segunda-feira, 27 de julho de 2009

Max Weber - o apuro intelectual (4)

Apesar do crescente e intensivo processo de racionalização e intelectualização "que estamos sofrendo há milhares de anos", para Weber, a atividade científica ("a fração mais importante" desse processo) não consegue e (nem conseguirá ) dar um sentido "profundo" para a vida. Em outras palavras, a ciência não responde as perguntas verdadeiramente importantes que fazemos diante da existência - "Que devemos fazer? Como devemos viver?". Seria esta atividade, então, destituída de propósito, finalidade ou valor? Obviamente que não. Contudo, a ideia de progresso é inerente ao trabalho do cientista: tudo o que ele produz é feito com a certeza de que será superado (e assim deverá ser) em determinado momento futuro. Tal é a essência da atividade científica. E é essa mesma progressividade que provoca parte da angústia do homem civilizado e o faz questionar o sentido da vida. Para ilustrar seu ponto de vista - e isto é fascinante - Weber não lança mão de argumentos baseados na observação de outros cientistas. Ele prefere dialogar com um romancista (Tolstói) e um filósofo (Nietzsche).

Segundo John Patrick Diggins*,

"Tolstói, Weber e Nietzsche viram a história como essencialmente desprovida de sentido, uma sucessão absurda de forças e efeitos que permaneceriam sem significação até que o pensador se esforçasse para dar sentido aos eventos".


Em A ciência como vocação**, Weber, a partir de seu conceito de desencantamento do mundo, busca entender se a morte tem algum sentido, diante do "progresso" que a intelectualização promove. Ele faz a pergunta a Tolstói

"E sua resposta foi: para o homem civilizado, a morte não tem significado. E não o tem porque a vida individual do homem civilizado, colocado dentro de um 'progresso' infinito, segundo seu próprio sentido imanente, jamais deveria chegar ao fim, pois há sempre um passo a frente do lugar onde estamos, na marcha do progresso".


O pensador ainda acrescenta:

"E porque a morte não tem significado, a vida civilizada, como tal, é sem sentido; pelo seu 'progresso' ela imprime à morte a marca da falta de sentido. Em todos os seus últimos romances encontramos esse pensamento como a nota-chave da arte de Tolstói".

E quanto a Nietzsche? Weber observa que

"Depois da devastadora crítica feita por Nietzsche aos 'últimos homens' que 'inventaram a felicidade', posso deixar totalmente de lado o otimismo ingênuo no qual a ciência - isto é, a técnica de dominar a vida que depende da ciência - foi celebrada como o caminho para a felicidade".

Citando mais uma vez Diggins,

"Entre o orgulho aristocrático de Nietzsche e a humildade cristã de Tolstói reside a visão trágica da política de Weber. Em Nietzsche, a nobreza humana repousa na sua força para o autocontrole e a responsabilidade individual. Em Tolstoi, a salvação humana reside na autorresignação mística e na obediência às convicções interiores."

A ciência não é o caminho para a "verdade definitiva", para "Deus" ou para "a felicidade"; é um modo de tentar apreender a realidade que nos cerca e está longe de ser perfeita. Entretanto, Weber não deseja cair no que existe de pior nas atitudes irracionalistas. O que levanta uma questão ética.

A esse respeito, Rolando Lazarte*** observa que o sociólogo alemão não assume posição dogmática (bem ao contrário):
"A postura de Weber diante desse vazio de sentido da vida, que não poderia ser preenchido por uma ética racional (científica, teológica, burocrático-estatal ou outra), pode parecer fraca para quem espera receitas, programas ou doutrinas que assegurem a posse final do valor almejado (justiça, verdade, bem, felicidade)".

Concordo com Max Weber: a vida não tem sentido algum preexistente. Constroem-se, sempre, significados provisórios. E a reflexão apurada de um grande pensador ajuda nessa árdua, complexa e inevitável tarefa.
__________
* DIGGINS, John Patrick. Max Weber: a política e o espírito da tragédia. Rio de Janeiro: Record, 1999

** GERTH, H. H.; WRIGHT MILLS, C. (Org.) Max Weber: ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1963 [tradução de Waltensir Dutra]

*** LAZARTE, Rolando. Max Weber: ciência e valores. São Paulo: Cortez, 1996

Max Weber - o apuro intelectual (3)


Retomo, após breve interrupção (involuntária), a série de postagens a respeito da conferência A ciência como vocação*, de Max Weber. E aproveito para falar de um conceito-chave do pensamento weberiano: o desencantamento do mundo.

Segundo Tânia Quintaneiro (et al)**,

"A despeito da dimensão iluminista do seu pensamento, na qual a história revela-se como um progresso, existe um Weber pessimista que aponta para as consequências negativas, mas inevitáveis, do processo de racionalização o que dá a sua obra, certamente crítica, um tom de resignação".

Apenas para comparação, esse sociólogo distancia-se (e muito) de um Karl Marx, por exemplo, cuja visão teleológica da história carrega certo otimismo, não obstante seu caráter revolucionário. Mas observemos diretamente aquilo que escreveu Max Weber (acredito que vale a pena ler):

"[O processo de racionalização] Significará que nós, hoje por exemplo, sentados neste auditório, temos maior conhecimento das condições de vida em que existimos do que um índio americano ou um hotentote? Dificilmente. A menos que seja um físico, quem anda num bonde não tem ideia de como o carro se movimenta. E não precisa saber. Basta-lhe ' contar ' com o comportamento do bonde e orientar sua conduta de acordo com essa expectativa; mas nada sabe sobre o que é necessário para produzir o bonde ou movimentá-lo. O selvagem tem um conhecimento incomparavelmente maior sobre as suas ferramentas. Quando gastamos dinheiro hoje tenho certeza que, até mesmo se houver colegas de Economia Política neste auditório, cada um deles terá uma diferente resposta pronta para a pergunta: como é possível comprar alguma coisa com dinheiro - por vezes mais, por vezes menos? O selvagem sabe o que faz para conseguir sua alimentação diária e que instituições lhe servem nessa empresa. A crescente intelectualização e racionalização não indicam, portanto, um conhecimento maior ou geral das condições sob as quais vivemos. Significa mais alguma coisa, ou seja, o conhecimento ou a crença em que, se quiséssemos, poderíamos ter esse conhecimento a qualquer momento. Significa principalmente, portanto, que não há forças misteriosas incalculáveis, mas que podemos, em princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi desencantado. Já não precisamos recorrer aos meios mágicos para dominar ou implorar aos espíritos [...] Os meios técnicos e os cálculos realizam o serviço. Isto, acima de tudo, é o que significa a intelectualização".

Aqui não é necessário acrescentar mais nada. Mas, de certo modo, esta constatação não esvazia a vida de seu sentido mais "profundo"? A isto, Weber oferece uma brilhante reflexão. Contudo, trataremos dela na próxima - e última - postagem da série.

* GERTH, H. H.; WRIGHT MILLS, C. (Org.). Max Weber: ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1963 [tradução de Waltensir Dutra]

** QUINTANEIRO, Tânia; BARBOSA, Maria Lígia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia Gardênia de. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim e Weber. 2 ed. rev. amp. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Max Weber - o apuro intelectual (2)

Max Weber sabia o quanto é difícil desenvolver um trabalho significativo, realmente importante para a vida das pessoas, no campo intelectual. Vejamos o que ele diz a respeito das ideias:

"As ideias nos chegam quando lhes apraz, e não quando queremos. As melhores ideias ocorrem realmente à nossa mente da forma que Lhering [1818-1892, jurista, renovador do Direito] descreve: ao fumarmos um charuto no sofá; ou como Helmholtz [1821-1894, físico, criador da lei da conservação da energia] diz de si mesmo, com exatidão científica: quando caminhamos por uma rua lentamente; ou de qualquer outra forma semelhante. De qualquer modo, as ideias chegam quando não as esperamos, e não quando estamos pensando e procurando em nossa mesa de trabalho. Não obstante, elas certamente não nos ocorreriam se não tivéssemos pensado a mesa e buscado respostas com dedicação apaixonada".

Em passagem anterior de A ciência como vocação*, Weber já tinha chamado atenção para o fato de que "o entusiasmo e trabalho, e acima de tudo ambos em conjunto, é que criam a ideia". O pensador alemão também reconhece que o bom palpite de um diletante pode ser tão bom quanto o de um especialista. Mas existe uma diferença crucial: falta ao primeiro "um processo de trabalho firme e digno de confiança", pois "ele habitualmente não está em posição de controlar, estimar ou explorar a ideia em seus aspectos fundamentais". Fico pensando, então, na quantidade de platitudes presentes na tevê, saindo da boca de "celebridades", ou nas "palavras de sabedoria" a infestar as páginas pessoais da Internet...

Neste campo da criação mental e do raciocínio, contudo, preciso ainda lembrar o valor que Weber dá ao que chamamos (imperfeitamente) de inspiração. Numa comparação entre ciência e arte, ele afirma:

"[...] a inspiração não tem um papel menor na ciência do que na arte. É noção infantil pensar que um matemático alcança qualquer resultado cientificamente valioso sentado à sua mesa com uma régua, máquina de calcular ou outros meios mecânicos. A imaginação matemática de um Weirstrass [1815-1897, matemático, um dos fundadores da teoria das funções] é naturalmente orientada de modo muito diferente, em significado e resultado, da imaginação de um artista, e difere basicamente em qualidade. Mas os processos psicológicos não diferem. São um frenesi (no sentido da ' mania ' de Platão) e ' inspiração ' ".

Ironicamente, aqui, Weber acaba comportando-se como um diletante, porque ele foi muitas coisas, mas não era psicólogo...

Na próxima postagem, falo da relação desta conferência com a Literatura e do belíssimo conceito de desencantamento do mundo.

* GERTH, H. H.; WRIGTH MILLS, C. (Org.) Max Weber: ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1963 (trad. Waltensir Dutra)

terça-feira, 14 de julho de 2009

Max Weber - o apuro intelectual (1)

Há textos não-ficcionais de inigualável beleza. Tenho certeza de que, ao longo de sua formação como leitor, você se deparou com exemplares desse tipo. No meu caso, A ciência como vocação*, de Max Weber, ocupa o primeiro lugar entre os escritos - fora da Literatura - que mais me emocionaram.

Como se sabe, A ciência como vocação foi originalmente apresentado, na forma de conferência, a alunos do curso de Economia, na Universidade de Munique, e publicado um ano antes da morte de Weber, ocorrida em 1920. Esse dado é importante na medida em que serve para atestar que o autor alemão o escreveu no auge de sua experiência, como pensador e cientista.

Seu escrito foi muito mais do que uma palestra para estudantes. De acordo com o historiador John Patrick Diggins, autor de um bom ensaio biográfico sobre o sociólogo**,

"A conferência de Weber era tanto sobre educação quanto sobre ciência, particularmente sobre a escolha de uma carreira universitária; ao final, ela se torna um discurso filosófico sobre o crepúsculo da razão e de antigas verdades que perderam a validade. Como uma espécie de sermão, ela também adverte os estudantes para praticarem a neutralidade de valor, para não julgarem o que eles ainda têm que entender, e, ao mesmo tempo, para se pautarem pelos padrões mais elevados da integridade intelectual".

Para além de seu conteúdo - que julgo extraordinário - A ciência como vocação tem o mérito de conjugar, num mesmo discurso, a análise sociológica, a sofisticação filosófica e o diálogo com a Literatura. Vejamos, por exemplo, este trecho em que Weber reflete sobre a especialização, inerente ao atual estágio do conhecimento formal:

"Nosso próprio trabalho deve, inevitavelmente, continuar altamente imperfeito. Somente pela especialização rigorosa pode o trabalhador científico adquirir plena consciência, de uma vez por todas, e talvez não tenha outra oportunidade em sua vida, de ter realizado alguma coisa duradoura. Uma realização verdadeiramente definitiva e boa é, hoje, sempre uma realização especializada. E quem não tiver a capacidade de colocar antolhos, por assim dizer, e chegar à ideia de que a sorte de sua alma depende de fazer ou não a conjetura correta, neste trecho deste manuscrito, bem pode manter-se longe da ciência. Jamais terá o que podemos chamar ' de experiência pessoal ' da ciência. Sem essa estranha embriaguez, ridicularizada por todos os que vivem fora do ambiente; sem esta paixão, esta afirmação de que ' milhares de anos devem passar antes que ingresseis na vida e milhares mais esperam em silêncio ' - segundo se tenha ou não êxito em fazer essa conjetura; sem isso não haverá vocação para a ciência e seria melhor que vos dedicásseis a qualquer outra coisa. Pois nada é digno do homem como homem, a menos que ele possa empenhar-se na sua realização com dedicação apaixonada".

Volto à conferência, destacando outros pontos, nas próxima postagens.

* Há muitas traduções deste texto de Weber disponíveis em língua portuguesa. As citações presentes nessa postagem (e nas próximas desta série) foram retiradas de GERTH, H. H.; WRIGHT MILLS, C. (Org.) Max Weber: ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1963 (a tradução é de Waltensir Dutra). Encontrei, on line, esta outra tradução, em arquivo PDF: clique aqui (Acesso em 22/06/2009)

** DIGGINS, John Patrick. Max Weber: a política e o espírito da tragédia. Rio de Janeiro: Record, 1999

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Coleções



É difícil adaptar-se a um novo local de trabalho. Principalmente pra quem, como eu, não domina a nobre arte da cara-de-pau. Aos poucos, tudo se ajeita. Ou não. Pouco me importa.

Observo a biblioteca; fico contente. Muito mais livros (como eu supunha) do que na antiga escola. E vi algumas coleções que marcaram (e marcam) minha trajetória de leitor.

De início, encontrei exemplares da série Grandes Sucessos, da Abril Cultural, publicados no início dos anos 1980. Cá estão Horace McCoy, Philip Roth, Nikolai Gógol, Aldous Huxley, Scott Fitzgerald, James Baldwin e muitos outros. Da mesma Abril Cultural, há também exemplares da série clássica (cujo nome desconheço, mas que foi lançada no final dos anos 1970 e início da década seguinte) com autores como Shakespeare, Balzac, Joseph Conrad, Herman Melville, Victor Hugo... Lembro, quando ainda era criança, de ver minha irmã mais velha trazendo para casa aqueles livros volumosos, capa dura, e que eram vendidos periodicamente nas bancas de revistas. Passados tantos anos, alguns livros da coleção dela se perderam. Contudo, agora posso (re)ler quase todos, disponíveis na "nova" biblioteca.

Ocorreu-me agora outra lembrança: livros que chegavam pelo correio, graças às encomendas de meu irmão (já falecido), sócio do extinto (e saudoso) Círculo do Livro. Há algumas dezenas de exemplares do Círculo aqui onde trabalho.

Essas coleções - que uniam um pouco de tudo: tino comercial dos editores, facilidade de compra, consumidores não tão exigentes quanto ao acabamento material do produto - ocuparam (e ocupam) um lugar muito especial, tenho certeza, na memória de milhares de leitores Brasil afora.

Creio também ter sido o caso da coleção Vaga-lume, da série Para Gostar de Ler e os clássicos das Literaturas Brasileira e Portuguesa que integravam a coleção Bom Livro - todas publicadas pela Ática - e que eram execradas pela crítica especializada, insatisfeita com a qualidade editorial das mesmas (eu sempre gostei...).

Acredito que a sofisticação que cada leitor atinge, progressivamente, é perseguida página a página. E coleções desse tipo podem servir como passo inicial nesse percurso.