quinta-feira, 28 de abril de 2016

"Alma de bandido tímido" (II)


Em 1955, o crítico literário Eugênio Gomes assim se expressou a respeito do escritor Lima Barreto*: "Seus extravasamentos de ressentido não obedeciam a nenhuma conveniência, certamente por efeito de uma neurose exacerbada após a alucinação de seu pai e, mais tarde, pela dipsomania, tão responsável por seus desregramentos de vida". E a coisa fica pior:

"O fato é que Lima Barreto atraiu para si o inconsciente coletivo da gente de cor, em sua época, quando, entretanto, muitos outros mestiços de talento ocupavam posições de relevo na sociedade, nas letras e na alta política do país. De outro modo não se compreende que tivesse dado tão exageradas proporções a uma luta de competições que, embora cruel e inumana a certos aspectos, só podia abater os fracos e inaptos".

A antipatia (diria até a animosidade) do crítico para com o autor de O homem que sabia javanês é patente. Mas não é aí que está o problema de sua análise (afinal, a crítica literária profissional não é feita - ou pelo menos não deveria ser feita - apenas com os livros e autores ou autoras dos quais se gosta). A posição de Eugênio Gomes é baseada, primeiro, num psicologismo um tanto capenga. E, na sequência, o crítico demonstra total desconhecimento dos mecanismos de "filtragem" social (leia-se exclusão) operantes na sociedade brasileira, impedindo a ascensão de determinados grupos sociais (como a população negra) a muitos postos e "posições de relevo", mesmo em se tratando de "mestiços de talento".

Por outro lado, só para efeito de comparação, vejamos como Eugênio Gomes se refere a outro escritor - Coelho Neto - na mesma ocasião:

"Dotado de extraordinária imaginação e de grande força criadora, naturalmente eloquente e podendo servir-se, ao correr da pena, de um inexcedível vocabulário (calculado mais ou menos em vinte mil palavras), Coelho Neto pode ser considerado, no domínio da prosa, um escritor dos mais completos, devendo seus romances e crônicas, contos e críticas, e mesmo suas peças de teatro, ser colocadas entre os melhores dos nossos melhores autores".

Agora em 2016, percebemos o quanto tal posicionamento é revelador da falta de visão do crítico, pois ainda lemos Lima Barreto (os que são leitores de verdade, naturalmente) em nossos dias, cientes de sua importância. Alguém aí, entretanto, saberia mencionar ao menos o título de um livro qualquer de Coelho Neto (não vale olhar no Google, hein)?

Eugênio Gomes assemelha-se um pouco ao Floc, personagem de Recordações do escritor Isaías Caminha**. Segundo o narrador, a crítica de Floc "não obedecia a nenhum sistema, não seguia escola alguma. As suas regras estéticas eram as suas relações com o autor, as recomendações recebidas, os títulos universitários, o nascimento e a condição social" (não custa lembrar que o escritor tão incensado por Eugênio Gomes - embasbacado com o vocabulário de "mais ou menos vinte mil palavras" de Coelho Neto - foi deputado federal e presidiu a Academia Brasileira de Letras).

Lima Barreto não gostava de Coelho Neto. Tanto que o satirizou implacavelmente em seu romance de estreia, na figura de Veiga Filho, um sujeito que teve a desfaçatez de escrever um texto elogioso à própria obra para ser publicado no jornal como se o enaltecimento partisse de outrem. Claro que este não foi o caso do panegírico feito por Eugênio Gomes a Coelho Neto, mencionado acima. Ainda assim, observamos nele o exemplo significativo de um modelo de crítica literária que se distancia dos estudos de caráter universitário/acadêmico, sustentados por um substrato teórico, forma atual assumida pela crítica literária mais rigorosa. Importante dizer que esses estudos (de circulação não muito ampla, reduzida ao intramuros das universidades) coexistem com a crítica puramente subjetivista, bem mais difundida entre o público em geral, cuja permanência pode ser atestada facilmente no jornalismo ou em centenas de milhares de páginas espalhadas na web***.

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Costumo considerar Lima Barreto um de meus heróis. Entretanto, não se deve esquecer que ele foi, antes de mais nada, um ser humano, contraditório muitas vezes. Noutras ocasiões, revelando algo de si nada admirável.

A tese de doutorado Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto**** apesar de reconhecer os méritos do escritor, buscou não mitificá-lo. O pesquisador Denilson Botelho não omitiu a dualidade vivida pelo artista. O indivíduo que “jamais renegará as suas origens”, morador do subúrbio e funcionário público de salário parco, é também aquele que, ao insistir e lutar por sua participação nos meios mais intelectualizados,

chegará mesmo a expressar desprezo e ódio pela gente simples com a qual convive. Embora seja ao lado dela que sempre colocará a sua literatura militante, admite não suportar a convivência com boa parte dessa camada mais pobre da população. Age, desta forma, como um intelectual que pensa num projeto para as classes populares, das quais não faz parte”.

Para corroborar o que diz, o pesquisador reproduz em sua tese trechos do Diário íntimo***** do escritor (só publicado em 1953, 21 anos após a morte deste). A certa altura, Lima Barreto anota:

“Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer, em vida comum com eles, pelo menos com os que vivo, que, sem reconhecerem a minha superioridade, absolutamente não têm por mim nenhum respeito e nenhum amor que lhes fizesse obedecer cegamente”

A confissão é dura, indigna, mas também dolorosa (nesse caso) para quem a faz. Logo adiante, o escritor dá-se conta da gravidade da declaração e registra :

"Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela; é de tal forma nuançoso a razão de ser disso que para bem ser compreendido exigiria uma autobiografia, que nunca farei. Há cousas que, sentidas em nós, não podemos dizer. A minha melancolia, a mobilidade do meu espírito, o ceticismo que me corrói [...] nasceu da minha adolescência feita neste sentimento da minha vergonha doméstica, que também deu nascimento a minha única grande falta [...] Aqui bem alto declaro que, se a morte me surpreender, não permitindo que as inutilize [refere-se às notas do diário], peço a quem se servir delas que se sirva com o máximo cuidado e discrição, porque mesmo no túmulo eu poderia ter vergonha".

Apesar da sua "grande falta" (indicadora de seu lado preconceituoso), o autor ao menos tem consciência do quanto ela é vergonhosa. Por isso, prefiro pensar como o professor Antônio Arnoni Prado:

"Ler os livros de Lima Barreto é de alguma forma participar do drama do intelectual sitiado. Mais talvez do que isso, é um exercício de consciência histórica que conta com a vantagem, como poucas vezes noutro escritor brasileiro, de um difícil testemunho: constatar como a vida, e nesta a opressão e o fracasso, se converte em literatura".

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Deixei de responder a uma pergunta na postagem anterior. Lima Barreto disse, numa crônica, possuir a "alma de bandido tímido". Eu lembrei que os bandidos, além de ousados, são geralmente violentos. Mas e quando se trata de um “bandido tímido”? (essa era a pergunta não respondida).

Pois bem. Vamos dar uma olhada num excerto de Recordações do escrivão Isaías Caminha:

"Imbecis! pensei eu. Idiotas que vão pela vida sem examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às suas misérias como galerianos à calceta! Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os respeita e prestigia! Por que não lhes examinam as ações, o que fazem e para que servem? Se o fizessem... Ah! se o fizessem! Que surpresa! Riem-se, enquanto do suor, da resignação de vocês, das privações de todos tiram ócios de nababo e uma vida de sultão... Veio-me um assomo de ódio, de raiva má, assassina e destruidora; um baixo desejo de matar, de matar muita gente, para ter assim o critério da minha existência de fato".

Esse impulso violento do narrador-personagem surpreende o leitor, acostumado à maneiras educadas do pacato Isaías Caminha e este logo trata de retornar tudo ao estado anterior: "Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiu-me uma grande covardia e um pavor sem nome. Fiquei amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me, reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente".

Porém, um esbarrão recebido dentro do bonde - "episódio insignificante", como ele mesmo reconhece - reacende em seu espírito o "desejo feroz de reivindicação. Senti-me humilhado, esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, servir de joguete, de irrisão, a esses poderosos todos por aí. Hoje que sou um tanto letrado sei que Stendhal dissera que são esses momentos que fazem os Robespierres. O nome não me veio à memória, mas foi isso que eu desejei chegar a ser um dia".

Sabemos que Isaías Caminha é o disfarce do autor Lima Barreto. As ações diretas - em que muitas vezes se necessita ser violento - não são de seu feitio, embora, mais ao final do romance, depois de "deitar por terra" um colega de profissão que o insultara de modo racista, ele tenha escrito (acertadamente, a meu ver): "no mundo é preciso o emprego da violência, do murro, do soco, para impedir que os maus e os covardes não nos esmaguem de todo". 

Lima Barreto, um escritor politizado, próximo do anarquismo e do socialismo, enxergava com nitidez "as cordas, roldanas e contrapesos da sociedade" que esmagavam os mais pobres. Não sejamos ingênuos: não é possível mudar esse estado de coisas somente esperando a boa vontade "desses poderosos todos por aí"; a ação revolucionária - portanto, a ação violenta - é a alternativa restante (e legítima) àqueles historicamente alijados do poder e do conforto material (este último, aliás, quase sempre decorrente da exploração econômica).

Contudo, Lima Barreto tinha a "alma de bandido tímido". Não recorreria à força física para tentar mudar a estrutura social brasileira, cheia de desigualdade e exclusão (mesmo sabedor de que uma revolução de fato deve trazer consigo, inerentemente, o seu quinhão de violência). A contribuição que imaginou acrescentar na luta contra a opressão se realizou na escrita, tentando tirar o leitor da passividade e da resignação, levando-o a pensar e problematizar suas condições de vida.

E isso não é pouco.
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* Esta avaliação crítica de Eugênio Gomes encontra-se no volume 4 (Era Realista/Era de Transição) da vetusta coleção A Literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho. A edição consultada para essa postagem foi a sétima (revista e atualizada), publicada pela Editora Global em 2004.

** BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1984

*** Embora tenha citado as opiniões de Eugênio Gomes com o propósito de mostrar o que penso ser falho nelas, não me oponho à crítica literária subjetivista in totum. Não é proveitoso para a Literatura, penso eu, ser discutida exclusivamente dentro do rigor acadêmico. E mais uma vez, não custa repetir: o blog Besta Quadrada não é um espaço de crítica literária; apenas comunica impressões de leitura de seu autor.

**** BOTELHO, Denilson. Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto. 2001. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. Disponível em <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000232427 >. Acesso em: 04/04/2016

***** O Diário íntimo, assim como toda obra de Lima Barreto está em domínio público. O livro pode ser obtido aqui <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2078 >. Acesso em 11/04/2016


BG de Hoje

Monólogo ao pé do ouvido/Banditismo por uma questão de classe é a faixa que abre o seminal álbum Da lama ao caos, de CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. O Monólogo... tem jeitão de manifesto (embora o disco contenha um manifesto propriamente dito - Caranguejos com cérebro - escrito no encarte). No Monólogo... há algumas saudações: a Zapata, Lampião, Antônio Conselheiro, aos Panteras Negras... Tratados como meros bandidos pelo status quo, as ações desses indivíduos tinham significado político (maior e mais profundo em determinados casos do que em outros, convém dizer). Se há "banditismo por pura maldade", também há o "banditismo por necessidade" e o "banditismo por uma questão de classe". Ah, e tudo isso sem falar na extraordinária guitarra tocada por esse monstro chamado Lúcio Maia.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

"Alma de bandido tímido" (I)



"Malditos são todos aqueles que dizem verdades incômodas. E Lima Barreto incomodava como ainda incomoda. O escritor que silencia já nasceu morto. O escritor que não incomoda acaba refestelado em cadeiras acadêmicas, glorificadas por outro extinto imortal. O escritor, enfim, bem comportado, toma chá às quintas-feiras. Lima Barreto tomava cachaça todos os dias. Às vezes, era obrigado a parar: tirava férias no hospício"


Helcio Pereira da Silva -Lima Barreto: escritor maldito




Numa crônica publicada em 1915*, no extinto jornal Correio da noite, Lima Barreto reclamava das características do (então) novo prédio da Biblioteca Nacional, cheio de "suntuosidades desnecessárias". Segundo ele, "o Estado tem curiosas concepções, e esta, de abrigar uma casa de instrução, destinada aos pobres-diabos, em um palácio intimidador, é das mais curiosas". Na sua opinião, "a velha biblioteca era melhor, mais acessível, mais acolhedora, e não tinha a empáfia da atual".

A preocupação do escritor é que "os mal vestidos, os tristes, os que não tem livros caros" dificilmente fariam uso de um espaço assim. É de se notar a agudeza do olhar de Lima Barreto: uma biblioteca pública (e esse é o caso da Biblioteca Nacional) deveria ser receptiva a qualquer um, principalmente aquelas pessoas que não têm condições de comprar livros (sobretudo nas primeiras décadas do século passado, quando esta mercadoria raramente chegava à mão do pobre). A pompa do prédio - quando o mais importante deveria ser a sua funcionalidade - constrange o visitante que não dispõe de boas roupas (o escritor, com ironia, diz: "Ninguém compreende que se subam as escadas de Versalhes senão de calção, espadim e meias de seda"). Uma biblioteca, a despeito de suas especificidades, é "uma casa de instrução", ou seja, um espaço para o aprendizado e o incremento cultural. Entretanto, vivemos num país onde a casca rutilante vale mais do que a polpa - que não é tão vistosa, é verdade, mas fundamental para a nutrição e sustentação do organismo...

Menciono essa crônica porque nela aparece uma breve definição (posteriormente bem conhecida) que Lima Barreto fez de si mesmo: "A minha alma é de bandido tímido". Os bandidos são geralmente ousados; não se vexariam de entrar num palácio mesmo que seu vestuário fosse considerado inapropriado para o local. O homem de letras, por seu turno, era ressabiado, inibido. Bandidos também empregam a violência – ocasional ou habitualmente. Mas e quando se trata de um “bandido tímido”?

Antes de responder a pergunta, tentemos compreender um pouco mais o autor.

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No volume dedicado a Lima Barreto na (boa e velha) coleção Literatura Comentada**, Antônio Arnoni Prado afirma que, no caso do autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha,

[...] fica difícil simbolizar os limites entre o intelectual profundamente consciente das questões políticas e sociais de seu tempo e o estilista que insistia em não ter estilo algum; entre o repórter extremamente impiedoso e mordaz, que atacava de frente o lado grotesco dos homens, e o mulato oprimido que chorava às escondidas na solidão de seu quarto, enchendo as páginas do diário de angústia, vergonha e ressentimentos”.

A sinceridade – ainda que filtrada pela construção literária – era um valor para Lima Barreto e a despeito da injusta pecha de desleixado (que o acompanhou durante anos, até mesmo após a morte), encontra-se

“em seus textos a moderna atitude do narrador que se recusava a ver o mundo de cima, a salvo das ameaças. Na sua 'alma de bandido tímido', a obra não preexistia ao processo que a originava, assim como não dependia mais de um estado de ser especial e singular para gerá-la. Ela acontecia aqui e agora, banalizada no tempo e no espaço do leitor, no curso das pequenas coisas apanhadas na rua, no acaso que se organizava, depois, em testemunho”, ainda de acordo com Arnoni Prado.

“Reabilitado” pela crítica literária a partir dos anos 1960, o escritor nunca dissociou a literatura da política e atreveu-se “a falar em nome do oprimido com a mesma ferocidade do opressor”. Mais que isso: “soube ver na burguesia legiferante a força reacionária que, no Brasil, impedia as reformas inadiáveis que os novos tempos exigiam. Desmascarou também a sua aliança com os plutocratas e latifundiários da aristocracia rural [...]”.

Basta observar a maneira de agir de nossos parlamentares no Congresso Nacional para ver como ele ainda hoje tem razão, iniciado o século XXI.

Como, porém, tentar mudar a dura realidade decorrente de nossos problemas sociais? Denunciá-los através da escrita é um modo; tornar o leitor da obra literária consciente da natureza destes, outro. Mas seria isso suficiente? A considerar os grandes traços excludentes de nossa estrutura social, a resposta é, obviamente, não.

Há outra resposta faltando, relativa à pergunta deixada em aberto lá no terceiro parágrafo. Por exigir um pouco mais de discussão, prometo-a para a próxima postagem.
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* A crônica intitula-se A Biblioteca e foi posteriormente incluída no livro Marginália, lançado em 1953 (31 anos após a morte do autor). Como a obra de Lima Barreto encontra-se hoje em domínio público, o livro pode ser encontrado em <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1862> (Acesso em 15/04/16)

** PRADO, Antônio Arnoni. Uma literatura do povo para o povo. In: BARRETO, Lima. Lima Barreto. São Paulo: Abril, 1980. p. 100-104 (Coleção Literatura Comentada)

BG de Hoje

O Brasil, felizmente, tem uma boa tradição de canções cuja marca é seu conteúdo político. Pode-se dizer, sem dúvida, que é o caso de O ronco da cuíca, de JOÃO BOSCO e ALDIR BLANC. Composição primorosa, que entra diretamente na veia.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Falou e disse...

quarta-feira, 13 de abril de 2016

A acerba (e atualíssima) crítica de Lima Barreto à imprensa brasileira



A certa altura do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, cuja elaboração se deu durante a primeira década do século passado, encontramos o personagem Plínio de Andrade. Vivendo modestamente como professor de História Natural em colégios do Rio de Janeiro, o jovem negro escrevia panfletos "em que a sua irritação lhe congestionava a frase indignada"*. Orgulhoso e inteligente, possivelmente anarquista e simpático ao socialismo, era odiado pelos donos dos grandes jornais da (então) capital do Brasil por causa das pequenas contrariedades que lhes causava em virtude de suas críticas. Acabaria morrendo durante uma revolta popular. Não sem antes nos apresentar sua visão da imprensa hegemônica de seu tempo:

"São grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinados a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes lucros burgueses... Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes ideias, fundar um que os combata... Há necessidade de dinheiro; são precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que se deve fazer num jornal..."

Plínio de Andrade compara os donos de jornal a "piratas" e suas organizações detêm "um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força". Não é difícil durante a leitura da obra notar que Plínio de Andrade tem muito em comum com o próprio Isaías Caminha**, que, por sua vez, é o disfarce adotado por Lima Barreto na condução da história.

No essencial capítulo VIII, das Recordações..., Isaías vai à redação de O Globo (nome fictício para O Correio da Manhã), o mais influente periódico do Rio de Janeiro, falar com o jornalista Gregoróvitch, de quem espera auxílio para obter um emprego (a situação era desesperadora e qualquer trabalho seria aceito). Enquanto aguarda, o personagem-narrador pinta, satiricamente, um quadro do jornalismo por lá praticado, usando e abusando da descrição caricatural. E conclui ao final do capítulo:

"Naquela hora, presenciando tudo aquilo, eu senti que tinha travado conhecimento com um engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada de tablado de mágica e espelho de prestidigitador, provocando ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com pedacinhos de chumbo, uma máquina Marinoni [impressora industrial rotativa que marcou época] e a estupidez das multidões.
Era a Imprensa, a Onipotente Imprensa, o quarto poder fora da Constituição! [aqui Barreto remete a Balzac]"

O livro foi lançado em 1909. Seu ataque à imprensa hegemônica brasileira, porém, permanece válido para o momento atual, sob vários aspectos.
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Durante muito tempo, Recordações do escrivão Isaías Caminha foi menosprezado pela crítica literária, considerado grosseiro, desleixado, um mero roman à clef furioso e cheio de rancor. Curioso é que o próprio autor tinha consciência dos "defeitos" do texto. Em carta enviada a um amigo, ele reconhece se tratar de "um livro desigual, propositalmente mal feito, brutal por vezes, mas sincero sempre". Convém mencionar que em 1909 Lima Barreto tinha outro trabalho já terminado na gaveta (Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, só lançado em 1919), mas preferiu publicar primeiro a história de Isaías Caminha porque queria "escandalizar e desagradar". Prossegue ele, na carta:

"Espero que esse primeiro movimento, muito natural, seja seguido de um outro de reflexão com que vocês considerem bem que não foi só o escândalo, o egotismo e a charge que pus ali [...] Hás de ver que a tela que manchei tenciona dizer aquilo que os simples fatos não dizem, segundo o nosso Taine, de modo a esclarecê-los melhor, dar-lhes importância, em virtude do poder da forma literária, agitá-los, porque são importantes para o nosso destino".

Essa menção a Hippolyte Taine me lembra a conferência O destino da Literatura, escrita 13 anos após as Recordações... (já discuti essa conferência aqui). Naquela ocasião, Lima Barreto, partindo das ideias do historiador e crítico literário francês, defendia que "a Beleza [...] é a manifestação, por meio dos elementos artísticos e literários, do caráter essencial de uma ideia mais completamente do que ela se acha expressa nos fatos reais".

E recorrendo também ao pensamento de outro crítico literário francês, Ferdinand Brunetière, considerava que

"a importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os atributos externos da perfeição de forma, de estilo, de correção gramatical, de ritmo vocabular, de jogo e equilíbrio das partes em vista de um fim, de obter unidade na variedade; uma tal importância, dizia eu, deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida".

Para Lima Barreto, mais do que apuro formal, a Literatura deveria ter uma missão***. "Jamais conceberia a arte literária como forma de diletantismo. Nunca encarou a literatura como passatempo. Nunca faria 'arte pela arte'. Para ele, a literatura tinha função social, tinha de ser militante"****

Num dos estudos mais recentes que conheço sobre o autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha - a tese de doutorado Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto***** - , Denilson Botelho afirma que:

"A todo instante, a pena com que [Lima Barreto] escreve seus romances, contos, crônicas, artigos, cartas e diários, revela uma crença inesgotável na função social da literatura. Nessas variadas modalidades de sua escrita está presente a concepção de literatura como arte engajada e militante. Seu anarquismo, socialismo, provocações e implicâncias pessoais só podem ser compreendidos enquanto elementos de sua concepção de literatura. Para cumprir a sua missão literária, Lima Barreto compra brigas, faz provocações, coleciona implicâncias, flerta com o anarquismo e propõe o socialismo, mas tudo porque esta é a sua vocação: uma literatura destinada a contribuir para a compreensão dos acontecimentos do presente e, por que não, do passado, a fim de ajudar o leitor a construir uma sociedade mais justa e igualitária".

Ainda de acordo com o pesquisador, "sua obra é impregnada por esse objetivo de instrumentalizar, no plano das ideias e pela palavra escrita, um povo desde sempre excluído social e politicamente".

Portanto, o romance de estreia do escritor carioca não é apenas a expressão de seu ressentimento pessoal. O que ele deseja é sacudir, segundo suas próprias palavras, "a indiferença da nossa gente pelas cousas do espírito". Daí a "sinceridade da minha [dele] revolta que vem bem do Amor e não do Ódio, como podem supor".

E a escolha da imprensa hegemônica como um dos alvos de sua indignação nos parece certeira.

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As maiores empresas de jornalismo/mídia brasileiras compõem um oligopólio que, há décadas, dita o rumo da comunicação de massa no país (clique aqui). O modo de atuar dessas organizações reflete diretamente as inclinações e interesses pessoais de seus donos, pois são, desde a sua fundação, controladas pelas mesmas famílias. Os funcionários - ou seja, os jornalistas - quase sempre apenas corroboram e ratificam as opiniões (e intenções) dos proprietários (patrões deles). Essa relação de subserviência e sabujice compromete a credibilidade dessas empresas desde o nascedouro.

Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, numa das muitas aparições de Ricardo Loberant (diretor-proprietário  de O Globo), ficamos sabendo que "aquele jornal, que era sua propriedade, recebia também a sua inspiração. Nenhum de seus redatores tinha uma personalidade suficientemente forte para resistir ao ascendente da sua". Na redação do jornal "era assim: escrevia-se, mediante ordem do diretor, hoje contra e amanhã a favor". Os outros periódicos de grande circulação não se diferenciavam: "guiados pelas mesmas leis, obedecendo quase a um único critério, todos eles se parecem; e, lido um, estão lidos todos".

Os próprios jornalistas desses veículos não dão mostras de se importar com a vassalagem prestada a seus patrões; ao contrário, julgavam-se importantes e indispensáveis para o aprimoramento da inteligência nacional: "o pensamento comum dos empregados em jornais é que eles constituem, formam o pensamento do nosso país, e não só formam, mas 'são a mais alta representação dele' ".

E pensar que a obra de Lima Barreto foi escrita no início do século passado! Em nossos dias, quando se percebe a tendenciosidade demonstrada pelo oligopólio midiático brasileiro no noticiário político, sua baixa qualidade investigativa ou a arrogância vaidosa de seus colunistas e comentaristas, vemos que as palavras do escritor carioca condizem perfeitamente com o momento atual.

Na próxima postagem, prossigo falando de Lima Barreto.
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* BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1984 (Série Bom Livro)

** Segundo Francisco de Assis Barbosa, autor da única biografia disponível de Lima Barreto, Plínio de Andrade representa Lima Barreto, da mesma maneira que, no romance, Veiga Filho representa o escritor Coelho Neto e Raul Gusmão, João do Rio.

*** Expressão consagrada para se referir à obra de Lima Barreto desde o fundamental estudo de Nicolau Sevcenko, Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.

**** MAGNONI, Maria Salete; BLAITT, Alexandre. Lima Barreto. In: SANTOS, Ynaê Lopes dos (et al). Rebeldes Brasileiros: homens e mulheres que desafiaram o poder. São Paulo: Casa Amarela, 2000. v. 1. p. 354-367

***** BOTELHO, Denilson. Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto. 2001. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. Disponível em <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000232427 >. Acesso em: 04/04/2016

BG de Hoje

Adorei a concepção e direção do DVD ao vivo da cantora/compositora CÉU, lançado em 2014.  Clima de bailão de periferia (ou das antigas rádios AM) e um repertório de primeira, incluindo canções feitas por outros artistas, como Mil e uma noites de amor, de Pepeu Gomes, que ficou ótima na voz dela.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Aquele espectro no caminho


Há um célebre poema de Augusto dos Anjos chamado O Morcego*.

À meia-noite, o asqueroso quiróptero invade um aposento, importunando o sono do eu lírico, que se pergunta: "Que ventre produziu tão feio parto?". O soneto termina assim:

"A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto!"

O sono perturbado por uma consciência culpada é imagem bastante familiar a todos nós, suponho. Afinal, só os justos dormem em paz. E quem consegue ser justo o tempo todo?

A consciência - para muitos, aquilo que nos torna humanos e nos distingue especialmente dos outros seres vivos - orienta uma parte das condutas individuais. Não obstante, responde ela por muitas das aflições, angústias e desprazeres experimentados. Eis, então, que não se suporta mais sua vigilância, seu controle: insurge-se contra a consciência, contra aquilo que se imagina (ou melhor dizendo, aquilo que se deseja) ser aos olhos dos outros.

É o embate com a consciência (denotando, nesse caso, um conjunto de valores e juízos morais) o sustentáculo do conto William Wilson**, meu preferido dentro da obra de Edgar Allan Poe.

Se, no poema de Augusto dos Anjos, a consciência é uma criatura de voo medonho, na narrativa de Poe, a metáfora se dá de outro modo, mais penetrante e maligno, através da figura do duplo ou alter-ego.

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O estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde, de Robert Louis Stevenson é, certamente, uma das mais conhecidas obras literárias a valer-se dessa alegoria, narrando a convivência mórbida das duas personalidades conflitantes de que todos nós, supostamente, somos feitos. Contudo, seu surgimento - vale destacar - é bem posterior a William Wilson, publicado pela primeira vez em 1839 numa revista da Filadélfia. Terá sido fonte de inspiração para o autor escocês? Tão conhecido quanto a história do "médico e o monstro" é O retrato de Dorian Gray, lançado seis anos após Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Embora naquele romance de Oscar Wilde o alter-ego seja representado de maneira bem peculiar, seu personagem central evidencia desconforto similar em relação aos ditames de sua consciência, tal como no conto de Poe e na novela de Stevenson.

Pensando em escritores brasileiros, lembro da discussão de ordem metafísica enfeixada no conto O espelho, de João Guimarães Rosa, no qual se encontra o famoso trecho: "Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo". Pairante no texto de Rosa está a pergunta: Quando olhamos no espelho é o nosso eu verdadeiro a se refletir? (talvez, em algum momento, surja na imagem especular um outro que não é propriamente o nosso reflexo). Rubem Fonseca, por sua vez, sem falar de espelhos, lança a metáfora do duplo no cenário urbano de uma metrópole clivada pela desigualdade econômica em O outro, publicado na metade dos anos 1970. O término desse excepcional conto é funesto, como é de se esperar em histórias do tipo.

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"Tornam-se os homens usualmente vis, pouco a pouco" - tasca na nossa testa, sem lançar mão de atenuantes, o narrador-personagem de William Wilson -. "Mas de mim, num só instante, a virtude se desprendeu, realmente, como uma capa. Duma perversidade relativamente trivial, passei, a passadas de gigante, para enormidades maiores que as de Heliogábalo".

Rico, imperioso e mimado, o narrador-personagem, em flash-back, nos põe a par de sua historinha sórdida, adotando um tom confessional. O leitor, progressivamente, percebe-se diante de um esquizofrênico perverso (embora, deva-se notar que muitas das perversidades sejam apenas insinuadas no texto ou, pelo menos não descritas diretamente). A epígrafe do conto - versos de um obscuro poeta do século XVII, William Chamberlayne (ou Chamberlain) - nos dá a principal via de acesso à significação da narrativa: "Que dirá ela? Que dirá a horrenda Consciência, aquele espectro no meu caminho?"

Tal como um fantasma, um espectro, o alter-ego estará sempre no encalço do narrador-personagem, sussurrando-lhe censuras e reprimendas. Sobre a dificuldade de definir o que sentia pelo outro, encontramos no texto:


"[Os sentimentos] Formavam uma mistura complexa e heterogênea; certa animosidade petulante que não era ainda ódio, alguma estima, ainda mais respeito, muito temor e um mundo de incômoda curiosidade. Para o moralista, será necessário dizer em acréscimo, que Wilson e eu éramos os mais inseparáveis companheiros".


Por que gosto tanto desse conto? É uma história que recupera o poder concentrado das parábolas e narrativas fabulares de transmitir algo valioso, sábio, sem reduzir-se, todavia, às liçõezinhas de moral baratas. Um risco, a meu ver, bem calculado pelo autor, inclusive nos quatro parágrafos finais.
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* ANJOS, Augusto dos. O morcego. In: _________. Eu e outras poesias. 47 ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 97

** POE. Edgar Allan. William Wilson. In: ________. Contos de terror, de mistério e de morte. 7 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 99-119. [Tradução de Oscar Mendes]

BG de Hoje

FEAR FACTORY é uma banda de altos e baixos. Ouvia direto em determinado período da minha vida; depois dei um tempo e, mais recentemente voltei a escutar, sobretudo faixas dos primeiros discos (que são interligados e meio conceituais), como essa Ressurection.