sábado, 30 de abril de 2011

Ruth Rocha, 80 anos




"[...] Teve o lançamento dos livros e a Ana Maria Machado e a Sylvia Ortoff e o João Marinho e a Anna Flora e a Edy Lima vieram e assinaram muitos autógrafos nos livros deles.
         Eu fui também e ganhei das crianças o Prêmio Jacaré, que era um prêmio que elas inventaram".

Ruth Rocha, em Atrás da porta

No dia 2 de março de 1931 nascia Ruth Rocha. A escritora paulistana, a partir da década de 1970, tornou-se referência nacional quando se pensa em qualidade na Literatura Infantil. Não poderia deixar de falar dela no ano de seu octogésimo aniversário.

Numa entrevista publicada em 2008*(disponível aqui), diante da pergunta Como reage quando os críticos dizem que literatura infantil é "mais fácil"?, Ruth Rocha faz as seguintes observações:

"[...] Acho literatura infantil importante e está cheio de grande escritor que escreveu para criança e quebrou a cara. Escrever para criança ou é fácil ou é impossível. Ou você tem ligação com criança, cumplicidade, ou não tem. E se tem, contar uma história não é difícil, não sai forçada. Literatura infantil é um gênero, como teatro, poesia. Para mim não é difícil, é normal, é trabalho. Acho que sei o caminho. Ao passo que escrever para adulto, eu não sei. Já quis, não deu. O engraçado é que minha leitura é 90% adulta. Só às vezes leio literatura infantil. Mas em grande parte, acho tudo muito ruim".

Penso que a escritora tem autoridade para falar; ela realmente "sabe o caminho". Fiz o teste recentemente. Li, para algumas turmas de crianças com as quais trabalho, o livro mais famoso de Ruth Rocha, Marcelo, marmelo, martelo (Editora Salamandra), publicado pela primeira vez em 1976. E é notável como a história do menino inconformado com a arbitrariedade lexical "funciona" e faz rir até hoje.

Em outro trecho da entrevista, a escritora critica o papel das editoras: "A editora não tem que dar rumo, pautar a literatura. A literatura tem como maior objetivo ser nova, fresca, nunca pré-pautada". Tudo se torna mas complexo, porém, se pensarmos que, a partir da consolidação de um mercado livreiro no país, os editores tornaram-se atores destacados da cena, para o "bem" ou para o "mal" dos artistas (particularmente no segmento de obras infantis), indo além do papel de publishers. Mas isso é assunto para outra postagem...

Meus prediletos entre os trabalhos de Ruth Rocha? Além dos (justamente) celebrados Marcelo, marmelo, martelo e O reizinho mandão,  incluiria o texto, de "inspiração antropológica", Este admirável mundo louco (no qual um alienígena produz um relatório sobre o que observou numa visita ao planeta Terra); Ruth Rocha conta a Odisseia (e a escritora, mesmo adaptando o clássico para leitores mais jovens, não dilui a narrativa, mantendo, por exemplo, até alguns daqueles epítetos grandiloquentes com os quais Homero designava certos personagens); e Historinhas malcriadas (em que se encontra a engraçadíssima Apanhei assim mesmo, contando o aperto de um garoto que, para disfarçar o cheiro dos cigarros que fumara escondido, "inteligentemente", lava a boca com pinga...)

Obrigado, Ruth Rocha, por ajudar a fazer do meu trabalho algo mais instigante e criativo!

* A encantadora de crianças. Língua Portuguesa, São Paulo, ano 3, n. 32, p. 12-16, jun. 2008  - Editora Segmento [entrevista concedida a Rachel Bonino]

Conheça o site da artista: http://ww2.uol.com.br/ruthrocha/home.htm

BG de Hoje

Acho meio chato todo esse revival em torno dos anos 1980. Muito programa de rádio, muita festa temática, muitas bandas covers... Já encheu o saco, penso eu. Mas uma canção que não me canso de ouvir - mesmo reproduzida exaustivamente - é  Tempos Modernos,  de LULU SANTOS; abaixo, na versão acústica para a MTV.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Procura-se (2)


"Tenho sonhado às vezes que, quando chegar o Dia do Juízo e os grandes conquistadores, advogados e estadistas forem receber suas recompensas - suas coroas, lauréis, nomes gravados indelevelmente em mármore imperecível - , o Todo Poderoso irá se voltar para Pedro e dirá, não sem certa inveja quando nos vir chegando com nossos livros embaixo do braço: 'Veja, esses não precisam de recompensa. Não temos nada para lhes dar. Eles amaram a leitura' ".

Virginia Woolf, How should one read book

 
 
 
Peço, por gentileza, a leitura atenta deste trecho de Uma história da leitura*, de Alberto Manguel:

"Sentada diante de mim no metrô de Toronto, uma mulher está lendo a edição Penguin de Labirintos, de Borges. Eu quero chamá-la, quero acenar-lhe, sinalizar que também sou daquela religião. Ela cuja face esqueci, cujas roupas mal notei, jovem ou velha, não sei dizer, está mais próxima de mim, pelo mero ato de segurar aquele determinado livro nas mãos, do que muitas outras pessoas que vejo diariamente".

Tal sensação já foi experimentada por qualquer leitor de verdade. Não exageraria, entretanto, como faz Manguel, ao dizer que integramos uma religião. Talvez uma seita, quem sabe?...

Decidi permanecer na blogosfera porque acredito ser necessário insistir na procura desse(a) "próximo(a)".

Estou certo de que há apreciadores de Literatura espalhados por aí; desejo encontrar esses irmãos de armas. Melhor dizendo, irmãos de livros.

Iluminado pela beleza de certos versos ou fascinado pela engenhosidade de um ensaio bem escrito, não ligarei para nenhum dos "contatos" da agenda de telefones, pois sei que nenhum deles quererá compartilhar essa emoção comigo. Ao terminar um romance fabuloso, não existirá ao menos um parceiro de copo junto ao qual relembrarei certos personagens, passagens inesquecíveis, alguns felizes arrebatamentos. Com franqueza, entre parentes, colegas, amigos e conhecidos, pessoas que encontro em casa, no trabalho, nos bares, não há sequer um leitor.

Mas peço não confundir o que aqui vai escrito com a descrição lamurienta de um estado de solidão ou isolamento.

Falando sobre a invenção dos óculos, objetos a serem lembrados quando se quer contar uma história da leitura, Alberto Manguel escreveu:

"No final do século XV, os óculos já eram suficientemente conhecidos para simbolizar não somente o prestígio da leitura, mas também seus excessos. A maioria dos leitores, naquele tempo como agora, passou em algum momento pela humilhação de ouvir que sua ocupação é repreensível [...] Preguiçoso, débil, pretensioso, pedante, elitista - estes são alguns dos epítetos que acabaram associados ao intelectual distraído, ao leitor míope, ao rato de biblioteca, ao nerd. Enterrado nos livros, isolado do mundo dos fatos, do mundo de carne e osso, sentindo-se superior aos não familiarizados com as palavras preservadas entre capas poeirentas, o leitor de óculos que pretendia saber o que Deus, em sua infinita sabedoria, havia escondido, era considerado um louco, e os óculos tornaram-se emblemas da arrogância intelectual".

Talvez meus óculos e meus gestos - como manter este blog - simbolizem tudo isso. Contudo, posso e faço questão de afirmar que hoje, profundamente, sou um leitor de Literatura.

E espero que você também seja.
____________
* MANGUEL, Alberto. Um história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 [ tradução de Pedro Maia Soares]

BG de Hoje

O MOTÖRHEAD, obviamente, não inventou o rock "pauleira" (como gosto de dizer, usando uma gíria bem fora de moda...). Mas ajudou a dar forma a todo o negócio. Abaixo, a clássica Love me like a reptile.

sábado, 23 de abril de 2011

Procura-se (1)


"Todos esses são leitores, e seus gestos, sua arte, o prazer, a responsabilidade e o poder que derivam da leitura, tudo tem muito em comum comigo.
Não estou sozinho".

Alberto Manguel

 
Num espirituoso apontamento feito nos idos de 1970*, Mario Quintana prognosticou:

"2005

Com a decadência da arte da leitura, daqui a trinta anos os nossos romancistas serão reeditados exclusivamente em histórias de quadrinhos...
A grande consolação é que jamais poderão fazer uma coisa dessas com os poetas.
A poesia é irredutível".

Dois pontos: 1) Quintana chama de arte o ato de ler; 2) A permanência dos longos textos em prosa tem futuro incerto. Será? Dúvidas à parte, o poeta gaúcho, habilmente, puxa brasa para sua sardinha...

Meses atrás, reli um magnífico trabalho de Alberto Manguel** e só então compreendendi o quanto suas observações dão alento à sobrevida deste blog. Escreve ele:

"Os leitores são maltratados em pátios de escolas e em vestiários tanto quanto nas repartições do governo e nas prisões. Em quase toda parte, a comunidade de leitores tem uma reputação ambígua que advém de sua autoridade adquirida e de seu poder percebido. Algo na relação entre um leitor e um livro é reconhecido como sábio e frutífero, mas é também visto como desdenhosamente exclusivo e excludente, talvez porque a imagem de um indivíduo enroscado num canto, aparentemente esquecido dos grunhidos do mundo, sugerisse privacidade impenetrável, olhos egoístas e ação dissimulada singular ('saia e vá viver!' dizia minha mãe quando me via lendo, como se minha atividade silenciosa contradissesse seu sentido do que significava estar vivo). O medo popular do que um leitor possa fazer entre as páginas de um livro é semelhante ao medo intemporal que os homens têm do que as mulheres possam fazer em lugares secretos de seus corpos, e do que as bruxas e os alquimistas possam fazer em segredo, atrás de portas trancadas. O marfim, de acordo com Virgílio, é o material de que é feito o Portal dos Sonhos Falsos; segundo Sainte-Beuve, é também o material de que é feita a torre do leitor".

Nesse momento dirijo-me a você, leitor(a) - no sentido pleno do termo -; particularmente, ao(à) leitor(a) de Literatura. Desde o advento da escrita, formamos uma contraditória confrariazinha: numas vezes considerada elitista; noutras, simplesmente ignorada. Prestigiosa em certos tempos; noutros, desprezada.

Busquemo-nos. É o que proponho.
______________
* QUINTANA, Mario. A vaca e o hipogrifo. 3 ed. São Paulo: Globo, 2006

** MANGUEL, Alberto. Um história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 [tradução de Pedro Maia Soares]

BG de Hoje

Isso é que é uma boa letra de música popular: ZECA PAGODINHO, SPC:

"Precisei de roupa nova
Mas sem prova de salário
Combinamos: eu pagava,
Você fez o crediário.
Nosso caso foi pra cova
E a roupa pro armário.


E depois você quis manchar meu nome
dentro do meu metier
Mexeu com a moral de um homem
Vou me vingar de você:


Eu vou sujar seu nome no SPC!"

sexta-feira, 15 de abril de 2011

A Literatura como direito


"Ler literatura é uma forma de acesso a esse patrimônio [artístico, cultural e histórico representado pelas próprias obras literárias], confirma que está sendo reconhecido e respeitado o direito de cada cidadão a essa herança, atesta que não estamos nos deixando roubar. E nos insere numa família de leitores, com quem podemos trocar ideias e experiências e nos projetar para o futuro. Aceitar que numa sociedade podemos ter gente que nunca vai ter a menor oportunidade de ter acesso a uma leitura literária é uma forma perversa de compactuarmos com a exclusão. Não combina com quem pretende ser democrático".

Ana Maria Machado*

É quase impossível, para os leitores - no sentido pleno e visceral dessa palavra -,  deixar de falar sobre aquilo que leem. Não nos contemos. Estamos sempre em busca de aliados, outros que, como nós, indiquem seus périplos de leitura, tragam suas impressões e preferências, ofereçam sua cultura livresca acumulada para ser objeto de intercâmbio e com isso chegarmos a... Chegarmos a quê? Não me importa agora.

Pensando nos dissabores e percalços que fazem parte do dia-a-dia na escola pública onde trabalho, decidi reler alguns textos cujas clareza e serenidade  (não obstante seu "chamado à ação") servem de estímulo para não esmorecer. Falemos deles.

. . . . . .

Há mais de dez anos convivo com este artigo. Sempre volto às suas páginas com satisfação. Em Para que serve a literatura infantil? ** (disponível aqui), Graça Paulino manda um elegante recado aos utilitaristas rasteiros (e - que lástima! - como o ambiente escolar está infestado deles...).

"Quando pais ou professores do Ensino Fundamental perguntam 'afinal, que finalidade a leitura dessas historinhas pelas crianças pode ter?', as respostas não são simples, nem diretas".

Para os defensores da leitura literária, deter-se num bom livro, artisticamente elaborado, "não é perda de tempo em nossa sociedade de hoje, em que a vida se faz de enigmas e de rápidas transformações. A arte nos permite conhecer melhor o existente, ao percebermos outras possibilidades de existir".

Mas, "diriam os 'práticos', arte para quê? É perda de tempo, é 'frescura' de gente desocupada".

Essa objeção dos "práticos" é poderosa, fora (e, infelizmente, também dentro) das escolas. Há algo a fazer?

"Imagino-me " - escreve Graça Paulino - "como professora, lendo esse poema [Ismália, de Alphonsus de Guimaraens, citado no artigo], junto com meus alunos de 4ª série. Apenas ler, e só continuar com o assunto se requisitada. Ridícula? Sinceramente, não sei. Quatro, com pessimismo, ou 14, na melhor das hipóteses, dos meus 40 alunos, participariam do encanto. Mas, se no início de cada aula, nós ( porque com o tempo surgiriam outros leitores de poemas, além de mim ), se gastássemos dois minutos para ler um poema, talvez no fim do ano, seriam mais quatro a prestar atenção".

Porém, não caberia à escola enfatizar a "leitura funcional, que se não dá dinheiro, pelo menos ajuda o cidadão-leitor a defender condições um pouco mais dignas de sobrevivência?"

A própria autora responde:

"Ora, funcional, na sociedade de amanhã [...] é impensável hoje, como se fosse algo já pronto... Na rapidez com que a tecnologia se move, corrermos atrás dela é inútil. Mais 'funcional', hoje, talvez seja mesmo esse despertar da sensibilidade para aquilo nunca visto ou previsto".

E, mais à frente, acrescenta: "O futuro? Nem a Deus nem ao computador pertence com exclusividade".

. . . . . .

A partir de uma associação aparentemente inusitada (direitos humanos e literatura) Antonio Candido elaborou uma palestra essencial (e um dos seus escritos que mais me marcou). Em O direito à literatura *** (disponível aqui), o crítico literário faz a paradoxal observação (nem por isso menos verificável): "Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização".

Mesmo reconhecendo que "um traço sinistro do nosso tempo é saber que é possível a solução de tantos problemas e no entanto não se empenhar nela", o autor prossegue otimista, afirmando que "somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça [...]"

A fruição da arte deve ser arrolada na lista dos "bens fundamentais" aos quais todos devem ter direito? Ler Literatura pode se equivaler, de alguma forma, àquelas outras "necessidades profundas do ser humano", àquelas "necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos de frustração mutiladora?"

Para Candido, "assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura [e a arte em geral]", pois "a literatura é o sonho acordado das civilizações".

Segundo ele, "toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção".

O fecho da palestra é quase uma convocação:

"Portanto, a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura. A distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar e manter uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis de fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável".

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Recuperei o fôlego. Mas estou certo de que a acomodação e o absenteísmo de alguns colegas(?), além da agressividade e da indiferença desrespeitosa de um número significativo de estudantes vão esgotá-lo mais rápido do que eu desejaria.

* MACHADO, Ana Maria. Literatura - o direito a uma herança. In: __________. Texturas: sobre leitura e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 126-137

** PAULINO, Graça. Para que serve a literatura infantil? Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 5, n. 25, jan./fev. 1999, p. 51-57

*** CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In:__________. Vários escritos. 3 ed. rev. ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995 [a palestra foi proferida em 1988]

BG de Hoje

DAVE MATTHEWS, VINCE GILL E STING, num tributo aos Beatles, cantando I saw her standing there.