quinta-feira, 7 de julho de 2022

Não me leve a mal, mas vou torcer pelo herói


                      

A melhor maneira de definir um herói ou uma heroína, penso eu, é observar seu(s) mais significativo(s) feito(s). Com o perdão pela tautologia, um herói ou uma heroína caracterizam-se essencialmente como realizadores de um ou mais atos heroicos. Se estivermos de acordo nesse ponto, devemos nos perguntar então: o que confere heroicidade a um ato?

Creio que a maioria das pessoas dirá que um ato heroico deve denotar bravura, coragem. Uma ação dessa natureza também carrega um forte componente moral: sua finalidade é ajudar ou salvar outra(s) pessoa(s), ficando o bem-estar ou a segurança do agente em segundo plano. NOTA: Algo que me enerva profundamente é o exagero retórico típico de muitas pessoas (entre elas, jornalistas) chamando de herói um atleta que, sei lá, fez X pontos numa partida ou marcou um gol na decisão de um campeonato. É o mesmo exagero retórico que fala em time de guerreiros. Diabos me carreguem! É esporte! Não é questão de vida ou morte - ou, pelo menos, não deveria ser.

Meu intuito, ao destacar o ato e não o indivíduo que o executa, é afirmar a grande improbabilidade de alguém ser herói full time. Como se sabe, a palavra herói vem da Antiguidade e na mitologia greco-romana designava alguns semideuses, ou seja, criaturas com capacidades extraordinárias, únicas, acima do que um simples humano - um "mero mortal" - pode fazer. Essas habilidades, em geral, diziam respeito à destreza em combate ou à força física. Com o passar do tempo, o conceito de herói incorporou sentidos relacionados ao caráter dos sujeitos assim nomeados: além de corajosos e bons de briga, supostamente honrados e decentes. Ora, que homem ou mulher normal consegue ser tudo isso integralmente, em todas as fases de sua vida?

Essas questões voltaram à minha mente semanas atrás, quando reli (pela enésima vez) A hora e vez de Augusto Matraga, narrativa que fecha o Sagarana, um dos meus livros de cabeceira. De cafajeste a redentor, o protagonista dessa novela de Guimarães Rosa é, em minha opinião, a grande figura  heroica da literatura brasileira. Relembremos como se dá a transformação do personagem.

"Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato" ¹, segundo a esposa Dionóra - que foge dele para viver com outro -, Nhô Augusto é um mandachuva de roça em franca e rápida decadência. Após mais um de seus rompantes, um coronel adversário aproveita a oportunidade para ir à forra. Nhô Augusto é espancado, marcado a ferro. Tentando fugir dos capangas que queriam matá-lo, salta em uma ribanceira profunda. Gravemente ferido, quase morto, é resgatado e cuidado por um casal de pobres e velhos lavradores, Quitéria e Serapião. Aconselhado por um padre, desiste dos planos de vingança, envergonha-se do passado vil e violento  e passa a demostrar uma fé poderosa: "- Eu vou p'ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal... E a minha vez há de chegar... P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..."

Mudando-se pra outro lugarejo mais distante acompanhado pelos campônios que o salvaram, fugindo da vida antiga, o personagem converte-se num trabalhador braçal incansável, "meio doido e meio santo", abstêmio e reservado. Contudo, passados alguns anos, "pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha vindo paralela". Por coincidência - ou por um lance do destino -, chega ao vilarejo justamente nessa época uma quadrilha de jagunços liderados pelo "homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem".

O povoado se assusta, mas Nhô Augusto é pura euforia. Faz questão de receber todo o bando em seu pedacinho de terra, oferecendo o que de melhor conseguiu arrecadar na vizinhança. O líder da jagunçada aprova o bom tratamento dado a seus homens; já havia simpatizado com o anfitrião antes, só de tê-lo visto caminhando na estradinha. No dia seguinte, preparando-se para partir, Joãozinho Bem-Bem diz: " - Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha...". Convida-o para integrar o "seu povo". Nhô Augusto resiste à tentação, porém. 

Tempos depois, decide ir-se embora, vagar pelo sertão, sentindo-se menos opresso pelos hábitos severos que adotara na "nova vida". Viajando montado num jumento, acaba reencontrando Joãozinho Bem-Bem e sua hoste, dentro  da casa de um fazendeiro aliado do bandido, no arraial do Rala-Coco, próximo àquele de onde o protagonista dessa história fugira. 

Chegamos ao clímax de A hora e vez de Augusto Matraga.

O chefe dos jagunços - seguindo "regras" da jagunçagem - precisa vingar a morte de um de seus sequazes, baleado "à traição" por um habitante do arraial, em fuga a essa altura. Para tanto, irá matar um dos filhos de um velho sertanejo (irmãos do rapaz em fuga) e permitir que os outros bandoleiros estuprem as filhas dele. O velho, chorando ajoelhado, implora piedade. Joãozinho Bem-Bem nega. Desamparado, mas dessa vez com fúria, o lavrador vocifera:

"- Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus p'ra ajudar a minha fraqueza no ferro da tua força maldita!..."

Nhô Augusto estava no mesmo recinto, sentado num selim velho, presenciando toda a cena, de posse das armas do recém-assassinado jagunço, que lhe foram oferecidas pelo próprio Joãozinho Bem-Bem, num segundo convite para que ele se juntasse ao bando.

Após um momento de silêncio, fala:

"- Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz!"

O narrador prossegue:

"Nhô Augusto tinha falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana, enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabina. Dera tom calmo às palavras, mas puxava forte respiração soprosa, que quase o levantava do selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cresciam, todo ele crescia, como um touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar sozinho no meio do curral".
O que se segue é uma luta sangrenta entre Nhô Augusto e alguns jagunços, culminando num duelo final, à ponta de faca e no meio da rua, entre o protagonista e o líder dos facínoras. Joãozinho Bem-Bem é morto, mas Nhô Augusto - agora Augusto Matraga ² - também morrerá, em razão dos muitos ferimentos. Enquanto tentava achar um padre para acudir, o povo do Rala-Coco dizia: "Foi Deus que mandou esse homem do jumento, por mór de salvar as famílias da gente!..."

O antropólogo Roberto DaMatta, num ensaio ³ em que classifica o personagem de Guimarães Rosa como um renunciador (alguém que representa uma "saída da 'ordem'", isto é, alguém que se livra das amarras e da fixidez das hierarquias sociais), observou que, mesmo havendo identificações entre este e Joãozinho Bem-Bem (sujeitos violentos e discricionários em suas ações, próximos do poder no Brasil rural representado na obra do escritor mineiro), a intervenção de Nhô Augusto (convertido em Augusto Matraga, ao salvar a família do velho sertanejo) "o transforma em representante do Bem, em oposição ao representante do Mal". Não há nada de simplismo maniqueísta em tal afirmação. Parágrafos acima, escrevi sobre a improbabilidade de alguém ser herói o tempo todo e preferi enfatizar o(s) ato(s) e não o indivíduo que o(s) praticou. Pessoas têm falhas e vícios, o que contrasta com a noção mais corriqueira do que seja um herói. Por isso, a ação é fundamental, determinante, mesmo em se tratando de um ser ficcional.

Nhô Augusto foi um rematado patife em grande parte de sua vida. Quando chegou a hora derradeira, entretanto, realizou um ato heroico admirável. Praticou o bem diante de um mal presente e imediato.

Penso, por exemplo, em outras figuras heroicas - dessa vez, pinçadas no mundo real: o pastor norte-americano Martin Luther King Jr, a ativista paquistanesa Malala Yousafzai, o jornalista australiano Julian Assange. Ainda que sejam pessoas humanamente imperfeitas, praticaram atos que demandavam grande coragem, visando ajudar outras pessoas (e todos os três colocaram suas próprias vidas em risco, sendo que o primeiro foi assassinado).
 
Mas há quem busque também pelo herói impecável.
 
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O episódio inicial da primeira temporada da série Reacher (disponível na Amazon Prime, estrelada pelo ator Alan Ritchson) não perde tempo com firulas. De cara, o espectador já tem um perfil completo do protagonista, não importando se não tenha lido nenhum dos livros de Lee Child (criador do personagem) ou assistido aos dois filmes em que Tom Cruise o interpretou antes. Neste episódio, nas primeiras cenas em que aparece, intimida - sem dizer uma única palavra ou fazer qualquer gesto - um sujeito que xingava e ameaçava de agressão a companheira.

Jack Reacher é um cara bonito, alto, forte, bom de briga e muito sagaz (vários dos leitores de Child elogiaram a escolha do ator que o interpreta pois se encaixaria na descrição contida nos livros). Faz tudo o que se espera do personagem central neste tipo de produto de entretenimento: investiga e desvenda um grande esquema criminoso, mata os caras maus, defende pessoas em perigo. Há uma cena no quinto episódio que acho muito prazerosa de assistir. Ao ver que o carro de uma mulher com quem estava envolvido (uma policial) foi pichado com a palavra "whore", ele vai tirar satisfações com o filho mimado do ricaço da cidadezinha onde estava. Poucas vezes vi um tapa na cara tão bem dado.

A atração da Amazon Prime não se preocupa em fugir dos clichês; o herói ali retratado também não tem nada de inovador ou surpreendente - e quem já viu (num filme ou seriado) um ex-militar dos EUA, hétero e branco, salvando o dia, já viu todos. Ainda assim, considero um programa de TV muito bom (não que eu dê muita bola para isso, mas o agregador de resenhas Rotten Tomatoes registra 90% de opiniões favoráveis a Reacher). Será que nós (falo dos espectadores saturados com os produtos televisivos norte-americanos) viramos um público tão pouco exigente?
 
Minha resposta será simples - talvez até simplória. Paciência; é o que tem pra hoje.
 
Grande parte (talvez a maioria) das iniquidades do mundo não é e não será punida. Fraudadores e sonegadores continuam ganhando muito dinheiro com falcatruas; bilionários continuam explorando pessoas; políticos e agentes públicos continuam prevaricando. Bullies seguem oprimindo; predadores sexuais seguem atacando; racistas seguem propagando ódio; assassinos seguem espalhando terror. Acho risíveis afirmações de que há mais pessoas boas do que pessoas más no planeta ou o otimismo de intelectuais como Steven Pinker. Atos perversos costumam provocar danos de grande alcance e longa duração, mesmo que vivamos no "melhor dos mundos possíveis".

É aí que entra a ficção.

É satisfatório e recompensador ver ou ler - pelo menos na ficção - que o cara mau levou o que merecia.

Cheguei a um ponto em que me contento com pouco. Por isso, sempre torço para os heróis em narrativas inventadas.

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¹ ROSA, João Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga. In: _________. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001 (p. 363-413). Todas as citações do texto de Rosa presentes nesta postagem foram retiradas dessa edição.

² Importante mencionar que, no texto, João Guimarães Rosa não explica o que significa a alcunha Matraga, nem como ela foi adicionada à figura de Augusto Esteves.

³ DaMATTA, Roberto. Augusto Matraga e a hora da renúncia. In: __________. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 303-334

BG de Hoje

Como alguns outros grupos de heavy metal, o AVENGED SEVENFOLD foi abrandando sua música ao longo dos mais de 20 anos de existência da banda (não vejo nada de errado nisso, diga-se de passagem). A desaceleração nos instrumentos é nítida, bem como a aproximação com o rock pesado mais tradicional. Um exemplo disso é a canção que dá título a um dos últimos trabalhos de estúdio do grupo, lançado há quase dez anos. A sonoridade e a temática de Hail To The King quase derrapam na breguice de alguns representantes dessa vertente musical (penso, por exemplo, no burlesco Manowar), mas, ao cabo, é uma faixa que se ouve com satisfação.