de hoje, entretanto, intenciono falar (brevemente) sobre outros escritos da poeta e cronista paulistana, presentes em Treva Alvorada, publicado em 2011 ¹, livro que passou pelas minhas mãos há alguns anos e que tive a oportunidade de reler na última semana.

Destacarei os quatro poemas de que gosto mais.

Vamos ao primeiro:

FLOR DO OFÍCIO

Emboscada no silêncio
Eu preparo a rosa inútil
Com as horas que salvei 
Do desperdício.

Feito um verme
Decompondo ceticismo
Em força indômita,
Preparo e deito essa flor
No teu caminho
Para quando o teu corpo
(Tão quebrantável quanto o meu)
For sozinho pastorear
Seus demônios no vazio.

Quase dois mil anos
Guardado no deserto
Um salmo esperou
Para recobrar sua melodia -
E eu não te esperaria?

Até onde entendo, a poesia de Ianelli não é especialmente musical, mas esse texto é dos mais rítmicos entre todos os que conheço da autora (talvez por isso, na composição, a presença do vocábulo melodia). Vale notar que as alusões bíblicas são uma constante em sua obra.

Passemos ao segundo:

VIGÍLIA

Esta noite
Nem o gozo do pensamento
Te entretém.

Teu sentimento
É todo um espanto seco
Como se te mirassem
Os olhos da inocência
E desta vez não te acudisse
O desprezo.

Te comove
Teu sangue trabalhando
Em silêncio,
Resvalar te comove,
Pode ser teu ato extremo.

Nada se põe entre esta noite
E a perfeição
Da tua órbita no tempo.

Só tuas mãos ainda servem
De instrumento,
E elas se deitam.
Podem alcançar adiante,
Escolhem alcançar
A transparência.

A segunda estrofe sobressai: "Teu sentimento/É todo um espanto seco/como se te mirassem/Os olhos da inocência/E desta vez não te acudisse/O desprezo". É formidável a descrição do estado de espírito deste que se encontra em vigília.

O terceiro poema é o mais "narrativo" do livro, penso eu:

OS IMPUROS

A peste chegando
E não soubemos ver.

Fomos padecendo naturalmente,
Uma figueira de pouca sombra,
O tronco pesado de segundas-feiras.

Por sete dias a casa vedada,
Tentamos a paciência:
Não disparatar,
Não bulir com o silêncio,
Reconsiderar as coisas pequenas.

Mas a peste vencendo,
Comendo as paredes,
Uma vergonha 
Que não imaginávamos
Tão prestimosa, tão perfeita,
Chancelada pelo tempo.

Arrasamos a casa.
O chão nós arrancamos fora,
O grão de onde manava a doença.
Não sentimos pena.

Matar, nós matamos
Num sopro de gentileza.
Não é possível decifrar a referencialidade - afinal, o pode ser a peste? -; isso não acarreta, todavia, nenhuma perda na intensidade poética.

E, por fim, meu preferido:

MEMORANDO

Não há grandes notícias.

Uma torre desapareceu,
O inverno expandiu-se
E a esperança ainda rói
O fundo de uma caixa
Procurando saída.

Com esculpido esmero
Vai se acabando uma família.

Um gesto qualquer se repete
No ensaio de ser abolido,
Remediar, abafar, corrigir,
Nada lembra o que antes foi só
Generosidade de coisa viva.

Não convém
O alvoroço dos pássaros,
A revanche da galhardia.
É inútil desafiar o pó
E, contudo, desafia-se.

Fala-se de finitude, mas também de algo que me é estranho: fé (não necessariamente religiosa, embora possa ser, nesse caso). 


_______________
¹ IANELLI, Mariana. Treva Alvorada. São Paulo: Iluminuras, 2011.

BG de Hoje
 
Esta é provavelmente a canção que eu mais tenho cantarolado em casa, distraidamente nos últimos dias, enquanto tento fazer alguma outra coisa: Cordão da insônia, composição bacana da CÉU e do Beto Villares.