sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Falou e disse...

"Mas não fiquem achando que eu acho que professor deve ler, e que aluno deve ler. Nada disso. Não se trata de dever. Leitura não é dever de ninguém. É um direito, isso sim, de todo cidadão, e por ele temos de lutar - isso sim, um dever. Até mesmo na guerrilha quotidiana da resistência miúda, fazendo questão de pegar livro na biblioteca, de levar livro para casa, de ler no ônibus, de dar livro de presente, de falar em livros com colegas e amigos, de desligar a tevê em troca de um livro na hora em que algo está chato (não é possível que todo mundo ache que nunca tem nada chato na televisão). E na estratégia mais ampla, frequentando livrarias nem que seja para folhear um livro e tirar uma casquinha, escrevendo para jornais e revistas para exigir mais espaço dedicado à literatura, cobrando dos candidatos a prefeito, vereador e deputado um compromisso público com o atendimento a esse direito em cada estado e município".

MACHADO, Ana Maria. Literatura: o direito a uma herança. In: _________. Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 136

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Sobre A montanha mágica ou A importância das notas de rodapé (I)





Durante o feriado do Carnaval, estava relendo um livro de que gosto muito - Texturas: sobre leituras e escritos, da grande Ana Maria Machado (Editora Nova Fronteira, 2001). E um dos textos que o compõem (Clássicos de todas as classes*) tem muito a ver com a experiência resultante de minha primeira (recente e única) leitura da volumosa obra  A montanha mágica**, de Thomas Mann.

"O crítico e ensaísta inglês George Steiner" - escreve Ana Maria Machado - "assinala que até meados do século XX, no pós-guerra, os leitores dos livros compartiam um acervo comum de referências, a partir da Bíblia, da literatura greco-romana, de obras orientais como as Mil e uma noites, dos grandes clássicos medievais, renascentistas e modernos [...]. Qualquer escritor podia ter certeza de que, se por acaso se referisse a Catilina [o conspirador romano invectivado por Cícero] ou Adamastor [um dos titãs mitológicos, que aparece também como personagem n' Os Lusíadas], seus leitores saberiam do que se tratava. Havia um repertório clássico comum que permitia esse entendimento cúmplice".

O público leitor atual, entretanto, formou-se de maneira bem distinta. A escritora, relatando a experiência de apresentar Reinações de Narizinho para o neto, observa que muitas vezes foi preciso "fazer uma longa digressão e contar uma outra história, a cada momento do enredo, interrompendo as peripécias e cortando o ritmo do autor" para esclarecer determinadas passagens do texto de Monteiro Lobato.

Ana Maria Machado, constata, então que

"Hoje em dia, portanto, está desaparecendo essa certeza de que o leitor partilha com o autor um acervo básico de conhecimento dos clássicos. Assim, como Steiner observa, foram começando a aparecer notas aos pés de página nos livros, para explicar certas alusões e referências. A tal ponto que atualmente, diz ele, para ler a maioria das obras não-contemporâneas, em muitos casos seriam necessárias tantas notinhas explicativas que mais da metade da página ficaria comprometida tornando a leitura uma atividade penosa e arrastada, uma verdadeira corrida de obstáculos em câmara lenta".

E o que essas reflexões têm a ver com A montanha mágica? Observemos o excerto abaixo, uma fala do personagem Lodovico Settembrini, um dos pacientes do sanatório para tuberculosos Berghof e "guia" intelectual do jovem Hans Castorp, protagonista do livro:

" - Insisto com o senhor: vele pela sua dignidade! Seja orgulhoso e não se perca no ambiente estranho! Evite este atoleiro, esta ilha de Circe. O senhor não é bastante Ulisses para habitá-la impunemente. Acabará andando de quatro patas. Já está a ponto de se apoiar nas extremidades dianteiras. Daqui a pouco começará a grunhir. Cuidado!"

O personagem d'A montanha mágica faz aqui uma série de alusões à Odisseia, sobretudo ao canto X, cujo "tema" central são as desventuras de Ulisses e seus companheiros em sua primeira passagem pela ilha de Eeia, dominada pela feiticeira Circe, onde parte do grupo é transformada numa vara de porcos. Claro que, provavelmente, essas referências de Settembrini não complicarão muito a vida de um leitor razoavelmente informado, mesmo que este nunca tenha sequer corrido os olhos alguma vez pelo célebre poema de Homero. Entretanto, não se pode dizer o mesmo a respeito de diversas outras passagens do romance de Thomas Mann (inclusive um sem-número de falas do próprio Settembrini). Sente-se, durante a leitura, a necessidade de um certo apoio explicativo para atingir a melhor compreensão possível da obra - e não só em relação às citações literárias clássicas ou aos jogos intertextuais. Uma coisa resta óbvia: o leitor mediano contemporâneo (este blogueiro é um exemplo) definitivamente não está no mesmo nível de erudição do autor (a distância entre o primeiro e o segundo, sendo sincero, deve ser medida em anos-luz). Nesse caso, então, algumas notas de rodapé viriam a calhar. Mas - e a pergunta é crucial - como acrescentar tal recurso de edição/tradução numa obra notadamente robusta, com suas quase mil páginas de escrita meticulosa?

Prossigo com o assunto na próxima postagem.

* MACHADO, Ana Maria. Clássicos de todas as classes. In: __________. Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 138-148

** MANN, Thomas. A montanha mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 [Tradução de Herbert Caro]

BG de Hoje

Outra morte recente bastante sentida no mundo do rock (mais até do que a de outro britânico, Lemmy Kilmister, citada no último BG) foi a de DAVID BOWIE, um verdadeiro gênio da música pop. Confesso, entretanto, que nunca fui um de seus ouvintes mais fiéis. O único disco que tive do artista até hoje foi o ... Ziggy Stardust... . Desse álbum extraio a canção de hoje, Moonage Daydream, com sua arrebatadora levada de guitarra, culminando com o solo monstruoso de Mick Ronson (o músico parecia possuído pelo capeta).


domingo, 14 de fevereiro de 2016

Falou e disse...

"Sei muito bem que não quero fazer nada: fazer alguma coisa é criar existência - e já há existência suficiente sem isso"*.

* SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 251 [Tradução de Rita Braga]


quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Falou e disse...



"Muitos confundem habilidade, técnica, criatividade e talento. A habilidade é a capacidade de dominar, driblar e criar efeitos especiais em pequenos espaços sem perder a bola. A técnica é a lucidez na decisão do lance e a execução bem feita dos fundamentos da posição. A criatividade é a antevisão do lance, a imaginação para inventar e surpreender. O talento é a união, a síntese de tudo isso, além das boas condições físicas e emocionais. Os craques possuem, em proporções variáveis para cada um, todas essa virtudes"*.


* TOSTÃO. Vencedores medíocres. Folha de S. Paulo. 29 de novembro de 2015, p. B4 (Caderno Esporte)


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sobre Morte em Veneza ou A condição do artista



"Quem consegue decifrar a essência e a peculiaridade de uma alma de artista! Quem pode entender a profunda fusão dos instintos de disciplina e devassidão que lhe serve de fundamento!"


Thomas Mann - Morte em Veneza


E o blog Besta Quadrada retorna ao trabalho, prezado(a) eventual leitor(a)

Na última postagem, ano passado, havia feito a observação de que o livro então abordado - A gaivota - tinha como uma de suas "funções" apresentar as concepções de seu autor, Anton Tchekhov, sobre o fazer artístico; mais especificamente, sobre o ofício do escritor. Empreendimento semelhante, podemos dizer, dá-se na novela Morte em Veneza*, do romancista alemão Thomas Mann, publicada pela primeira vez em 1912.

Gustav Aschenbach, o personagem central de Morte em Veneza é, aos 50 anos de idade, um literato consagrado em seu país (para se ter ideia, "o Departamento de Ensino [passou] a incluir páginas de sua autoria nas antologias escolares oficialmente adotadas"). Apesar do prestígio junto à opinião pública, Aschenbach sente que "sua vida começara a declinar" e acometido por uma "estranha expansão de seu íntimo, uma espécie de inquietação errante, um anseio juvenil sedento de distância", decide "tirar férias" da cidade em que vivia, Munique, partindo em viagem para o sul do continente europeu. E "quando se deseja alcançar de um dia para o outro o incomparável, o excepcional, digno da magia dos contos de fada, para onde se vai?". De acordo com o narrador do livro, a resposta é uma só: Veneza.

Assim que chega à cidade italiana, Aschenbach toma uma das famosas gôndolas. E apesar do olhar simpático geralmente dirigido a esse tipo de embarcação, o narrador registra:

"Esse estranho veículo, herança intacta de tempos medievais e tão singularmente negro como, dentre tudo que existe, só um ataúde pode ser, lembra aventuras criminosas e mudas na noite de águas rumorejantes, lembra ainda mais a própria morte, esquifes e sepulturas lúgubres e a derradeira viagem silenciosa".

O condutor dessa gôndola, assim como o viajante visto quase ao acaso no primeiro capítulo, o "jovem postiço" do navio saído de Pula (capítulo 3) e o músico-mendigo, líder da trupe descrita na última seção da narrativa - todos eles partes da mesma alegoria - foram devidamente realçados na adaptação cinematográfica realizada por Luchino Visconti, em 1971. E esses personagens constituem o leitmotiv da obra (são os mensageiros da morte), prenunciando o evento inevitável presente no título do livro, como bem destacou a professora Claudia Sibylle Dornbusch no (ótimo) programa Literatura Fundamental, da Univesp TV (link para o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=YACCGqpZZBQ).

Claudia Dornbusch também ressalta a influência do pensamento nietzschiano na obra de Thomas Mann. Tal influência fica evidenciada no modo como o autor expõe a "fratura" espiritual ocorrida no interior de Gustav Aschenbach. Profundamente racional e metódico ao longo da vida (o personagem "tinha extrema necessidade de disciplina" e "não era um amante do prazer"), Aschenbach, agora apaixonadamente modificado pela aparição do jovem Tadzio, percebe em si os traços da euforia proporcionada pelo desregramento do ato de criar. Thomas Mann corporifica no personagem central de Morte em Veneza o embate entre os dois princípios que governam o trabalho dos artistas - o apolíneo e o dionisíaco -, tratados por Friedrich Nietzsche n' O nascimento da tragédia no espírito da música (1871).

A despeito da influência assinalada, entretanto, o livro de Mann defronta-se, sobretudo, com o platonismo. As citações quase textuais do Fedro comprovam essa observação (inclusive o trecho daquele famoso diálogo em que se condena a arte, com Platão mais uma vez falando pela boca de Sócrates), assim como as elaboradas reflexões metafísicas do narrador (e do personagem) sobre os conceitos/ideias de Beleza e de Amor. É possível, diria ainda, estabelecer paralelos entre o homoerotismo da convivência "distanciada" de Aschenbach e Tadzio e o homoerotismo da relação mestre-discípulo percebida no texto platônico.

Apesar do seu pequeno número de páginas - não chegam a uma centena - Morte em Veneza, como já dissemos, é, antes de tudo, uma concentrada (e profunda) meditação sobre o fazer artístico: aí reside seu valor. A esse respeito, o capítulo 4 é de especial interesse. De lá, retiro esta passagem belíssima:

"Certamente é bom que o mundo conheça apenas a obra-prima, sem conhecer suas origens e as condições de sua gênese, pois o conhecimento das fontes de onde flui a inspiração do artista muitas vezes confundiria o público, o intimidaria, anulando assim os efeitos da perfeição".

É um livro a nos lembrar todo o tempo (e o excerto acima o confirma) que grandes obras de arte costumam resultar de um espírito dividido, em luta consigo mesmo.

Na próxima postagem, começo a escrever sobre aquele que é considerado por alguns o trabalho mais importante de Thomas Mann: A montanha mágica.
__________
* MANN, Thomas. Morte em Veneza. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003 [Tradução de Eloísa Ferreira Araújo Silva]

BG de Hoje

No ano passado, o universo do rock perdeu o incomparável Ian Frasier Kilmister - mais conhecido como Lemmy -, a alma e o coração do MOTÖRHEAD, Não posso deixar de mencionar também a morte do baterista Phil "Philthy Animal" Taylor, semanas antes do falecimento de Lemmy. Ambos fizeram parte da formação original do Motörhead e, junto com "Fast" Eddie Clarke, gravaram um dos álbuns mais importantes na história da música pesada: Ace of spades (1980). Desse discaço, escolho The chase is better than the catch.