terça-feira, 23 de junho de 2015

Ferreira Gullar e "este surdo poema que não toca no rádio"



"Não quero morrer não quero
apodrecer no poema
que o cadáver de minhas tardes
não venha feder em tua manhã feliz [...]"

Ferreira Gullar, no poema Arte poética


As eleições do ano passado, entre outras coisas, serviram para desvelar, com um pouquinho mais de nitidez, as muitas clivagens que caracterizam este imenso poço de desigualdade econômica e racial - bem como terreno de conflitos sociais decorrentes dessa condição - chamado Brasil. Tudo isso em meio às tentativas, aqui e acolá, de infundir (e difundir) a impostura segundo a qual formamos todos uma sociedade harmônica e cordial.

Infelizmente, um dos efeitos colaterais dessas cisões emersas na superfície do debate público foi a reaparição - em nova roupagem - do patrulhamento ideológico. Se fulano apoiou a candidata X, ele não passa de um "comunistazinho safado"; se, por outro lado, beltrana declarou voto no candidato Y, só pode ser mais uma "reaça raivosa". Nos dois casos, ambos se tornarão personae non gratae, independentemente de qualquer talento ou obra relevante que por ventura apresentem. Este blogueiro inclusive admite não ter conseguido, durante a campanha, escapar do furor de sair carimbando uns e outros com essa rotulação simplista; foi necessário um posterior exercício de reflexão para não dimensionar todo o trabalho de determinados(as) artistas somente pela escolha ocasional feita por eles(as) numa disputa eleitoral.

O caso do poeta Ferreira Gullar, entretanto, merece um enfoque mais detido. O autor maranhense vem atacando o PT e sua principal liderança, o ex-presidente Lula, desde o primeiro mandato deste. Portanto, bem antes da última eleição. Até aí, nada de mais. Qualquer um tem o direito (e, às vezes, até o dever) de apontar os erros cometidos por qualquer partido, por qualquer administração. Entretanto, falta tutano às opiniões de Gullar nesse terreno. Elas não fazem menção, por exemplo, ao aumento escandaloso da concentração de renda nos últimos 12 anos (distanciando ainda mais ricos de pobres); ou às tímidas ações na área da reforma agrária e na demarcação das terras indígenas; ou ainda à incapacidade do governo, na propícia ocasião em que sua popularidade estava em alta, de promover a correção das distorções existentes na propriedade e controle do setor midiático brasileiro. Reivindicações típicas de esquerda, convém ressaltar. Digo isso porque o escritor, ao que parece, já se identificou com esse ideário, mesmo que parcialmente: foi filiado ao Partidão, perseguido e exilado pela ditadura militar. E sua produção poética (pelo menos durante certo período) demonstrava uma visão de mundo explicitamente anticapitalista.

Mas o Ferreira Gullar de hoje nos dá a entender que aderiu de vez à teoria do "fim da história"* e, portanto, nada nos resta a não ser a resignação. Se seus textos publicados na imprensa - estou me referindo à coluna do autor na Folha de S. Paulo - exibissem um tom de desencantado fatalismo, acharia até apreciável. Porém, o leitor só encontrará lá os mesmos lugares-comuns da crítica superficial de direita, com seu moralismo de conveniência, acrescido da denúncia mal informada do "assistencialismo" estatal e sua "farra" de bolsas e cotas.

Nesse aspecto, Ferreira Gullar é idêntico a Arnaldo Jabor: ambos deixaram de lado a atividade artística para assinarem crônicas políticas medíocres. Com uma diferença: Jabor foi um cineasta comum, enquanto Gullar está entre os grandes poetas brasileiros da segunda metade do século XX. Quero me concentrar nesse legado a partir de agora.

. . . . . . . 

Num ensaio - justificadamente - laudatório**, o crítico literário Antonio Carlos Secchin considera que a poesia de Ferreira Gullar percorreu ao longo do tempo "várias e às vezes antagônicas direções, sempre abertas ao risco, numa vertiginosa dialética de teses e antíteses que jamais se acomodou em qualquer síntese". Fez poesia de vanguarda, hermética, mas, a partir dos anos 1960, mergulhou de cabeça na cultura popular, escrevendo cordel. Nessa mesma década, aliás, o verso do poeta se converte em discurso engajado, sem abandonar, contudo, "o veio lírico-existencial", como assinala Secchin. Muitos poemas dessa época foram reunidos no volume Dentro da noite veloz (e já discuti um deles - Pela rua - aqui). Em 1976, exilado na Argentina, publica aquela que é considerada sua obra-prima: O poema sujo, longo e difícil "acerto de contas" do autor consigo mesmo. Os últimos resquícios inegavelmente políticos na poesia de Ferreira Gullar estão na reunião de textos apresentada em 1980: Na vertigem do dia (e também já discuti um deles - Bicho urbano - aqui).

O poeta, a essa altura do campeonato, parece cansado, desiludido:

"Para uma vida de merda
nasci em 1930
na Rua dos Prazeres"
                                      (do poema Primeiros anos***)

E completa, ao final da mesma composição:

"Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter uma arma na mão"

Ninguém parece dar mais atenção ao poeta. Noutro momento (Poema obsceno), enquanto todos fazem a festa, ele soca "este pilão/este surdo poema que não toca no rádio/que o povo não cantará". Afinal, quem hoje em dia ouve os poetas? Na batalha comunicacional e cultural diária, o sussurro da poesia mal pode ser escutado. Ironicamente, muitos dos que hoje admiram as insossas crônicas dominicais de Gullar talvez nunca tenham lido nenhum de seus belíssimos poemas...

Resta saber o quanto coincide a identidade do cidadão Ferreira Gullar com o poeta que falava nesses poemas, o quanto se assemelhava o indivíduo com o eu lírico ali inscrito. Uma discussão que nos remeteria a uma recorrente questão literária: o quanto finge (e cria) um artista no ato próprio de criar? Será o poeta obrigado a sempre ser absolutamente sincero naquilo que escolhe colocar num poema? Tal conversa fica para outra oportunidade.

E gostaria de encerrar falando do texto que abre Na vertigem do dia. O poeta nele se vale de imagens de desgraça, repugnância e dor para mostrar que não há nada de especial em sofrer: o sofrimento é condição elementar de todos. A alegria, portanto, é uma rara preciosidade.

Por ser um poema de que gosto muito, reproduzo-o na íntegra:

A ALEGRIA

O sofrimento não tem
nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).

Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?

        A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
                       querem estar contentes.
__________
* "O Fim da História é uma teoria iniciada no século XIX por Georg Wilhelm Friedrich Hegel e posteriormente retomada, no último quarto do século XX, no contexto da crise da historiografia e das Ciências Sociais no geral. Essa teoria sustenta, como o nome sugere, o fim dos processos históricos caracterizados como processos de mudança. Para Hegel isso iria acontecer no momento em que a humanidade atingisse o equilíbrio, representado, de acordo com ele, pela ascensão do liberalismo e da igualdade jurídica, mas com prazo indeterminado para ocorrer. Retomada ao final do século XX, essa teoria já adquire caráter de situação ocorrida pois, de acordo com os seus pensadores, a História terminou no episódio da Queda do Muro de Berlim. Naquele momento, os antagonismos teriam terminado pelo fato de, a partir de então, haver apenas uma única potência - os Estados Unidos da América - e, consequentemente, uma total estabilidade. A ideia ressurgiu em um artigo, publicado em fins de 1989 com o título de O fim da história e, posteriormente, em 1992, com a obra O fim da história e o último homem, ambos do estadunidense Francis Fukuyama". Extraído da Wikipedia, disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fim_da_hist%C3%B3ria> Acesso em 22/06/15

** SECCHIN, Antonio Carlos. Um Nobel para Gullar. In: _________. Escritos sobre poesia & alguma ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p. 205-218. (Este texto foi apresentado na Suécia como parte da candidatura de Ferreira Gullar ao prêmio Nobel. Daí seu viés enaltecedor).

*** GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. Todos os poemas do autor citados nesta postagem foram encontrados nessa edição.

BG de  Hoje

No último domingo assisti a uma apresentação gratuita do grupo BERIMBROWN. Com nova formação, a banda belo-horizontina pretende retomar seu trabalho. Torço muito pra que consigam alcançar todo o sucesso que seu congopop consciente e dançante merece atingir. Abaixo, clipe de Black broder - 20 do 11, faixa do disco Aglomerado (2002).


terça-feira, 16 de junho de 2015

Sobre nerds, geeks e a educação científica (II)



Há algumas semanas escrevi aqui sobre o filósofo Francis Bacon e a obra Novum Organum*. Naquela ocasião tratava eu de outro assunto, mas há um fragmento daquele livro - peça-chave para a compreensão do ímpeto científico da Era Moderna - descrevendo bem um dos aspectos do tema abordado no dia 1º de junho e que será retomado (e concluído) hoje, nesta postagem.

Bacon, no aforismo XCI, afirma que,

"[...] Com efeito, não estão nas mesmas mãos o cultivo das ciências e as suas recompensas. As ciências progridem graças aos grandes engenhos, mas o estipêndios e os prêmios estão nas mãos do vulgo e dos príncipes, que, raramente, são mais que medianamente cultos. Dessa maneira, esse progresso não é apenas destituído de recompensa e reconhecimento dos homens, mas até mesmo do favor popular. Acham-se as ciências acima do alcance da maior parte dos homens e são facilmente destruídas e extintas pelos ventos da opinião vulgar. Daí não se admirar que não tenha tido curso feliz o que não costuma ser favorecido com honrarias".

Na segunda metade do śeculo XVII, o filósofo inglês observara uma paradoxal situação: fazer ciência - atividade para a qual são necessárias consideráveis doses de preparo e empenho (está "acima do alcance da maior parte dos homens") - não costuma receber os "estipêndios" e as "honrarias" que, supostamente, deveriam corresponder a um campo do saber tão essencial ao progresso humano.

Contudo, pode-se objetar que, na época de Bacon, ainda bastante influenciada pelo ideário medieval, a investigação científica não devia mesmo gozar de muito prestígio. No período contemporâneo, entretanto, teríamos outra mentalidade, certo?

Bem... Na primeira parte dessa discussão, no início do mês, citei um trecho de O mundo assombrado pelos demônios**, de Carl Sagan, no qual o autor, lamentando o desinteresse de um grande número de adolescentes (bem como de uma parcela significativa da população em geral) pela ciência, argumentou que este pode decorrer de vários fatores, inclusive da "impressão de que a ciência e a matemática não vão dar a ninguém um carro esporte". Além disso, há a imagem (negativa) associada aos que estudam empenhadamente (ou seja, os nerds)...

Nessa mesma obra, o astrônomo e astrofísico norte-americano, criticando os estereótipos associados àqueles dedicados ao aprendizado e ao trabalho na área da ciência, escreve:

"[...] Os cientistas são nerds, socialmente inoportunos, trabalham com temas incompreensíveis que nenhuma pessoa normal acharia interessante - mesmo que estivesse disposta a investir nele o tempo exigido, o que, mais uma vez, ninguém com bom senso faria. 'Vá viver', é o que se tem vontade de lhes dizer".

Por que os(as) jovens estudantes (mas não só eles(as), é bom ressaltar), hoje tão mais preocupados em serem aceitos dentro dos grupos com os quais interagem primariamente (e isso significa vestir a roupa aprovada pelo grupo, ter a aparência desejada pelo grupo, conversar somente sobre os assuntos estabelecidos pelo grupo), "perderiam" seu tempo com cálculos complicados ou com a observação e análise de fenômenos tão pouco fenomenais, de acordo com certa axiologia preponderante nas nossas atuais sociedades de consumo? Um verdadeiro nerd (ainda de acordo com esse conjunto de valores) dificilmente poderá ser alguém cativante, sedutor ou popular, porque, "como a imagem do cientista louco à qual está intimamente associado, o estereótipo do cientista nerd está disseminado em nossa sociedade", diz Sagan. E essa imagem pode, em última instância, conduzir a um resultado problemático: "se, por qualquer razão, as pessoas não gostam do cientista estereotipado, é menos provável que deem apoio à ciência". Isso é válido, penso eu, tanto para os EUA quanto para o Brasil.

E o que dizer da nossa educação, do nosso ensino? Recentemente, um levantamento feito pela OCDE coloca o Brasil na 60ª colocação num ranking com 76 nações, relativo a testes para medir a capacidade dos estudantes em matemática e ciência. No ano passado, foi divulgado um Índice de Letramento Científico dos brasileiros (iniciativa semelhante ao Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional - INAF - que mede habilidades e práticas em leitura, escrita e matemática) e o resultado mostrou que "apenas 5% do total se mostraram de fato proficientes em ciência"***. Além disso, entidades representativas dos trabalhadores em educação vêm alertando, nos últimos dez anos pelo menos, para um "apagão" no ensino médio (possibilidade que chegou a ser admitida pelo próprio MEC anos atrás). Como se daria esse "apagão"? 1) Alguns cursos de licenciatura estão estagnados e não são demandados por muitos postulantes ao ensino superior; 2) como consequência, menos professores(as) dessas disciplinas são formados(as); 3) disso tudo resulta um déficit no número de profissionais de ensino especializados disponíveis no mercado de trabalho; 4)com o progressivo aumento de matrículas no ensino médio, muitos estudantes dessa etapa da educação básica não terão aulas com alguém devidamente habilitado. E que cursos de licenciatura estão sendo mais afetados? "Embora a pedagogia ainda esteja entre os três cursos mais procurados no ensino superior, esse interesse pela educação não se reflete em áreas como física, química e matemática", de acordo com artigo assinado pelo SEMESP (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Ensino Superior)****. Isso sem falar que só 10,6% das escolas brasileiras possuem laboratório de ciências...

Este blogueiro mesmo é o resultado do descaso com que a educação científica é conduzida no Brasil. É desprezível meu aprendizado em matemática, química, física e biologia, fato que me trouxe grande prejuízo. Mas nem por isso deixo de perceber a tremenda importância da educação científica, principalmente para além dos muros escolares.

Carl Sagan, em O mundo assombrado pelos demônios, é bastante sensato ao afirmar que

"Não há uma solução única para o problema do analfabetismo em ciência - ou em matemática, história, inglês, geografia e muitos dos outros campos de que nossa sociedade mais necessita. As responsabilidades são amplamente partilhadas - os pais, o eleitorado, os conselhos das escolas locais, a mídia, os professores, os administradores, os governos federal, estadual e local, além dos próprios estudantes, é claro".

Torço para que os(as) alunos(as) mais estudiosos(as) e aplicados(as) não se importem com os possíveis rótulos de nerds a lhes ser impingidos e, por esse motivo, desanimem. O mundo precisa - e muito - dos nerds.


. . . . . . .

A postagem já está bem mais extensa do que o habitual, mas peço um pouco mais de paciência ao(à) eventual leitor(a), pois há um último ponto a discutir.

A imagem no alto deste texto indica as características que distinguem um geek de um nerd. É bastante comum as pessoas tomarem um pelo outro, como se ambos os tipos sociais fossem os mesmos. Não penso assim. Mas voltemos à ilustração. Segundo minha interpretação, o desenho dá a entender que o geek é, digamos, mais cool, sobretudo em seu look. Importante notar, porém, que o personagem do nerd carrega um livro na mão, ao invés de um gadget (no caso um smartphone, provavelmente), além de ser alguém que tem "extremo interesse ou fascinação por assuntos acadêmicos". E acho que aí está a diferença fundamental entre os dois.

Geeks, em geral, são muito inteligentes, mas sempre me pareceram, com frequência, estar a reboque do que a indústria do entretenimento e as marcas mais famosas do mundo tecnológico, consumidas como grifes, oferecem. Acho que há pouca disposição intelectual e esparsa consciência política no ambiente geek.

Por outro lado, considero os nerds mais comprometidos com o ethos do aprimoramento intelectual, bem como acho-os menos indiferentes aos processos políticos.

Diria então que os geeks são, em relação à intelectualização, mais soft, enquanto os nerds seriam mais hard.
__________
* BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [Tradução e notas de José Aluysio Reis de Andrade] (Coleção Os pensadores)

** SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [Tradução de Rosaura Eichemberg]

*** GARCIA, Marcelo. Brasileiro: "analfabeto" científico? Ciéncia Hoje. 18 ago. 2014. Disponível em <http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/2014/08/brasileiro-analfabeto-cientifico> Acesso em 14/06/15

**** Apagão docente. Disponível em <http://educacaoeuapoio.com.br/2014/02/25/apagao-docente/> Acesso em 14/06/15

BG de Hoje

Uma das melhores bandas de rock de todos os tempos (e também uma das bandas mais adoradas por nerds mundo afora): R.E M., Imitation of Life. E, a propósito, acho este clipe sensacional.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Por que preciso falar de Serena Williams?


E não é falar apenas da atleta, mas sobretudo das questões que emergem do seu papel (involuntário, talvez) de símbolo para o enfrentamento do racismo e do machismo.

Concentremo-nos, inicialmente, na atleta.

Ao vencer o Aberto da França no último sábado, Serena Williams chegou a seu vigésimo título em Grand Slams. Se conquistar mais três, ultrapassará a alemã Steffi Graf, ex-número 1, já aposentada. Nem a detentora do recorde duvida que ela atingirá a marca (leia aqui).

Nessa final em Roland Garros, mesmo ainda se recuperando de uma forte gripe, Serena conseguiu superar a tcheca Lucie Safarova, valendo-se de seus mais eficientes recursos: a força do saque e a precisão e vigor nos winners, evitando as desgastantes trocas de bola. Ela é simplesmente a maior tenista de todos os tempos, embora eu seja suspeito para afirmar isso - pois sou um fã ardoroso. Consideremos os últimos 12 ou 13 anos: ela nunca foi de fato ameaçada em sua supremacia pelas outras jogadoras. Perdeu posições no ranking em algumas temporadas anteriores, é verdade, mas apenas por causa de lesões, nunca por deficiência técnica. Pude assistir a jogos com excepcionais atletas - Martina Navratilova, Gabriela Sabatini, Monica Seles, Martina Hingis, a própria Steffi Graf, Justine Henin - mas em nenhuma havia tanta energia e intensidade quanto se pode ver em Serena Williams. Como já registrei aqui, ela, certamente, é um verdadeiro fenômeno do esporte.

Vamos agora para o domínio extra-quadra. 

Apesar de seu talento e da indiscutível capacidade atlética, por que Serena Williams tem menos visibilidade midiática e, por consequência, menos contratos publicitários do que a segunda colocada do ranking, a russa Maria Sharapova? NOTA: Em confrontos diretos, Williams leva enorme vantagem sobre a adversária. Num artigo da revista Rolling Stone, que foi bastante comentado - e recriminado -  há dois anos, Stephen Rodrick escreveu:

"Here are the facts. Serena is the number-one tennis player in the world. Maria Sharapova is the number-two tennis player in the world. Sharapova is tall, white and blond, and, because of that, makes more money in endorsements than Serena, who is black, beautiful and built like one of those monster trucks that crushes Volkswagens at sports arenas. Sharapova has not beaten Serena in nine years. Think about that for a moment"*.

Rodrick, apesar da escorregada**, não coloca panos quentes: a tenista russa, por ser alta, branca e loura - o estereótipo da garota-propaganda - movimenta mais grana com publicidade do que a número um do mundo, que não tem nenhuma dessas características. Serena, com sua pele negra e seu corpo forte (e exuberante), parece não se "adequar" ao mundinho estreito e nada inclusivo (nem atento à diversidade humana) dos publicitários...

Ainda um último ponto. Há muito tempo não vejo uma hegemonia tão evidente no mundo esportivo. Penso, hoje em dia, no caso do judoca francês Teddy Riner, imbatível em sua categoria, sendo hepta campeão mundial.  E até pouco tempo atrás tínhamos Kelly Slater ditando as regras no surfe. Mas nada se parece com o que Serena Williams vem fazendo nos últimos anos. E por que seus feitos não são tão reverenciados como os de outros mitos do esporte? Aliás, é o caso de também perguntar por que os grandes feitos das mulheres no mundo esportivo não têm a mesma visibilidade, nem repercutem tanto quanto as atuações dos homens?NOTA: A esse respeito, basta ver que a derrota de Djokovic para Wawrinka - e o sérvio mais uma vez não conseguiu o título em Roland Garros - teve muito mais destaque nos programas esportivos do que a final feminina no mesmo torneio. 

Para garantir maior diversidade, num mundo plural e complexo como este em que vivemos, seria muito bom se os ídolos realizassem diferentes atividades (chega da monocultura esportiva do futebol!) e pertencessem a  todos os gêneros, com corpos, cor de pele e cabelos que representassem a diversidade humana. É por esse motivo (e por alguns outros) que exalto Serena Williams.

* Tradução aproximada: "Eis os fatos. Serena é a jogadora de tênis número-um no mundo. Maria Sharapova é jogadora de tênis número-dois no mundo. Sharapova é alta, branca e loura, e, por causa disso, faz mais dinheiro em anúncios publicitários do que Serena, que é negra, bonita e esculpoda como um desses caminhões-monstro que passam por cima de Volkswagens nas arenas de esporte. Sharapova não derrotou Serena em nove anos. Pense um pouco sobre isso".
** No seu suposto elogio, ao comparar a tenista com um veículo, o jornalista pisa na bola

BG de Hoje

Muitas vezes fico maravilhado com a riqueza da música brasileira, mesmo sendo, primeiramente, um apaixonado pelo rock inglês e norte-americano. Não me refiro às horripilantes duplas "sertanejas" (léguas distantes do sertão) ou ao primitivo e embrutecido "pancadão" (equivocadamente chamado de funk pela mídia nacional e pela massa desinformada). Infelizmente, porém, esses são os gêneros que predominam no mercado atual (sem falar no repetitivo pagode mauricinho). Mas as rádios e a TV já privilegiaram a qualidade em sua programação noutros tempos. Por exemplo: esta esplêndida composição de Sivuca e Glória Gadelha - Feira de Mangaio - foi um grande sucesso popular na voz de CLARA NUNES! É impossível ouvir essa canção e não ser contagiado por seu ritmo, sua harmonia, sua letra. Rádios e TV do Brasil, por favor, voltem a tocar boa música!.


segunda-feira, 1 de junho de 2015

Sobre nerds, geeks e a educação científica (I)


"Quando, por indiferença, desatenção, incompetência ou medo do ceticismo, dissuadimos as crianças de estudar ciência, nós as privamos de um direito seu, roubando-lhes as ferramentas necessárias para administrar o seu futuro".

Carl Sagan - O mundo assombrado pelos demônios

 
Gosto muito de assistir a desenhos animados, tanto aqueles em que se empregam as técnicas tradicionais de animação quanto aqueles compostos integralmente por computação gráfica, como, por exemplo, Operação Big Hero (Big Hero 6 - direção de Don Hall e Chris Williams, 2014), ao qual assisti no último domingo.

A Disney adaptou um título pouco conhecido da Marvel Comics (esta, como se sabe, é hoje propriedade daquela), contando com a ajuda do grupo Man of Action (criador, diga-se de passagem, da lucrativa marca Ben 10). Tantos nomes fortes da indústria do entretenimento conseguiram, no entanto, produzir uma história apenas razoável, embora não seja um passatempo de todo ruim. Imagino que se encontre por aí, disponível em lojas, milhares de bonequinhos, camisetas estampadas, álbuns de figurinhas e outras quinquilharias relativas a cenas e personagens do filme, feito sob medida para o lançamento de uma variada linha de produtos licenciados para o comércio.

Operação Big Hero, contudo, tem lá o seu valor (e não estou fazendo alusão à sua rentabilidade potencial). É uma narrativa em que, surpreendentemente, os nerds são retratados de maneira positiva. São nerds e são heróis. Melhor dizendo, conseguiram tornar-se heróis no filme em razão de serem nerds: conheciam bastante de matemática, física, química, robótica, eletrônica e essa competência foi necessária e útil para o ato heróico que executam.

Mas, deixando essa animação de lado, por que, em geral, os chamados nerds costumam aparecer de forma estereotipada e/ou negativa em desenhos, filmes ou séries de TV (inclusive em The Big Bang Theory, um produto estranhamente apreciado pelo público)? 

Antes de tentar responder, pensemos um pouco sobre o termo em si.

O Oxford Dictionary define nerd, primeiramente, como "uma pessoa ingênua ou insignificante que carece de habilidades para a convivência social ou é uma estudiosa entediante". E só depois registra, como segunda acepção: "um especialista hábil num campo técnico em particular". Já a Wikipedia ressalta que o termo é "usado frequentemente de modo pejorativo" e muitos nerds são descritos como "tímidos, esquisitões e não atraentes". No entanto, a mesma fonte reconhece que assim como outros termos pejorativos usados para estereotipar, esse "tem sido reapropriado e redefinido como um termo de orgulho e identidade de grupo". A enciclopédia colaborativa on-line também fornece (escassas) informações sobre os primeiros usos dessa palavra como gíria. Segundo o verbete, o termo - já com as conotações de tenacidade nos estudos e inaptidão pessoal - se popularizou nos EUA (e nos países anglófilos) a partir dos anos 1970, graças ao "uso intensivo no seriado cômico Happy Days".

Aqui no Brasil, a palavra nerd é hoje empregada com certa frequência; e, quando assume o sentido de pessoa muito estudiosa, substituiu expressões coloquiais mais antigas do nosso idioma, como a dinossáurica "caxias", a grosseira "CDF" e a simpática "crânio"*.

Em muitas ocasiões, podemos verificar o uso da palavra nerd para fazer referência a um outro tipo social: o geek. Considero isso um grande equívoco. Tratarei, porém, dessa confusão terminológica mais adiante.

Neste momento, gostaria de falar um pouco sobre o livro O mundo assombrado pelos demônios** (a edição brasileira acrescentou a este um ótimo subtítulo: a ciência vista como uma vela no escuro), publicado pelo astrônomo e astrofísico Carl Sagan em 1995. É um dos melhores livros não-ficcionais que conheço. Discute aspectos de metodologia científica e epistemologia, possui elementos de história da ciência, sugere formas para se divulgar melhor a atividade científica para o público em geral, além de ser uma boa fonte para a compreensão adequada do ceticismo. Tudo isso "amarrado" pela narração de alguns trechos autobiográficos, nos quais o autor fala de sua trajetória como estudioso e cientista apaixonado por seu campo de trabalho. E o livro também fornece valiosos pontos de vista sobre a educação escolar, pois foi escrito com a intenção de combater o que Sagan (e muitos outros) chamam de analfabetismo científico.

Leiamos com atenção o trecho abaixo. O autor tem em mente o contexto educacional norte-americano, mas acredito que vale também para o caso brasileiro:

"Algo aconteceu entre o primeiro ano primário e o último ano secundário, e não foi apenas a puberdade. Eu diria que é, em parte, a pressão dos pares para não se sobressair (exceto nos esportes); em parte, o fato de a sociedade ensinar gratificações a curto prazo; em parte a impressão de que a ciência e a matemática não vão dar a ninguém um carro esporte; em parte, que tão pouco seja esperado dos estudantes; e, em parte, que haja poucas recompensas ou modelos de papéis para uma discussão inteligente sobre ciência e tecnologia - ou até para o aprendizado em si mesmo. Os poucos que continuam interessados são difamados como nerds, geeks ou grinds".

Estudar com afinco ou auxiliar e incentivar quem tenha essa disposição não parecem ser prioridades em nossas sociedades. Além do mais, aqueles que se dedicam ao estudo são impopulares, considerados aborrecidos ou esquisitos. Mas Sagan alerta:

"Nós criamos uma civilização global em que os elementos mais cruciais - o transporte, as comunicações e todas as indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto - dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. É uma receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém mais cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância e poder vai explodir na nossa cara".

Vivendo na (pomposamente) chamada era do conhecimento e dependentes da ciência, seria razoável que valorizássemos tanto a instrução e a educação quanto as pessoas dedicadas a essas atividades. Entretanto, é o que se verifica? Volto ao tema na próxima semana.
__________
* Caxias, segundo o Houaiss, proveio do título do Duque de Caxias e alude à disciplina e à aplicação desse militar; CDF (acrônimo para cu-de-ferro) refere-se a "quem apresenta aplicação extrema e mais ou menos obcecada a seus trabalhos, deveres, compromissos (diz-se especialmente de estudante)", segundo o mesmo dicionário; por fim, o Houaiss inclui como um dos sentidos do termo crânio a seguinte acepção: "pessoa de notável inteligência".

** SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [Tradução de Rosaura Eichemberg]

BG de Hoje

Direto ao ponto: PINK FLOYD, One of these days.