quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Dois contos de Alice Munro


Devo admitir que não sou um habitual leitor de contos - sempre preferi os romances. A predileção nada tem a ver com aquele papo furado sobre o conto ser uma modalidade textual "inferior" (se comparado ao romance). Apenas creio faltar-me a agudeza de percepção que a narrativa curta requer.

Essa disparatada crença (um tanto difundida, contudo) na "inferioridade" do conto enquanto gênero literário remete-me a uma passagem de um dos textos que compõem o esplêndido livro Felicidade demais¹, da escritora canadense Alice Munro. A personagem central da narrativa em questão, Joyce, comprara um livro chamado Como havemos de viver, da jovem escritora Christie O'Dell. Apesar de adquiri-lo por causa de um (até ali) vago interesse pela autora, Joyce não tem certeza ainda se lerá de fato o volume, pois estava em meio a "duas boas biografias que com certeza fazem mais o seu estilo [...]". Outro fator também contribui para sua indecisão: 

"Como havemos de viver é uma reunião de contos. Não um romance. Só isso já é uma decepção. Parece diminuir a autoridade do livro, fazendo com que a autora pareça alguém pendurado nos portões da Literatura, mais do que seguramente estabelecido lá dentro"

Essa avaliação mordaz do status dos contistas ocorre no plano narrativo-ficcional, mas, naturalmente, atende a uma intenção clara de Munro, na sua condição real de escritora de contos: debicar da crença mencionada há pouco. Para evitar mal-entendidos, porém, é oportuno esclarecer que o humor não é um elemento presente nos dez textos reunidos em Felicidade demais, inclusive em Ficção, do qual estamos falando. E isso não implica nenhum desabono. Pelo contrário.

Ficção é dividido em duas partes. Na primeira, a protagonista, jovem, é professora de música numa pequena cidade do Canadá e casada com Jon, a quem conhecera no colégio. Joyce acredita ser feliz e os primeiros parágrafos do conto descrevem sua frívola satisfação em verificar a repetição de certas sensações e gestos - o marido, carpinteiro, virando-se para cumprimentá-la enquanto ela manobra o carro na volta para casa, por exemplo. Mas, antes que Joyce se dê conta, esse arranjo se desfaz: nas palavras da narradora, "uma calamidade trivial".

Na segunda parte, a protagonista, agora madura, mora em Vancouver, é violoncelista profissional e casada com Matt, um professor universitário mais velho do que ela. Nessa altura da vida, "é uma mulher seca de olhar ansioso com um cabelo que parece um esfregão cinza-chumbo e uma discreta inclinação que pode ter nascido de tanto abraçar seu grande instrumento, ou simplesmente do costume de ser uma ouvinte prestativa e uma interlocutora solícita". Na festa de 60 anos de Matt, vê Christie O'Dell pela primeira vez e a impressão não é das melhores: "tipo de garota cuja missão na vida, pensou, era deixar os outros incomodados". Entretanto, ao topar com o rosto da escritora iniciante num cartaz promocional de livraria, tem a impressão de ser um semblante familiar, o que a reconecta inesperadamente com seu passado em Rough River, a cidadezinha onde fora professora de música, principalmente após a leitura de um dos contos do livro de O'Dell.

Gosto particularmente dessa história por aludir a algo em que sempre pensei muito: os investimentos afetivos infrutíferos (e eles são muitos) feitos ao longo de nossas vidas. Julga-se ter um relacionamento inabalável com alguém - seja amoroso, seja uma amizade - e, de súbito, percebe-se que aquilo carecia de profundidade e era menos sólido do que a princípio parecia. Mas o conto merece ser destacado, acima de tudo, por tematizar o ato de se converter memórias e experiências pessoais de vida em relatos ficcionais (um expediente corriqueiro dos escritores). E isso tem significações bem diferentes para quem escreve (portanto, sendo parte de um ofício, de um trabalho) e para quem lê (ainda mais quando essas memórias e experiências, com toda a sua carga emocional, lhe dizem respeito).

É impressionante também a habilidade de Alice Munro em realizar alterações no tempo das narrativas, transitando entre o passado e o presente dos personagens - e isso é bastante difícil de se fazer na prosa curta -, sem submeter o leitor a "solavancos" indesejáveis durante o fluxo de leitura. Essa característica da autora canadense foi ressaltada pelo escritor britânico Julian Barnes. Ele diz, numa breve matéria publicada pela revista New Yorker:

"Alice Munro can move characters through time in a way that no other writer can. You are not aware that time is passing, only that it has passed—in this, the reader resembles the characters, who also find that time has passed and that their lives have been changed, without their quite understanding how, when, and why. This rare ability partly explains why her short stories have the density and reach of other people’s novels" ².

Barnes tem razão também ao mencionar a densidade das narrativas dessa contista. Exemplos não faltariam. Num conto como Buracos-profundos, a transformação de um garoto curioso e inteligente em um asceta místico, paralelamente à mudança (menos radical, mas também expressiva) ocorrida com a mãe dele, poderia ser desdobrada num romance extenso, mas é narrada em apenas 25 páginas. A preferência por situar suas histórias em cidadezinhas no interior de seu país também exerce uma função importante no trabalho da escritora. Christopher Tayler, numa resenha sobre Felicidade demais para o jornal The Guardian, observou que:

"Munro's localism isn't antiquarian or defensive. Small-town Canada, it turns out, is an ideal place to observe the mysteries of sex and selfhood, of personal formation and deformation. But localism has also insulated her writing from windy notions of universality, giving it a sense of history and a network of social gradations and prohibitions to work with, as well as an understated Gothic turn. Rural or puritanical suspicions of pretension, which often oppress her characters, have left their impress on her writing style, too. Her prose is clean, precise and unmannered; her stories are attentive to emotion but sometimes almost witheringly unsentimental. She's also a storyteller rather than a maker of atmospheric vignettes, not afraid to shift chronology around or have dramatic things happen". 

De fato, a prosa de Munro é clara, precisa e sem afetação. E o "sutil sentido gótico" mencionado acima por Tayler, é também um grande atrativo, sobretudo em histórias como Wenlock Edge e Brincadeira de criança. Destaquemos esta última.

Mais uma vez as transições entre passado e presente acontecem, magistralmente. O conto segue aquela linha das histórias envolvendo pactos celebrados na infância, muitas vezes com resultados sinistros. A narradora, Marlene, conhecera num acampamento de verão uma outra menina, cujo nome - Charlene - e alguma semelhança física fizeram com que outros as tomassem como gêmeas. A identificação e a amizade entre as duas desenvolveram-se rapidamente, com Charlene tendo grande ascendência sobre a narradora. Peço atenção do(a) eventual leitor(a) para a seguinte passagem:

"Adultas fazem a mesma coisa que Charlene e eu fazíamos. Não digo contar as verrugas das costas e comparar o tamanho do dedos do pé, talvez. Mas quando se conhecem e simplesmente simpatizam uma com a outra sentem necessidade de estabelecer quais são as informações relevantes, os grandes acontecimentos públicos ou secretos, e depois vão preenchendo as lacunas entre eles. Quando sentem esse calor e essa avidez é totalmente impossível ficarem entediadas uma da outra. Darão risada de qualquer detalhe ou bobagem que estão contando, ou com a revelação de um egoísmo assombroso, uma frustração, crueldades, puras maldades. 
É preciso que haja uma grande confiança, é claro, mas essa confiança pode acontecer subitamente, de uma vez só. 
Foi o que observei. Deve ter começado naqueles longos períodos sentados em volta da fogueira mexendo o mingau ou coisa que o valha enquanto os homens estavam na mata sem poder falar porque espantaria os animais selvagens. (Estudei antropologia, mas sou uma antropóloga relapsa.) Observei mas nunca tomei parte nessas trocas femininas. Não para valer. Algumas vezes fingi porque me pareceu necessário, mas a mulher com quem eu devia fazer amizade sempre percebia meu fingimento e ficava confusa e desconfiada".

A dificuldade para construir amizades na idade madura decorre, sem dúvida, do que aconteceu a Verna, uma menina com certa deficiência mental não especificada na narrativa mas a quem Marlene temia e "odiava como algumas pessoas odeiam cobras ou taturanas ou ratos ou lesmas. Sem nenhum motivo razoável. Nem por qualquer dano que ela pudesse causar mas pelo modo como ela era capaz de mexer com as minhas vísceras e me deixar enjoada com a vida".

Brincadeira de criança é meu texto preferido em Felicidade demais.

Fiquei com vontade também de escrever um pouco sobre o conto que dá nome a este livro de Alice Munro. Mas, por ser uma narrativa bastante distinta em relação às demais e construída de um modo bem peculiar, falarei dela, mais demoradamente, noutra oportunidade

Christopher Tayler, na resenha que citei anteriormente - e aproveitando também a avaliação zombeteira dos contistas feita por Alice Munro mencionada lá no início da postagem -, afirmou que "far from hanging on to the gates of literature, her stories create a prowerfull illusion of bringing their readers up against unmediated life [...]" ("bem longe de estarem penduradas nos portões da literatura, suas histórias criam uma poderosa ilusão de educar seus leitores em oposição a vida direta").

É um bom jeito de definir o sortilégio da escrita de Alice Munro.

__________  
¹ MUNRO, Alice. Felicidade demais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [Tradução de Alexandre Barbosa de Souza]

² [tradução aproximada]: "Alice Munro pode mover os personagens através do tempo de um jeito que nenhum outro escritor consegue. Você não está consciente de que o tempo está passando, somente que ele passou - nisso, o leitor assemelha-se aos personagens, que também descobrem que o tempo passou e que suas vidas mudaram, sem entender bem como, quando e por quê. Essa rara habilidade explica parcialmente por que seus contos tem a densidade e o alcance dos romances de outas pessoas". 

³ [tradução aproximada]: "O localismo de Munro não é antiquado ou defensivo. Acontece que o Canadá das pequenas cidades é um lugar ideal para observar os mistérios do sexo e da individualidade, ou a formação e a deformação pessoal. Mas o localismo também protegeu sua escrita das prolixas noções de universalidade, dando a ela um senso de história e um cruzamento de gradações sociais e proibições com que trabalhar. bem como um sutil sentido gótico. Suspeições rurais ou puritanas de pretensão, que frequentemente oprimem seus personagens, deixaram sua impressão na escrita dela também. Sua prosa é limpa, precisa e sem afetação; suas histórias estão atentas à emoção, mas algumas vezes quase derrisoriamente desapaixonadas. Ela é também uma contadora de histórias ao invés de uma criadora de cenários atmosféricos, sem receio de alterar a cronologia ou fazer coisas dramáticas acontecerem".

BG de Hoje

Em 1998 o METALLICA lançou um CD duplo não muito bem recebido pelos fãs, mas do qual eu pessoalmente gosto muito - Garage Inc. O álbum é todo composto de covers. No disco II, há gravações mais amadoras ou menos trabalhadas em estúdio, como Stone Cold Crazy, do Queen, ou a sensacional Crash Course In Brain Surgery, de um obscuro grupo chamado Budgie (nesta última, o baixista ainda era o falecido Cliff Burton). No disco I, Whiskey In The Jar (originalmente gravada pelo Thin Lizzy) chegou a tocar nas rádios e a versão para Turn The Page, do cantor country Bob Seger, teve seu (dramático) clipe bastante exibido pela MTV na época. Mas as melhores covers, na minha opinião, foram It's Electric (originalmente gravada pelo Diamond Head) e Astronomy (do BLUE OYSTER CULT). Arrisco dizer que a versão do Metallica é melhor. Coloco as duas no BG e faça você a comparação.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Elogio da Loucura não ganharia likes se fosse publicado hoje





"Na verdade, nos enganamos redondamente quando queremos distinguir-nos do gênero humano, recusando-nos a nos adaptar aos tempos. [...] O contrário seria pretender que a comédia deixe de ser comédia. Além disso, se a natureza vos fez homens, a verdadeira prudência exige que não vos eleveis acima da condição humana. Em poucas palavras, de duas uma: ou dissimular intencionalmente com os seus semelhantes, ou correr ingenuamente o risco de se enganar com eles. E não será esta - indagam os sábios - outra espécie de loucura? - Quem o nega? Que me concedam, porém, que é essa a única maneira de cada qual fazer a sua pessoa aparecer na comédia do mundo".

Erasmo de Rotterdam - Elogio da Loucura



A burrice sempre triunfa.

Ao longo da história sempre houve mais (muito mais) pessoas burras do que pessoas inteligentes. Melhor dizendo: sempre houve mais (muito mais) indivíduos confortavelmente (e, às vezes, alegremente) adaptados à sua ignorância do que indivíduos dispostos a mitigar (dentro das condições possíveis) seu desconhecimento sobre as coisas e os fenômenos à nossa volta. A burrice, precisamos admitir, é mais disseminada entre a população do que a inteligência.

Basta olhar ao seu redor.

Quando me preparava para escrever este texto lembrei-me de uma passagem de Crime e castigo. Estamos no capítulo IV, sexta (e última) parte do romance. Raskólnikov, já sem forças para não se deixar apanhar, decide revelar à pobre Sônia o seu segredo. Mais uma vez o protagonista retoma a sua tese do "homem extraordinário", cujos atos só devem ser julgados tendo em vista aquilo que ele realizou ou as forças que mobilizou e arregimentou, sendo irrelevantes os meios empregados para isso (o exemplo paradigmático de sua tese é Napoleão Bonaparte). O estudante então começa a recordar a época em que passava horas e horas trancafiado na sua apertada e mísera habitação em São Petersburgo ¹:

"Vê, naquela época eu estava sempre me perguntando: por que eu sou tão tolo que, se os outros são tolos, se eu sei ao certo que são tolos, por que eu mesmo não quero ser mais inteligente? Mais tarde fiquei sabendo, Sônia, que se a gente for esperar que todos fiquem inteligentes, isso irá demorar demais... Depois fiquei sabendo ainda que isso nunca vai acontecer, que as pessoas não vão mudar, que não há ninguém que possa refazê-las e não vale a pena perder tempo. Sim, isso é assim! É a lei delas. A lei, Sônia! É assim!..."

Claro que qualquer um poderia simplesmente desprezar todo esse papo de Raskólnikov por se tratar de alguém (um ser ficcional, sei disso, OK?) que não está nada bem, psicologicamente falando, além de ter cometido dois assassinatos (convém dizer que, fiel à sua queda pelo melodrama - não obstante sua genialidade -, Dostoiévski garantirá uma humilde redenção ao seu personagem). Ainda, porém, que a tese do "homem extraordinário" de Raskólnikov seja inaceitável, sob um ponto de vista moral/ético, o excerto acima permanece válido para mim e interessa-nos sobretudo pelo seguinte trecho:

"[...] se a gente for esperar que todos fiquem inteligentes, isso irá demorar demais... Depois fiquei sabendo ainda que isso nunca vai acontecer, que as pessoas não vão mudar, que não há ninguém que possa refazê-las e não vale a pena perder tempo".
Raskólnikov olha para a burrice dos seres humanos como algo inextirpável. Tornar-se inteligente exige um esforço que poucos desejarão fazer ao longo da vida porque a burrice já está à mão, é reconfortante e se adequa muito bem aos "itens" mentais "de fábrica" da nossa espécie. Ser burro é gratuito e nada exige do sujeito: não requer aprendizado, tempo de dedicação, nem tampouco a mais módica das curiosidades ou o mais primário dos ceticismos. Dentro da "economia" psíquica, a burrice ocupa pouco espaço e tem custo baixíssimo. Daí ser perda de tempo, inútil mesmo, "esperar que todos fiquem inteligentes": há certas "vantagens" na ignorância. Na sua presunção e impaciência  para contornar esse problema, contudo, o personagem dostoieviskiano seguiu por um caminho violento, trágico - e malogrado.

Alguma escapatória possível?

Dias atrás li a seguinte observação do filósofo italiano Nuccio Ordine numa matéria sobre o seu livro A utilidade do inútil:

"O fato de [conhecimentos como o literário, o artístico, o filosófico e a ciência pura/não aplicada] serem imunes a qualquer expectativa de benefício [representa] uma forma de resistência aos egoísmos do presente, um antídoto contra a barbárie do útil, que chegou a corromper inclusive nossas relações sociais e nossos afetos íntimos".

Apesar de achar a palavra barbárie meio fora de lugar nessa declaração, concordo com Ordine em relação ao papel, teimoso e digno, que a literatura, a arte, a filosofia e a ciência pura podem ainda desempenhar num mundo excessivamente pragmático e hostil à imaginação. A questão que se coloca, entretanto, é: sendo a burrice (estreitamente relacionada, aliás, com os "egoísmos do presente" mencionados acima) a regra geral, como convencer outros de que o esforço voltado para esses conhecimentos, mesmo o pouco que se puder aprender, vale a pena?

E não se trata apenas disso. Esses conhecimentos "imunes a qualquer expectativa de benefício" levam, quase sempre, a uma visão menos ingênua e mais crítica da existência. Não são uma promessa de bem-aventurança, muito pelo contrário. Promovem um necessário desconforto em relação às noções - e pretensões - arrumadinhas de como viver. E pessoas burras não querem experimentar um tal abalo do pensamento. A ignorância, como vimos, é quase uma consolação. Pode até produzir a ilusão de felicidade. "Ignorance is bliss": não é o que diz o ditado?

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"Quem no mundo viverá mais feliz do que os vulgarmente chamados bobos, tolos, insensatos e imbecis?": é uma das perguntas feitas na obra-prima de Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura ², um de meus livros prediletos. Pouco antes, no parágrafo anterior a essa passagem, a "autopanegirista" (ou seja, a própria Loucura) já havia dito: "[...] infiro que os verdadeiros felizardos são os que mais se aproximam da índole e da estupidez dos brutos". Tenhamos em mente, contudo, que ainda não se trata aqui propriamente daqueles a quem estou chamando burros - indivíduos que, deliberadamente, permanecem imersos na sua ignorância. Os "bobos, tolos, insensatos e imbecis", nesse caso, correspondem àqueles a quem avaliaríamos hoje como pessoas com algum tipo de deficiência mental/intelectual (o Elogio da Loucura foi escrito em 1509 e publicado em 1511: outro zeitgeist, outra sensibilidade, outro vocabulário, distintos da atualidade - lembremos disso, por mais óbvio que seja, antes de dirigir increpações ao autor).

Todavia, o livro de Erasmo tem muito a dizer sobre os burros. E com o perdão do(a) eventual leitor(a), precisarei ser um pouco pedante.

Elogio da loucura, como a quase totalidade das obras elaboradas por eruditos naquela época, foi escrito em latim. Seu título original é Encomium, id est, Stultitiae Laus (em tradução literal, Louvor, isto é, Elogio da Loucura). A palavra stultitia deu origem, no português, às palavras estultícia e estultice, cujos sinônimos atuais costumam ser "tolice", "insensatez", "imbecilidade" e também "necedade", "inaptidão" e "estupidez". Portanto, estultice (que, antigamente, tinha a acepção de "loucura") e burrice são hoje termos equivalentes.

Há pouco eu escrevi que as pessoas burras são indivíduos deliberadamente ignorantes. "A ignorância" - lê-se no texto de Erasmo - "tem, pois, dois grandes privilégios: um que consiste em estar de perfeito acordo com o amor-próprio, e outro, que consiste em trazer em si a maior parte do gênero humano". Ou seja, o burro costuma ter a si mesmo em alta conta e nunca se sente sozinho, pois a maior parte da população é igualmente burra.

Escrevi também que a burrice é reconfortante. Erasmo - ou melhor, a Loucura - afirma que existe um "furor" dentro dos seres humanos compelindo-nos a "uma certa alienação de espírito que afasta do nosso ânimo qualquer preocupação incômoda, infundindo-lhe os mais suaves deleites. É justamente essa divagação que, como um insigne dom dos supremos deuses, deseja Cícero para si quando diz a Ático que não pode mais suportar o peso de tantos males". E arremata logo adiante:

"Dizem os sábios que é um grande mal estar enganado; eu [a Loucura], ao contrário, sustento que não estar é o maior de todos os males. É uma grande extravagância querer fazer consistir a felicidade do homem na realidade das coisas, quando essa realidade depende exclusivamente da opinião que dela se tem. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade. [...] Porque, se há verdades que, tendo sido bem demonstradas, não deixam lugar às dúvidas, quantas não serão - pergunto - as que perturbam a tranquilidade e os prazeres da vida? Os homens, enfim, querem ser enganados e estão sempre prontos a deixar o verdadeiro para correr atrás do falso".

Verdades perturbadoras impedem a felicidade alienada daquele que optou pela burrice. E numa espécie de mecanismo defensivo, quanto mais essas verdades perturbadoras irrompem, mais os indivíduos parecem entrincheirar-se na ignorância deliberada.

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Como se sabe, Erasmo valeu-se de seu escrito satírico para criticar determinadas práticas e instituições de seu tempo. Sem, infelizmente,  qualquer traço do talento e da ironia do pensador holandês, pretendo fazer o mesmo e, nesse caso, miro a pretensa sociabilidade da internet, especialmente nas mídias sociais.

Reafirmar um chavão neste momento acaba sendo inevitável. Vamos a ele.

Em si, a web é só uma ferramenta. Revolucionária, sem dúvida, tão importante quanto e mais poderosa até do que a difusão do texto impresso iniciada séculos atrás, além de ser tentacular de uma maneira tal nem sequer imaginada pelos meios de comunicação de massa surgidos no final do último milênio. Mas ainda assim, apenas uma ferramenta. O uso (humano, demasiado humano) desse instrumento fabuloso, contudo, é suscetível a juízos valorativos.

Provavelmente seja bastante precoce emitir julgamentos sobre o proveito (falo apenas das pessoas comuns) que tiramos da rede mundial de computadores atualmente (afinal, para usar uma expressão de Carlos Heitor Cony, vivemos na "era da internet lascada": difícil saber o que o futuro ainda nos reserva nesse campo, caso, claro, o planeta não se acabe numa catástrofe ambiental ou numa guerra nuclear). Arriscarei-me, contudo.

Em grande parte do tempo, tenho notado, as pessoas lançam mão da internet como uma espécie de "brinquedão", sejam elas crianças, adolescentes ou adultos. Explico. O uso é majoritariamente para diversão ou entretenimento (isso sem falar na propensão de muitos para bisbilhotar a vida alheia). Não me entenda mal, eventual leitor(a). Muitas vezes também estou apenas atrás de distração na web. Meu ponto, contudo, é: uma ferramenta tão transformadora como essa só está nos servindo para nos enternecermos com gifs de gatinhos e afundarmos a cara nos vídeo games? E, saindo dos passatempos inofensivos: a web conseguirá manter-se um ambiente saudável, sendo tão utilizada, como é nos dias de hoje, para o bullying virtual, a propagação do ódio e a instilação do obscurantismo e da intimidação? Aquelas projeções otimistas dos anos 1990 (penso, por exemplo, em livros como A vida digital, de Nicholas Negroponte, ou Cibercultura, de Pierre Lévy), que imaginavam tempos favoráveis ao desenvolvimento da compreensão, da inteligência e da educação colaborativa por meio da web, talvez precisem ser revistas. Para não me perder em generalizações e avaliações simplistas, entretanto, deixarei essa questão de lado para voltar ao Elogio da Loucura.

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Muitos são os alvos de Erasmo nesse livro. Os advogados, os comerciantes, os soldados e guerreiros, os religiosos e teólogos... E também os filósofos. Peço a atenção do(a) eventual leitor(a) para esta passagem:

"Convidai um sábio para um banquete, e vereis que ou conservará um profundo silêncio ou interromperá os demais com frívolas e importunas perguntas. Convidai-o para um baile, e dançará com a agilidade de um camelo. Levai-o a um espetáculo, e bastará o seu aspecto para impedir que o povo se divirta. [...] Entra o sábio em alguma palestra alegre? Logo todos se calam, como se tivessem visto o lobo. Trata-se porém, de comprar, de vender, de concluir um contrato, em suma, de fazer uma dessas coisas que diariamente sucedem a cada um? Tomareis o sábio mais por uma estátua do que por um homem a tal ponto se mostra ele embaraçado em cada negócio. Assim, o filósofo não é bom, nem para si, nem para o seu país, nem para os seus. Mostrando-se sempre novo no mundo, em oposição às opiniões e aos costumes da universalidade dos cidadãos, atrai o ódio de todos com sua diferença de sentimentos e de maneiras".

Ao indicar como podem ser ridículos os sábios/filósofos ou como seriam estes inábeis para "essas coisas que diariamente sucedem a cada um", Erasmo tem duas intenções, a meu ver. A primeira é transmitir um recado: nossas tentativas para sermos menos ignorantes, nossas buscas por maior sabedoria, não precisam ser, necessariamente, empreitadas sem prazer, feitas de modo enfezado ou desgostoso. Um pouco de bom humor não faz mal a ninguém. Além disso, essas tentativas e buscas não deveriam ser desculpas para descuidarmos dessas "coisas que diariamente sucedem a cada um", sob pena de ingressarmos numa outra forma de alienação, pretensamente mais "sublime". A segunda intenção - não imediatamente perceptível no excerto acima, mas expressa noutras partes do Elogio da Loucura - é reivindicar, apesar da derrisão aparente do texto, a importância dos sábios/filósofos (afinal, o autor tenciona estar entre eles), esses indivíduos que se colocam costumeiramente "em oposição às opiniões e aos costumes da universalidade dos cidadãos".

Como escrevi antes, a burrice é reconfortante, entre outros motivos, porque ela é partilhada pela maioria. Faça um rápido exercício, eventual leitor(a). Olhe com atenção para os(as) "amigos(as)" perfilados(as) na sua conta do Facebook. Quantos(as) destes(as) você considera inteligentes? Eu sei, eu sei, é muita soberba achar que se tem condição para fazer uma avaliação dessas, além de ser descortês e meio malvado. Não esquecendo também que temos a tendência - irresistível - de considerar inteligentes somente aqueles(as) cujas ideias e opiniões vão ao encontro das nossas. Ainda assim, mantenho a proposta. Ceda à tentação, eventual leitor(a). Este blogueiro já fez o exercício. O resultado? Bem, vá acompanhando...

Numa das melhores passagens do Elogio da Loucura (cheguei inclusive a reproduzi-la no Twitter semana passada, na tradução inglesa), Erasmo escreveu:

"[...] que é, afinal a vida humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo; cada qual representa o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe dos comediantes não o faz descer do palco. O mesmo ator aparece sob várias figuras, e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge em seguida, disfarçado em escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma". 
Conviver com outros é fingir. É isso o que Erasmo quer dizer com "comédia". Sabemos que sem dissimulação e hipocrisia não existiria vida civilizada. É o preço a se pagar. E para "aparecer na comédia do mundo", ou seja, para não ser ignorado pelos outros, o melhor alvitre, como diz o pensador lá na epígrafe deste texto, é não procurar qualquer meio de diferenciação individual: trata-se de "dissimular intencionalmente com seus semelhantes ou correr ingenuamente o risco de se enganar com eles".

Todos estamos carecas de saber que as mídias sociais (sobretudo Facebook e Instagram) servem para edulcorar a imagem de muita gente. Uma olhada mais atenta ou o simples contato face-a-face são suficientes para desmontar o embuste. Há também, claro, quem não seja tão falso. Mas isso não melhora o quadro geral, pelo menos do meu ponto de vista.

Recentemente, contrariei uma decisão tomada ano passado de não reatar contato no Facebook com gente que conheci noutras fases de minha vida: ex-colegas de escola, ex-colegas de trabalho, parentes, companheiros de esbórnia da juventude, etc. Entretanto, a quantidade de autoajuda barata, anti-intelectualismo, endosso a discursos de ódio e intolerância, proselitismo religioso, compartilhamento de notícias falsas e analfabetismo político encontrados na maioria dos perfis fizeram com que me arrependesse completamente de voltar a "rever" essas pessoas. Não estou disposto, pelos menos nesse caso, a "dissimular intencionalmente com [meus] semelhantes". Então voltei ao estágio anterior, desfazendo os contatos.

Narro essa situação pessoal porque ela ajuda a concluir o texto desta postagem. No trecho mais famoso do Elogio da Loucura, lê-se:

"Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos tratando com loucos. Por conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda opor obstáculo à torrente da multidão, só lhe posso dar um conselho: que, a exemplo de Timão, se retire para um deserto, a fim de aí gozar à vontade dos frutos de sua sabedoria".

Ir contra a corrente - e a corrente, quase sempre, é um fluxo de ignorância deliberada - é tarefa ingrata, árdua. Inútil talvez, já que, como disse lá no início, a burrice sempre vence. Combatê-la é quase como que se retirar para o deserto, pois acabamos sendo isolados - ao mesmo tempo em que nos isolamos - da "torrente da multidão", formada pelas pessoas estúpidas. Eu me pergunto quantas dessas pessoas incrivelmente burras vivendo no planeta conseguiriam deixar de lado sua estultice, pelo menos por uns poucos momentos, para ler um livro como o Elogio da Loucura. Mas pensando bem, isso não serviria para nada. Porque dificilmente essas pessoas realizariam a autocrítica ali sugerida. Ah, e certamente um grande número desses indivíduos participa do Facebook, já que a corporação criada por Mark Zuckerberg chegou aos 2 bilhões de usuários. Assim sendo, é possível dizer que, caso fosse publicado hoje - e talvez, para aumentar a ironia, sob a forma de "textões" dentro dessa mídia social -. um livro como Elogio da Loucura não ganharia muitos likes, pois expõe "a comédia do mundo" da qual a maioria de nós não quer nem saber.

Na próxima postagem, escreverei sobre duas narrativas do livro Felicidade demais, da escritora canadense Alice Munro.
__________
¹ DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Ed. 34, 2001 [Tradução e notas de Paulo Bezerra]

² ERASMO DE ROTTERDAM. Elogio da Loucura. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [Tradução e notas de Paulo M. Oliveira] (Col. Os pensadores)


BG de Hoje

Minha adolescência foi uma bosta, do início ao fim. Mas apenas no término dessa fase desgraçada é que a canção A vida não presta, gravada pelo LEO JAIME, fez todo o sentido pra mim.


segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Caetano Veloso, 75 anos


No último dia 7 de agosto, Caetano Veloso completou 75 anos. É uma idade considerável. Faz pensar. E lembrar.

A primeira música de sua autoria que eu ouvi é uma das que mais detesto até hoje: Atrás do trio elétrico.

Era criança, devia ter uns seis ou sete anos de idade. Uma de minhas irmãs escutava um disco. Tinha uma vaga ideia do que eram os trios elétricos. Achei a canção barulhenta e meio irritante.

A segunda foi Um índio. O rádio estava ligado. Pareceu-me estranha, tomei ojeriza. Ainda era criança (mas continuo não gostando agora, que estou velho).

Foi então que ouvi Canto do povo de um lugar. Alguém, mais uma vez, colocara um disco pra tocar, só não me recordo agora quem. Considerei-a linda naquele instante; hoje não me comove tanto. Mas naquela época, há mais de trinta e tantos anos, foi essa canção que me ligou à música do artista baiano.

E desde então as coisas mudaram.

Você que está lendo isso pode estar se perguntando: mas vem cá: precisa mesmo, em pleno 2017, escrever sobre esse cara, comentar sua obra, discutir sua atuação como figura pública?

Sim. E sabe por quê? Porque os gênios são inesgotáveis e falar de pessoas assim torna-se algo compulsivo, viciante para alguns, como este blogueiro.

Gênio?!? Você deve estar brincando! - outra pessoa, por acaso lendo este texto, acaba de falar para si mesma. Caetano Veloso - prossegue ela - já disse um sem-número de bobagens; já fez um caminhão de asneiras! Não passa de um "pseudointelectual de miolo mole" - o falecido ensaísta e crítico literário José Guilherme Merquior chamou-o assim certa vez, décadas atrás. E claro que há quem o detone, sem dó nem piedade, também hoje em dia, como o ex-editor da extinta (e saudosa) revista Bizz, André Forastieri (Quem ainda se importa com Caetano Veloso?)

Insisto, contudo. Gênio.

Um dia desses estava ouvindo Fora da ordem, faixa do disco Circuladô, lançado em 1991. Difícil não sentir o frescor - e o vigor - dessa canção, conservados mesmo após tanto tempo. Essa observação, penso eu, é válida também para Eu sou neguinha (que faz parte de um álbum lançado em 1987). E não estou me referindo às letras, assunto pra daqui a pouco. Falo da composição musical mesmo, das harmonias, do som... Peraí, não posso esquecer de Vaca Profana, minha Nossa Senhora dos Talentos Infindáveis!

E quanto àquelas, digamos, mais "datadas"?

Penso, por exemplo, em Tropicália. A meu ver, é uma canção monumental, ainda mais quando se considera aquele arranjo do Rogério Duprat. E foi gravada há 50 anos! Penso também no álbum Transa, gravado em Londres, durante o exílio do artista no início da década de 1970 (um de meus irmãos mais velhos, hoje falecido, adorava esse disco), um trabalho marcante, forte, independentemente da época em que foi produzido.

A propósito, peço a aquiescência do(a) eventual leitor(a) para uma digressão.


Entre os muitos males causados pela indústria musical ficou o detestável hábito, impregnado em muita gente, de colocar prazo de validade na produção artística. Muita gente (sobretudo adolescentes) acredita que, se uma canção ficou "velha", deve ser imediatamente substituída pelo hit do momento ou pelo experimento-indie-que-só-eu-e-outros-iluminados-como-eu-conhecem. Pra essas pessoas, escutar e gostar de coisa "velha" é ruim, ponto. Só um adendo: outro dia, ouvindo rádio por acaso, soube que a faixa Royals, da cantora neozelandesa Lorde, já é "jurássica" - e foi lançada em 2013! Essa ânsia infantil pós-moderna pelo eterno presente, enfraquecendo a capacidade das pessoas de manter uma perspectiva histórica (e, portanto, crítica, criteriosa) sobre os eventos, fatos e fenômenos, produz essa cretinice do "prazo de validade" aplicado à música a que me referi. Também explica outra estupidez: a inaptidão para ler livros que não sejam os best-sellers da hora. Falarei disso, porém, noutra ocasião.

Que me perdoe a babação de ovo aquele(a) que estiver lendo esta postagem, mas não consigo imaginar a cultura e a arte brasileiras da segunda metade do século passado sem a presença de Caetano Veloso. E é espantoso que um artista dessa envergadura seja tão acessível - tanto em relação ao seu trabalho, quanto em relação à comunicação com a coletividade e a mídia. Ele nunca fez o tipo recluso, cheio de não-me-toques, muito pelo contrário: faz questão de participar do debate público (algumas vezes com declarações infelizes e provocando polêmicas desnecessárias, tenho que admitir, porém). Mostras dessa comunicabilidade que acabei de mencionar podem ser vistas em espaços como o saudoso programa Chico & Caetano, em 1986, o blog Obra em progresso, na década passada, e a coluna assinada no jornal O Globo, entre 2010 e 2014. Agora, em 2017, por exemplo, concedeu entrevista para vários veículos, falando sobre todos os temas inquiridos (como na que foi publicada pela Folha de S. Paulo, quase toda voltada para suas opiniões sobre o atual cenário político do Brasil). 

E falando em entrevistas,  na conversa com o jornal El País, ao comentar o prêmio Nobel de Literatura concedido a Bob Dylan, Veloso fez a seguinte observação, em tom de brincadeira, como notou o repórter Carlos Galilea: "Há um atraso por parte da organização do Prêmio Nobel sobre a questão de alta e baixa cultura. É algo dos anos 1960 que eles estão resolvendo agora porque são o Nobel e não podiam fazê-lo mais rápido".

Como disse aqui no blog recentemente, o Nobel concedido a Dylan no ano passado pela Academia Sueca é o maior reconhecimento de que letras de canções populares muitas vezes são autênticas e valiosas criações literárias. E qualquer pessoa que compreenda minimamente de que matéria é feita a Literatura não teria dificuldade para incluir Caetano Veloso entre os maiores poetas brasileiros de todos os tempos. Arrisco dizer que ele não teve tanta projeção internacional (ainda que desfrute de alguma) apenas porque canta em português, mesmo sendo fluente em inglês e espanhol. Há, claro, composições suas em inglês e, principalmente nos últimos 20 anos, o artista tem gravado muitas canções em espanhol. Entretanto, a essência de sua obra está em português - e para nosso orgulho, claro! É pena, contudo, que a língua portuguesa não figure entre os mais prestigiados idiomas da história recente (para constatar isso, basta mencionar que, até hoje, só um autor lusófono - José Saramago, em 1998 - levou o Nobel de Literatura).

Vamos aproveitar, então, para falar um pouco de poesia. Noutra entrevista feita este ano (dessa vez para o site Tenho mais discos que amigos!), Caetano Veloso disse o seguinte, para responder a uma pergunta sobre O Quereres, uma de suas mais belas composições:

"Acho que a forma de poesia, com versos de dez sílabas, tem tradição em cantares nordestinos e está arraigada no subconsciente de qualquer brasileiro. As palavras ditas são atraentes, e mesmo antes de a gente entender o que está sendo dito em cada frase a gente se interessa por 'revólver', 'dinheiro', 'paixão'. A fórmula 'Onde queres… sou…' cria interesse no ouvinte. O resto é com o ritmo dos versos, a melodia, os sons – e o que as pessoas que vão atrás do que é dito que se segue cada frase até o fim. Quando conheci Maria Gadú, ela me mostrou que tinha, em sua casa, a letra de O Quereres escrita numa porta interna. Agora ela tem parte dessa letra tatuada numa das pernas".
Essa canção, por sinal. foi regravada para a abertura de uma telenovela recente da corporação de mídia dominante - estranha associação (ou talvez nem tanto) entre o apuro e a bobagem.

Outro exemplo inconteste, penso eu, do talento poético de Veloso é Luz do Sol. Não sei se já escrevi sobre isso aqui no blog, mas uma vez essa música me rendeu uma aula muito boa (algo bastante raro), quando eu era professor de Língua Portuguesa da rede estadual aqui de Minas Gerais (qualquer dia desses conto essa história).

Ainda pretendo dedicar uma série de postagens aqui no Besta Quadrada voltadas exclusivamente para a poética de Caetano Veloso. A ver.

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Antes de terminar, duas notas:

1) Não poderia deixar de mencionar, para ser honesto, o lamentável episódio da proibição de biografias não-autorizadas, que era defendida pela associação Procure saber, formada por um grupo de artistas, entre estes, Caetano Veloso (o texto de André Forastieri citado acima, ainda que não me agrade sua feição e não concorde com grande parte de seu conteúdo, acerta ao enfatizar esse caso). Embora o artista afirme hoje que houve histeria por parte da imprensa e da opinião pública, Veloso não tinha razão, já que adotou uma postura censora e antidemocrática. Por falar nisso, uma biografia sua, lançada este ano, desagradou-o bastante, pois foi considerada mal escrita.

2) Às vezes, Caetano Veloso, atuando apenas como intérprete, faz escolhas terríveis. É o caso, por exemplo, da dispensável (e pavorosa) versão feita por ele para Come As You Are, do Nirvana. Todo mundo saiu perdendo nessa: Caetano, a fantástica banda de Aberdeen e os ouvintes.

Na próxima postagem, escreverei sobre Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam.

BG de Hoje

O BG, claro, tinha que ser uma música de CAETANO VELOSO. Preferencialmente, das que mais gosto, Porém, qual escolher? São tantas. Milagres do PovoGema e Diferentemente já estiveram nessa seção; portanto, posso deixá-las de lado por enquanto. Mas e quanto a O Quereres, Gente, Fora da ordem, London London, Luz do sol, Eu sou neguinhaTrem das coresDom de iludir, Um comunistaPecado original... Acabei optando por Como dois e dois, canção nunca gravada, em estúdio, por Veloso. Gosto da sua levada lenta, do seu ar bluesy. A primeira vez que ouvi essa composição foi na voz de Roberto Carlos, naquele disco dele de 1971 (incluí essa versão também porque acho muito boa).