quinta-feira, 13 de outubro de 2022

A quem interessar possa


Sinto-me bastante esgotado.

Às preocupações pessoais com dívidas junto a bancos e aos problemas de saúde (inclusive mental: não consigo viabilizar o tratamento correto de minha depressão, diagnosticada em maio) vem se somar agora, após observar os resultados e desdobramentos do processo eleitoral (ainda em curso)*, a consolidação de uma crença (que gostaria de não ter): o Brasil é uma grande desgraça.

Não há, no momento, qualquer disposição para atualizar o blog.

Espero voltar ainda este ano.

* Seja quem for o presidente eleito em 30/10, o ultraconservadorismo hipócrita triunfou. Gente como Damares Alves (PQP!!!) e Nikolas Ferreira entrou para o Congresso! O pânico moral, tática usada por pessoas como eles, fortificou-se tremendamente como estratégia a ser empregada no debate público de agora em diante (alguns aliados e apoiadores da chapa Lula-Alckmin já se valem do mesmo expediente - que tristeza!). Além disso, o orgulho de ser burro e reacionário - um sentimento típico do bolsonarismo - não se dissipará, mesmo que o pulha perca a eleição. Esse sentimento contaminou a sociedade brasileira. E do ponto de vista puramente administrativo, Lula (caso eleito e empossado) estará contra a parede o tempo todo, se não contar com uma boa dose de sorte em relação à economia internacional.

sábado, 24 de setembro de 2022

A escolha nunca foi difícil. Os problemas são outros


[Postagem atualizada em 03/12/2022]

No dia oito de outubro de 2018, publicou-se uma das peças mais infames dos últimos anos dentro do  jornalismo corporativo brasileiro. Falo do editorial intitulado Uma escolha muito difícil, no qual o Estadão tratava das duas candidaturas que disputavam o segundo turno da eleição presidencial naquele ano: Fernando Haddad (pelo PT, Partido dos Trabalhadores) e Jair Bolsonaro (então no extinto PSL, Partido Social Liberal). O texto em questão alegava que o "esquerdista", "o preposto de um presidiário" não se diferenciava do "truculento apologista da ditadura militar".

O antipetismo tosco do centenário jornal dos Mesquita não seria motivo de espanto. A torpeza do editorial, contudo, decorre da leviandade de um veículo de imprensa com a notabilidade que (ainda) tem O Estado de S. Paulo em equiparar o que, naquele momento histórico, não poderia ser equiparado. Aquele editorial escancarou a pequenez dos conglomerados de mídia brasileiros e foi a cereja do bolo no discurso da "polarização" e dos "dois lados da mesma moeda".

Antes de prosseguir, preciso deixar claras certas coisas.

Como está expresso no esboço biográfico apresentado neste blog, identifico-me com o ideário político da esquerda. É desta perspectiva, portanto, que observo e critico o quadro atual. A partir de 2006, minha preferência partidária passou a ser o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), mas, desde quando me tornei eleitor (1989), nunca tive qualquer relutância para votar em candidatos do partido do ex-presidente Lula (e no próprio) quando julguei necessário. Isso não significa que seja cego e assuma uma postura de negação em relação às malversações, atos ilícitos e outros erros cometidos por membros do PT ou por pessoas ligadas a este (voltarei ao assunto mais adiante). Sinceramente, gostaria que nas duas últimas décadas tivessem surgido grandes lideranças nacionais identificadas com os mais pobres para que houvesse alternativas a Lula. Como isso não aconteceu, o ex-presidente permanece sendo o nome mais viável eleitoralmente no campo progressista e popular.

Pois bem. Quando se diz, de forma quase automática, que a sociedade brasileira "polarizou-se", que a eleição está "polarizada", o tom adotado é um misto de consternação e lamúria. Dissequemos isso. 

A metáfora dos polos é mesmo a mais adequada para descrever o que está acontecendo? Há de fato uma disputa de extremos? 

Quando a vitória de Bolsonaro em 2018 tornou-se factível, pouquíssimos articulistas dos conglomerados de mídia brasileiros tiveram coragem de usar o termo extrema direita para descrever o que aquela candidatura representava. O cabeça da chapa já havia defendido guerra civil e armamento da população em geral; celebrava a ditadura de 1964; homenageava milicianos e exaltou um notório torturador; esgoelou, dentro da Câmara dos Deputados, que não estupraria uma parlamentar porque ela não "merecia" (por ser "feia", segundo o sujeito). Muitos de seus correligionários e seguidores assinavam embaixo de demonstrações como essas, exaltavam as mesmíssimas coisas. E isso tudo foi normalizado! (Hoje, felizmente, até comentaristas da ensaboada GloboNews perderam o receio de empregar a expressão extrema direita em referência a essa turma). 

Cabe perguntar de forma honesta: Lula e o PT - hoje, os adversários mais em evidência do bolsonarismo - representam a extrema esquerda? Por acaso defendem ações violentas e se pronunciam publicamente de forma tão incivilizada quanto o ex-capitão e sua turma? Ou, pensando no eterno pavor da perda de privilégios dos endinheirados do país, propõem uma ruptura profunda dentro da ordem socioeconômica vigente?

A resposta honesta tem que ser não.

Desde aquela Carta ao povo brasileiro divulgada em 2002 (cujo objetivo era acalmar a burguesia), o Partido dos Trabalhadores foi cada vez mais se encaminhando para o centro. Antes (e depois) de chegar ao Palácio do Planalto, o PT governou estados (Rio Grande do Sul, Acre, Bahia, Minas Gerais, Sergipe, Rio Grande do Norte); esteve à frente de prefeituras de capitais (Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Aracaju); elegeu grande número de parlamentares. Diga-me com sinceridade: cadê o extremismo desse partido que já foi há tanto tempo assimilado pelo establishment? O PT de 2022 guarda pouquíssimas semelhanças com o PT de 1980 (para minha tristeza, aliás). É preciso ser franco: Lula tornou-se um pragmático conciliador (vide Geraldo Alckmin como seu vice; não me surpreenderia se o ex-metalúrgico se aproximasse de pessoas que atuaram no golpe contra Dilma Rousseff) e sua agremiação nada tem de radical (quando esteve à frente do governo federal, foi um doce com os detentores da grana grossa). Existem, de fato, lados facilmente discerníveis na atual disputa político-eleitoral brasileira. O termo "polarização", porém, no contexto dessa disputa específica, me parece desacertado. Vivendo num país tão desigual como o Brasil, é natural que haja profundas divergências entre os atores políticos. Desejar que as democracias (ainda mais no feroz capitalismo atual) sejam um terreno harmônico que deve evitar os conflitos não é nada realista. Há diversos interesses e grupos em disputa dentro da sociedade. Daí a existência de partidos. E é de se esperar que essas partes, dentro do debate público e do jogo eleitoral, tentem apregoar que são melhores (ou, pelo menos, mais aceitáveis) do que as outras.

O que o extremismo representado por Bolsonaro faz (embora o fenômeno tenha surgido antes de 2018) é sugerir e até incentivar a destruição do adversário, exterminando a divergência, algo inadmissível em qualquer democracia razoavelmente sadia.

As queixas em torno da "polarização" me enervam em particular porque muitas vezes estão baseadas na falácia do argumentum ad temperantiam. É enervante também porque o que se convencionou chamar de centro ou de moderado no Brasil costuma ser apenas uma direita não tão rude e intolerante (e repare, eventual leitor(a), que a grande mídia nacional nunca elenca o PT - um partido já há muito assimilado pelo establishment do país, escrevi acima - como uma organização de centro-esquerda).

Para encerrar esse ponto, em boa parte das democracias mundo afora, as eleições para o executivo acabam se resumindo a uma escolha entre apenas duas candidaturas competitivas. Foi assim inclusive no Brasil, em passado bem recente. Reitero: o termo polarização, como forma de descrever o cenário eleitoral do momento no país, não é muito acertado (sobretudo por servir como meio de evitar reconhecer o quanto há de inerentemente antagônico nas sociedades capitalistas).

Entre as duas candidaturas que têm condições reais de vencer a disputa, uma coloca em risco a imatura e já tão combalida democracia brasileira. A outra, não. Uma candidatura representa o atual governo, que fez o Brasil voltar ao mapa da fome. A outra indica ter maior entendimento do papel do poder público para mitigar os efeitos da desigualdade social.

Lá no segundo turno de 2018, não se tratava de uma escolha difícil. E agora, em 2022, também não. A caquistocracia de Bolsonaro (para usar o termo empregado pelo jornalista José Roberto de Toledo no ótimo podcast Foro de Teresina) não pode continuar. Lula é aquele que mais tem chance de nos livrar dela.

. . . . . . .

Quais critérios sigo para escolher candidatos(as) nas eleições para o legislativo e o executivo?

Obviamente, em primeiro lugar, há o alinhamento ideológico: sempre voto na esquerda ou na centro-esquerda.

A seguir, tento priorizar a escolha de pessoas pertencentes a segmentos com baixa representação na política profissional-institucional. Quando se olha para o Congresso Nacional, por exemplo, vemos que é composto majoritariamente por homens, brancos, que estão ali para representar interesses de grandes empresários, banqueiros ou grandes ruralistas, além de membros de organizações religiosas (principalmente neopentecostais). Minhas escolhas, portanto, priorizarão mulheres, negros ou indígenas, indivíduos não vinculados à elite econômica e que tenham compromisso com a laicidade do Estado.


Para deputada estadual, votarei mais uma vez em Andréia de Jesus. Já o tinha feito em 2018, quando ela concorreu pelo PSOL (hoje está no PT). Considero fundamental sua reeleição, não só por seu importante trabalho na área de direitos humanos, mas como forma de se contrapor à violência política que se acirrou no país nos últimos anos, uma vez que Andréia de Jesus é alvo de ameaças de morte e agressões pela internet com cunho racista.




Para deputada federal, votarei em Iza Lourença. Atualmente vereadora aqui em Belo Horizonte, a candidata do PSOL tenta seguir trajetória parecida com de Áurea Carolina (a quem dei meu voto em 2018, mas que, infelizmente, desistiu de concorrer à reeleição em 2022, por problemas de saúde). As chances de Iza não são grandes; tomara que surpreenda.




Para senadora e governadora, votarei em Sara Azevedo e Lorene Figueiredo, respectivamente. Ambas do PSOL, ambas defensoras do ensino público. Pelo que tudo indica, no entanto, lamentavelmente aqui em Minas, os eleitos para esses cargos serão dois caudatários do bolsonarismo.

Para presidente - como deve estar claro -, voto em Lula.

Quando uma tal opção é declarada, imediatamente segue-se a cantilena: "E a corrupção comandada pelo partido dele? Ele roubou, foi até parar na cadeia!" 

Acreditar que a política profissional ficará livre da corrupção desde que se escolham as pessoas certas é meio ingênuo. Ora, seja na Suécia, em Gana, no México ou na Nova Zelândia, aproveitadores sempre vão conseguir ocupar cargos públicos. Governos e parlamentos lidam com vultosos recursos financeiros e têm imenso poder de interferência - como poderiam deixar de atrair picaretas de diferentes origens? Mesmo que se escolham as pessoas certas (caso isso seja possível), a corrupção não vai ser expurgada de uma vez por todas. Não é algo que possa ser evitado com moralismo barato apenas. Algumas nações conseguem resolver casos de corrupção melhor do que outras porque, geralmente, têm instrumentos de fiscalização, investigação e controle mais eficientes. Mas isso não significa que subornos, desvios e fraudes nunca mais acontecerão. Houve corrupção em governos do PT? Certamente. Assim como houve em outros governos, com outros partidos à frente, antes e depois. O ponto é que se tornou conveniente, dentro do embate político (inclusive para além da disputa eleitoral), transformar Lula e seu partido num bode expiatório (quantas e quantas vezes já não ouvi e li na mídia que o Mensalão ou o Petrolão foram os maiores esquemas de corrupção da história do Brasil...). Quanto à prisão do ex-presidente, creio que a essa altura qualquer pessoa de bom senso concordará sobre o caráter farsesco de todo o processo acusatório e de condenação. Quero deixar claro que a probidade de ocupantes de cargos públicos não é algo desimportante e é necessário enfrentar a corrupção. No entanto, há muito mais coisas a serem consideradas dentro do pesado jogo da política concreta do que apenas moralismos de conveniência.

Agora que essa questão foi tirada do caminho, retomemos o fluxo da postagem.

O petista é favorito. Há possibilidade (pequena) de que consiga vencer já no dia dois de outubro. Caso esse favoritismo se confirme, no primeiro ou no segundo turno, Lula, é óbvio, dificilmente terá vida fácil, ainda que consiga controlar a inflação, evitar mais perdas nos salários dos trabalhadores ou não depender do Centrão (algo praticamente impossível). Após o desastre da caquistocracia de extrema direita, o (possível) governo Lula-Alckmin, receio eu, seria de conserto e acomodação (e, portanto, sem ímpeto para mudanças mais progressistas e ousadas).

Há ainda um último ponto a ser destacado. O mandato de Bolsonaro tem servido para tornar mais evidentes alguns dos inúmeros impasses brasileiros, alguns deles entranhados na história do país. Um (possível) novo governo Lula não dará conta de resolvê-los. Para ser franco, não sei se um dia serão sanados.

Áreas do espaço urbano dominadas pela criminalidade; deterioração da qualidade dos empregos, com alto índice de informalidade; falta de investimento adequado em ciência e tecnologia (a esse respeito, recomendo a leitura do artigo Basta de tentativas de 'ciencídio', assinado por três pro-reitores da USP). Poderia continuar arrolando vários outros problemas, mas vou usar como exemplo agora apenas a questão agrária.

Creio não ser falso dizer que a concentração de terra no Brasil é perversa desde o período colonial. Até hoje figurões da monocultura ou da criação de gado infringem leis a torto e a direito e dificilmente são punidos. É assustador ver como o agronegócio de escala industrial - e seu uso indiscriminado de agrotóxicos, seu papel no desmatamento e na violência contra camponeses, indígenas e ambientalistas - seja caracterizado com o fofinho adjetivo pop pelo maior grupo de mídia do país (o mesmo grupo que, junto como outros veículos da grande imprensa, trata o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra quase como uma organização criminosa). O baronato do agronegócio adora se exibir como o grande esteio da nação (recomendo muito a leitura de excelente matéria da revista piauí derrubando vários mitos envolvendo o agronegócio) ou como o setor que alimenta o Brasil, mas cerca de  70% da comida que consumimos vêm da agricultura familiar.

Um (possível) governo Lula, infelizmente, não conseguirá enfrentar o poderio dos latifundiários (para ser franco, nem sei se terá vontade política suficiente para fazê-lo).

Mas a eleição de Lula pode, quem sabe, abrir oportunidade para que mais à frente outra conjuntura se forme e, preservada a continuidade democrática, seja possível no futuro diminuir a ação de oligarcas deste e de outros setores do Brasil.

Não é muito, mas é o que se tem por agora.


[Atualização em 26/09/2022]: Escrevi o texto acima não levando em conta a disposição golpista e autoritária de vários integrantes das Forças Armadas e das polícias espalhadas pelo país. Os eleitores brasileiros não têm garantia alguma de que esses indivíduos não vão conduzir uma insurreição armada, secundados por milhares de civis que têm seus próprios arsenais (graças às aquisições facilitadas nos últimos três anos), caso a derrota eleitoral do atual presidente - a quem apoiam - se confirme. O risco de uma insurgência urdida por fardados ou por particulares com tesão em fuzis e pistolas não é desdenhável.

[Atualização em 03/10/2022]: Passado o primeiro turno, ficou evidente que os institutos de pesquisa eleitoral erraram bisonhamente em seus levantamentos, abalando a credibilidade dessas empresas. O bolsonarismo e a direita neofacista brasileira mostraram uma força assustadora. O Senado em 2023 terá a volta de um fundamentalista evangélico e a estreia de outra, da mesma estirpe (ou até mais fanática), além do astronauta de meia tigela e do ex-juiz parcial que foi um dos responsáveis diretos pela barafunda em que nos encontramos hoje, como país. Na Câmara Federal, o parlamentar mais votado (para minha vergonha, aqui de Minas) é um garoto mimado cuja única expertise é "mitar" nas mídias sociais; o segundo deputado mais votado no Rio de Janeiro é o cara que esteve à frente do Ministério da Saúde durante o período em que a pasta foi ainda mais incompetente no combate à pandemia da COVID-19... Não me serve de alento saber que Andréia de Jesus foi reeleita para a Assembleia Legislativa daqui e que o PSOL mineiro conseguiu levar uma mulher indígena para o Congresso (Célia Xakriabá): o saldo desta eleição, infelizmente, é o pior possível, sobretudo porque as chances de Bolsonaro continuar na Presidência da República agora são enormes.


BG de Hoje

Às vezes fico perplexo com certas argumentações defendendo o "caminho do meio" ou a importância de manter a "neutralidade". Em muitos casos, essas argumentações são burras, covardes ou inescrupulosas. Há questões éticas que não se pode ignorar e deve-se escolher um lado. Estou longe de ser um indivíduo virtuoso: por exemplo, como carne (e acho que será assim até a minha morte), mesmo consciente da crueldade inerente à criação de animais para abate, e não sou tão humanista e tolerante quanto tento me mostrar. Ainda assim, tenho orgulho de defender determinadas pautas. Essas reflexões vêm a mim sempre que ouço a bela letra de CARLOS RENNÓ na composição Manifestação (música de Xuxa Levy, Russo Passapusso e Rincon Sapiência).

Rennó também escreveu a letra do "Hino" ao Inominável (música de Chico Brown e Pedro Luís), "homenageando" o atual ocupante da Presidência da República (que, espero, esteja fora do poder em 2023).

domingo, 28 de agosto de 2022

Absortos na vida


Momento num café, de Manuel Bandeira, é um de meus poemas prediletos. Foi reproduzido aqui no blog anteriormente, há quase dez anos.

É uma composição descritiva. 

Na pequena cena, alguns fregueses de um café tiram seus chapéus (o texto foi publicado na década de 1930, quando o chapéu era um acessório quase obrigatório) como sinal de respeito a um cortejo fúnebre que passa. Um dos homens, entretanto, não o faz "maquinalmente", escreve Bandeira, mas sim por meio de um "gesto largo e demorado/olhando o esquife longamente", porque ele sabia que "a vida é uma agitação feroz e sem finalidade/que a vida é traição/e saudava a matéria que passava/liberta para sempre da alma extinta".

Se o(a) eventual leitor(a) já leu outras postagens deste Besta Quadrada certamente notou que é exatamente assim que vejo a vida - uma agitação feroz e sem finalidade. Entretanto, é dos outros fregueses do café que gostaria de falar hoje.

Por que tiraram o chapéu maquinalmente, ou seja, de forma desatenta, apenas seguindo as convenções e a etiqueta social da época? 

Porque "estavam todos voltados para a vida/absortos na vida/confiantes na vida".

Os absortos na vida são numerosos. Creio que são a maioria dos seres humanos. 

Acredito que diversas passagens de A náusea referem-se justamente a indivíduos assim. Explicarei.

Primeiro romance de Jean-Paul Sartre, publicado originalmente em 1938, A náusea (livro que tenho lido desde o final da adolescência e sobre o qual já falei em postagem de set/2014) lança mão de um velho estratagema literário: o do relato encontrado "em meio a outros registros" e transformado em publicação por certos "editores". No caso, o diário de um historiador e pesquisador chamado Antoine Roquentin, escrito quando este esmiuçava a vida de um nobre menos aquilatado, envolvido com atos de espionagem, morto na segunda década do século XIX.

Boa parte do que está no diário é resultado de observações feitas por Roquentin quando se encontrava dentro de cafés na cidade fictícia de Boeville (inspirada provavelmente numa cidade francesa real, Le Havre). É um homem solitário. "Nunca falo com ninguém; não recebo nada, não dou nada", anota ele ¹.  O que procura em estabelecimentos justamente desse tipo?

Tentar se proteger.

"As coisas não vão bem!" - registra Roquentin em certo dia - "Não vão bem de modo algum: estou com ela, com a sujeira, com a Náusea. E dessa vez é diferente: me veio num café. Até agora os cafés eram meu único refúgio, porque estão cheios de gente e são bem iluminados: já não haverá nem isso; quando me sentir encurralado em meu quarto, já não saberei aonde ir".

Porém, estar entre outras pessoas não significa necessariamente ligar-se a essas mesmas pessoas: "Estou só em meio a essas vozes alegres e sensatas. Todos esses sujeitos passam o tempo se explicando, reconhecendo com satisfação que têm as mesmas opiniões. Deus meu, que importância dão a pensar todos juntos as mesmas coisas!"

É duro (e nauseante) dar-se conta do quanto há de contingente e arbitrário na existência, divisando todas as implicações dessa constatação. Para livrar-se do peso, para não ter que encarar continuamente o insuportável absurdo, entra-se em tavernas, bares ou cafés - "bem perto das pessoas", mas "na superfície da solidão" -, pois a aparência de algo que faça sentido ou tenha propósito no existir depende da proximidade dos outros.

Note-se, entretanto, que bem poucos sentem essa náusea (ou, pelo menos, bem poucos falam a respeito dela, exteriorizam-na). A maioria dos indivíduos é de absortos na vida, com os quais Roquentin (e, se posso dizer, também este blogueiro) mal consegue relacionar-se:

"Como me sinto longe deles [...]. Parece-me que pertenço a uma outra espécie. Eles estão saindo dos escritórios, depois de seu dia de trabalho, olham para as casas e para as praças com ar satisfeito, pensam que essa é a sua cidade, uma 'bela urbe burguesa'. Não têm medo, sentem-se em casa. Nunca viram senão a água domada que corre das torneiras, a luz que jorra das lâmpadas quando se aperta o interruptor, as árvores mestiças, bastardas, sustentadas por espeques. Eles comprovam, cem vezes por dia, que tudo se faz por mecanismos, que o mundo obedece a leis fixas e imutáveis. Os corpos abandonados no vazio caem todos na mesma velocidade, o jardim público é fechado todos os dias às dezesseis horas no inverno e às dezoito horas no verão, o chumbo funde a 335°, o último bonde sai da prefeitura às vinte e três e cinco. Eles são sossegados, um pouco taciturnos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente um novo hoje; as cidades dispõem apenas de um único dia que retorna igualzinho todas as manhãs. Só o enfeitam um pouco aos domingos. Que imbecis! Repugna-me pensar que vou rever seus rostos espessos e tranquilos. Eles legislam, escrevem romances populistas, casam-se, cometem a extrema tolice de fazer filhos".

___________

¹ SARTRE, Jean-Paul. A náusea. 12 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. [Tradução de Rita Braga]. Todas as citações do texto de Sartre incluídas nesta postagem foram extraídas da edição referenciada.


BG de Hoje

Procuro não ser nostálgico. Odeio a frase "no meu tempo é que era bom". Existe um apego por certas canções brasileiras dos anos 1980 - época da explosão comercial do rock nacional - que eu acho insuportável. Não consigo ouvir muitas faixas daquela época justamente por causa dessa nostalgia chata. Uma das exceções é Até quando esperar, um petardo da PLEBE RUDE que sempre me pego escutando, atento e com prazer. Se a pergunta "Com tanta riqueza por aí/onde é que está/cadê sua fração?" fazia todo sentido há quase 40 anos, o que dizer agora, com a indecente concentração de renda testemunhada nos dias atuais?


sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Falou e disse...

 "Uma mulher pode - pasmem! - não desejar nenhum filho. Ou pode se achar imatura demais para ser mãe naquele momento de sua vida, mas planejar ter filhos mais tarde. Ou, o que tantas vezes ocorre, saber que a pobreza não lhe permite alimentar e cuidar bem dos filhos que já teve, por isso não saberia o que fazer com mais um. O machão carola que condena o aborto com frequência é o mesmo que abandonou mulher e filhos e desaparece para não ter que conceder a pensão prevista em lei.

A única conclusão possível depois dessas considerações [feitas pela autora nos parágrafos anteriores do texto do qual foi extraída esta citação] é a de que a criminalização do aborto reproduz, ainda que para muitos de forma inconsciente, antiquíssimos preconceitos contra a liberdade sexual da mulher. A falsa defesa dos 'direitos do embrião' e as acusações às mulheres que recorrem ao aborto não é o último, mas um dos mais hipócritas refúgios dos canalhas". *

* KEHL, Maria Rita. Hipocrisia. A Terra é redonda (website). Artigo publicado em 13/07/2022. Disponível em <https://aterraeredonda.com.br/hipocrisia/> . Acesso em: 18/07/2022

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Não me leve a mal, mas vou torcer pelo herói


                      

A melhor maneira de definir um herói ou uma heroína, penso eu, é observar seu(s) mais significativo(s) feito(s). Com o perdão pela tautologia, um herói ou uma heroína caracterizam-se essencialmente como realizadores de um ou mais atos heroicos. Se estivermos de acordo nesse ponto, devemos nos perguntar então: o que confere heroicidade a um ato?

Creio que a maioria das pessoas dirá que um ato heroico deve denotar bravura, coragem. Uma ação dessa natureza também carrega um forte componente moral: sua finalidade é ajudar ou salvar outra(s) pessoa(s), ficando o bem-estar ou a segurança do agente em segundo plano. NOTA: Algo que me enerva profundamente é o exagero retórico típico de muitas pessoas (entre elas, jornalistas) chamando de herói um atleta que, sei lá, fez X pontos numa partida ou marcou um gol na decisão de um campeonato. É o mesmo exagero retórico que fala em time de guerreiros. Diabos me carreguem! É esporte! Não é questão de vida ou morte - ou, pelo menos, não deveria ser.

Meu intuito, ao destacar o ato e não o indivíduo que o executa, é afirmar a grande improbabilidade de alguém ser herói full time. Como se sabe, a palavra herói vem da Antiguidade e na mitologia greco-romana designava alguns semideuses, ou seja, criaturas com capacidades extraordinárias, únicas, acima do que um simples humano - um "mero mortal" - pode fazer. Essas habilidades, em geral, diziam respeito à destreza em combate ou à força física. Com o passar do tempo, o conceito de herói incorporou sentidos relacionados ao caráter dos sujeitos assim nomeados: além de corajosos e bons de briga, supostamente honrados e decentes. Ora, que homem ou mulher normal consegue ser tudo isso integralmente, em todas as fases de sua vida?

Essas questões voltaram à minha mente semanas atrás, quando reli (pela enésima vez) A hora e vez de Augusto Matraga, narrativa que fecha o Sagarana, um dos meus livros de cabeceira. De cafajeste a redentor, o protagonista dessa novela de Guimarães Rosa é, em minha opinião, a grande figura  heroica da literatura brasileira. Relembremos como se dá a transformação do personagem.

"Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato" ¹, segundo a esposa Dionóra - que foge dele para viver com outro -, Nhô Augusto é um mandachuva de roça em franca e rápida decadência. Após mais um de seus rompantes, um coronel adversário aproveita a oportunidade para ir à forra. Nhô Augusto é espancado, marcado a ferro. Tentando fugir dos capangas que queriam matá-lo, salta em uma ribanceira profunda. Gravemente ferido, quase morto, é resgatado e cuidado por um casal de pobres e velhos lavradores, Quitéria e Serapião. Aconselhado por um padre, desiste dos planos de vingança, envergonha-se do passado vil e violento  e passa a demostrar uma fé poderosa: "- Eu vou p'ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal... E a minha vez há de chegar... P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..."

Mudando-se pra outro lugarejo mais distante acompanhado pelos campônios que o salvaram, fugindo da vida antiga, o personagem converte-se num trabalhador braçal incansável, "meio doido e meio santo", abstêmio e reservado. Contudo, passados alguns anos, "pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha vindo paralela". Por coincidência - ou por um lance do destino -, chega ao vilarejo justamente nessa época uma quadrilha de jagunços liderados pelo "homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem".

O povoado se assusta, mas Nhô Augusto é pura euforia. Faz questão de receber todo o bando em seu pedacinho de terra, oferecendo o que de melhor conseguiu arrecadar na vizinhança. O líder da jagunçada aprova o bom tratamento dado a seus homens; já havia simpatizado com o anfitrião antes, só de tê-lo visto caminhando na estradinha. No dia seguinte, preparando-se para partir, Joãozinho Bem-Bem diz: " - Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha...". Convida-o para integrar o "seu povo". Nhô Augusto resiste à tentação, porém. 

Tempos depois, decide ir-se embora, vagar pelo sertão, sentindo-se menos opresso pelos hábitos severos que adotara na "nova vida". Viajando montado num jumento, acaba reencontrando Joãozinho Bem-Bem e sua hoste, dentro  da casa de um fazendeiro aliado do bandido, no arraial do Rala-Coco, próximo àquele de onde o protagonista dessa história fugira. 

Chegamos ao clímax de A hora e vez de Augusto Matraga.

O chefe dos jagunços - seguindo "regras" da jagunçagem - precisa vingar a morte de um de seus sequazes, baleado "à traição" por um habitante do arraial, em fuga a essa altura. Para tanto, irá matar um dos filhos de um velho sertanejo (irmãos do rapaz em fuga) e permitir que os outros bandoleiros estuprem as filhas dele. O velho, chorando ajoelhado, implora piedade. Joãozinho Bem-Bem nega. Desamparado, mas dessa vez com fúria, o lavrador vocifera:

"- Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus p'ra ajudar a minha fraqueza no ferro da tua força maldita!..."

Nhô Augusto estava no mesmo recinto, sentado num selim velho, presenciando toda a cena, de posse das armas do recém-assassinado jagunço, que lhe foram oferecidas pelo próprio Joãozinho Bem-Bem, num segundo convite para que ele se juntasse ao bando.

Após um momento de silêncio, fala:

"- Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz!"

O narrador prossegue:

"Nhô Augusto tinha falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana, enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabina. Dera tom calmo às palavras, mas puxava forte respiração soprosa, que quase o levantava do selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cresciam, todo ele crescia, como um touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar sozinho no meio do curral".
O que se segue é uma luta sangrenta entre Nhô Augusto e alguns jagunços, culminando num duelo final, à ponta de faca e no meio da rua, entre o protagonista e o líder dos facínoras. Joãozinho Bem-Bem é morto, mas Nhô Augusto - agora Augusto Matraga ² - também morrerá, em razão dos muitos ferimentos. Enquanto tentava achar um padre para acudir, o povo do Rala-Coco dizia: "Foi Deus que mandou esse homem do jumento, por mór de salvar as famílias da gente!..."

O antropólogo Roberto DaMatta, num ensaio ³ em que classifica o personagem de Guimarães Rosa como um renunciador (alguém que representa uma "saída da 'ordem'", isto é, alguém que se livra das amarras e da fixidez das hierarquias sociais), observou que, mesmo havendo identificações entre este e Joãozinho Bem-Bem (sujeitos violentos e discricionários em suas ações, próximos do poder no Brasil rural representado na obra do escritor mineiro), a intervenção de Nhô Augusto (convertido em Augusto Matraga, ao salvar a família do velho sertanejo) "o transforma em representante do Bem, em oposição ao representante do Mal". Não há nada de simplismo maniqueísta em tal afirmação. Parágrafos acima, escrevi sobre a improbabilidade de alguém ser herói o tempo todo e preferi enfatizar o(s) ato(s) e não o indivíduo que o(s) praticou. Pessoas têm falhas e vícios, o que contrasta com a noção mais corriqueira do que seja um herói. Por isso, a ação é fundamental, determinante, mesmo em se tratando de um ser ficcional.

Nhô Augusto foi um rematado patife em grande parte de sua vida. Quando chegou a hora derradeira, entretanto, realizou um ato heroico admirável. Praticou o bem diante de um mal presente e imediato.

Penso, por exemplo, em outras figuras heroicas - dessa vez, pinçadas no mundo real: o pastor norte-americano Martin Luther King Jr, a ativista paquistanesa Malala Yousafzai, o jornalista australiano Julian Assange. Ainda que sejam pessoas humanamente imperfeitas, praticaram atos que demandavam grande coragem, visando ajudar outras pessoas (e todos os três colocaram suas próprias vidas em risco, sendo que o primeiro foi assassinado).
 
Mas há quem busque também pelo herói impecável.
 
. . . . . . . 
 
O episódio inicial da primeira temporada da série Reacher (disponível na Amazon Prime, estrelada pelo ator Alan Ritchson) não perde tempo com firulas. De cara, o espectador já tem um perfil completo do protagonista, não importando se não tenha lido nenhum dos livros de Lee Child (criador do personagem) ou assistido aos dois filmes em que Tom Cruise o interpretou antes. Neste episódio, nas primeiras cenas em que aparece, intimida - sem dizer uma única palavra ou fazer qualquer gesto - um sujeito que xingava e ameaçava de agressão a companheira.

Jack Reacher é um cara bonito, alto, forte, bom de briga e muito sagaz (vários dos leitores de Child elogiaram a escolha do ator que o interpreta pois se encaixaria na descrição contida nos livros). Faz tudo o que se espera do personagem central neste tipo de produto de entretenimento: investiga e desvenda um grande esquema criminoso, mata os caras maus, defende pessoas em perigo. Há uma cena no quinto episódio que acho muito prazerosa de assistir. Ao ver que o carro de uma mulher com quem estava envolvido (uma policial) foi pichado com a palavra "whore", ele vai tirar satisfações com o filho mimado do ricaço da cidadezinha onde estava. Poucas vezes vi um tapa na cara tão bem dado.

A atração da Amazon Prime não se preocupa em fugir dos clichês; o herói ali retratado também não tem nada de inovador ou surpreendente - e quem já viu (num filme ou seriado) um ex-militar dos EUA, hétero e branco, salvando o dia, já viu todos. Ainda assim, considero um programa de TV muito bom (não que eu dê muita bola para isso, mas o agregador de resenhas Rotten Tomatoes registra 90% de opiniões favoráveis a Reacher). Será que nós (falo dos espectadores saturados com os produtos televisivos norte-americanos) viramos um público tão pouco exigente?
 
Minha resposta será simples - talvez até simplória. Paciência; é o que tem pra hoje.
 
Grande parte (talvez a maioria) das iniquidades do mundo não é e não será punida. Fraudadores e sonegadores continuam ganhando muito dinheiro com falcatruas; bilionários continuam explorando pessoas; políticos e agentes públicos continuam prevaricando. Bullies seguem oprimindo; predadores sexuais seguem atacando; racistas seguem propagando ódio; assassinos seguem espalhando terror. Acho risíveis afirmações de que há mais pessoas boas do que pessoas más no planeta ou o otimismo de intelectuais como Steven Pinker. Atos perversos costumam provocar danos de grande alcance e longa duração, mesmo que vivamos no "melhor dos mundos possíveis".

É aí que entra a ficção.

É satisfatório e recompensador ver ou ler - pelo menos na ficção - que o cara mau levou o que merecia.

Cheguei a um ponto em que me contento com pouco. Por isso, sempre torço para os heróis em narrativas inventadas.

___________

¹ ROSA, João Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga. In: _________. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001 (p. 363-413). Todas as citações do texto de Rosa presentes nesta postagem foram retiradas dessa edição.

² Importante mencionar que, no texto, João Guimarães Rosa não explica o que significa a alcunha Matraga, nem como ela foi adicionada à figura de Augusto Esteves.

³ DaMATTA, Roberto. Augusto Matraga e a hora da renúncia. In: __________. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 303-334

BG de Hoje

Como alguns outros grupos de heavy metal, o AVENGED SEVENFOLD foi abrandando sua música ao longo dos mais de 20 anos de existência da banda (não vejo nada de errado nisso, diga-se de passagem). A desaceleração nos instrumentos é nítida, bem como a aproximação com o rock pesado mais tradicional. Um exemplo disso é a canção que dá título a um dos últimos trabalhos de estúdio do grupo, lançado há quase dez anos. A sonoridade e a temática de Hail To The King quase derrapam na breguice de alguns representantes dessa vertente musical (penso, por exemplo, no burlesco Manowar), mas, ao cabo, é uma faixa que se ouve com satisfação.


quarta-feira, 4 de maio de 2022

Sentir a luxúria única de não ter já esperanças


Não tem jeito. Vou cair no exercício fácil de falar de textos bastante conhecidos. Fazer o quê? Nestas últimas semanas, tão pesadas para mim, busco refúgio em escritores que já li tantas vezes.

Fernando Pessoa, por exemplo. Em especial, poemas do heterônimo Álvaro de Campos.

Comecemos por Adiamento ¹:

 
"Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro, 
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir..."

Um intérprete bem obtuso do poema tomaria o eu lírico (ou eu poético, se assim desejarem) como um procrastinador um tanto cínico. 

Falando nisso, o(a) eventual leitor(a) já reparou que a procrastinação é vista como um dos grandes pecados contemporâneos? Pelo menos é o que diz esta numerosa galera do palavrório motivacional - gurus de autoajuda, coaches e quejandos -, sempre com livros, cursos, palestras ou vídeos do tipo "sete dicas" para reprogramar seu "mindset", desbloquear o poder da mente e tornar-se um exemplo de produtividade.

Produtividade. Conceitozinho maroto...

Claro, ninguém gosta de se sentir improdutivo, penso eu. Mas o que de fato significa ser produtivo, sobretudo quando lembramos que, na ordem capitalista vigente, a imensa maioria das pessoas neste mundo só consegue obter algum dinheiro (necessário para sua subsistência) vendendo (a preço nada justo) sua força de trabalho em ocupações que elas não escolheriam se tivessem opções menos ruins? Nesse caso, em última instância, ser um exemplo de produtividade está beneficiando a quem exatamente? Sem falar que o discurso da produtividade quase sempre vai ao encontro da exploração econômica que nos está conduzindo ao colapso ambiental. 

Essas questões, entretanto, são assuntos para outro chopp. 

O que seria o adiamento na composição acima? Creio que um dos sentidos possíveis está diretamente ligado a este trecho:

"Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã..."

Embora o vocábulo não apareça em nenhum verso, a noção de desesperança - melhor dizendo, a recusa em se ter esperança - é importante para que consigamos apreender esse sentido.

Há um evidente escárnio: preparar-se amanhã para conquistar o mundo no dia seguinte equivale, no fim das contas, a não se preparar. 

Para que preparar-se, afinal? Não compensa, não vale a pena; a vida não passa de um logro. E toma-lhe mais um pouco de ironia amarga  - "depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser". Se não há esperança, não há motivo para planos. Adie-se tudo, pois, indefinidamente.

Ora, o mundo, imenso, é ainda por cima "opaco" e "alheio", como se lê noutro poema, o celebérrimo Tabacaria (o mundo é também hostil, acrescentaria eu). Para aqueles de nós que falharam em tudo, não é difícil às vezes olhar ao redor e sentir que se perdeu a "irmandade com as coisas":

"Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, 
Vejo os cães que também existem, 
E tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo".

Esses versos sempre me lembram A náusea, de Sartre (livro que, em breve, será novamente assunto aqui no blog).

Planos, projetos... Quanta inutilidade! Como está escrito em Pecado original,"somos todos quem nos supusemos/A nossa realidade é o que não conseguimos nunca" (assim é pelo menos para alguns de nós).

Porém, o pretexto para esta postagem veio especificamente de um poema sem nome de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, do qual gosto bastante. Reproduzo-o abaixo, na íntegra:

"Estou cansado, é claro.
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto -
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
 
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente: eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para alguma coisa".

Sorrir em meio ao cansaço (não se está, obviamente, falando de fadiga física) pode soar como um contrassenso à primeira vista. Entretanto, com o passar do tempo e para quem o vivencia, o desconsolo se torna um sentimento familiar, natural, que o "entendimento retrospectivo" consegue examinar, talvez não propriamente de maneira prazerosa, mas com um pequeno e insólito interesse ("que afinal a cabeça sempre serve para alguma coisa"). Quando deixamos de nutrir ilusões, quando nos vemos completamente sem esperanças, a sensação é mesmo quase luxuriante (parece desarrazoado dizer isso, mas não é mentira). 

Pessoalmente, porém, se pudesse experimentar, preferiria outras luxúrias.

 

Na próxima postagem, falarei de uma novela de Guimarães Rosa e de uma série de TV.

___________

¹ Todos os textos citados nesta postagem estão em Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV (Editora L&PM, 2006)


Homenagem


Dias atrás a oposta Sheilla Castro decidiu encerrar a carreira como atleta profissional de voleibol indoor. Trata-se de um dos maiores nomes desse esporte, no país e no mundo (há quem diga que foi a melhor jogadora brasileira de todos os tempos). Iniciou sua trajetória no Mackenzie, mas foi no Minas Tênis, outro clube aqui de Belo Horizonte, que ela despontou em 2001. Lembro-me bem desse período. Hoje Sheilla faz parte da comissão técnica do time feminino do Minas. Embora discorde de alguns de seus posicionamentos, como fã de vôlei, sempre tive grande admiração por ela. Vai ser difícil aparecer outra com tanto talento. Quem também está deixando de competir profissionalmente é a central Walewska Oliveira, duas vezes medalhista olímpica (bronze em Sydney/2000 e ouro em Pequim/2008), sinônimo de elegância dentro e fora da quadra.

BG de Hoje

Estou cada vez mais obcecado com a discografia do cantor e compositor canadense Dallas Green (que adota o nome artístico CITY and COLOUR). Das melhores "descobertas" recentes que fiz. Tenho ouvido (quase de forma ininterrupta) os cinco álbuns gravados por ele até agora. As melodias e arranjos maravilhosamente simples, a voz e - não menos importante - as letras cheias de melancolia: combinação cujo resultado é música bem acima da média. Nos últimos dias, às vezes me pego cantarolando estes versos do refrão de Two Coins: "I've always been dark/with light somewhere in the distance". Não é incomum que as apresentações do City and Colour não tenham mais que o artista e seu violão (como no vídeo abaixo). Sugiro, entretanto, ao(à) eventual leitor(a) que procure ouvir essa mesma canção acompanhada de outros músicos, como está no disco The Hurry and The Harm, lançado em 2013. Ficou linda.


quarta-feira, 27 de abril de 2022

Falou e disse...


"As próximas gerações e já esta geração são gerações de base matemática, mesmo que não tenham formação. Somos regidos por números e fórmulas. Nossa realidade é forjada pela matemática. Mas precisamos mais do que nunca entender o solo social em que a matemática se dá. Então as ciências humanas e sociais têm que se distanciar da matemática para entender efetivamente o que está se passando. Estamos num momento de crise das ciências sociais porque o momento áureo foi um momento de produção de ideias no século 19, na passagem da filosofia para a sociologia, economia, antropologia. As ciências que se fragmentaram, mas o que elas efetivamente produzem são ideias. E nós estamos numa crise de produção de ideias". *

 

* Resposta do professor, pesquisador, sociólogo, jornalista e escritor Muniz SODRÉ quando perguntado se num mundo regido por algoritmos, vale a pena estudar as ciências humanas ou deveríamos nos focar em matemática e outras ciências exatas. A declaração faz parte de uma entrevista publicada na edição de março/2022 da revista Educação (Na época dos algoritmos, escola só faz sentido com vínculo e paixão, diz Muniz Sodré, disponível aqui).

quinta-feira, 24 de março de 2022

"A vida é muito curta..." Tá falando sério?



Outro dia estava me lembrando daquele filme Cova Rasa, lançado em 1994.

Posso dizer que foi o primeiro trabalho do diretor britânico Danny Boyle a chamar atenção, antes de Trainspotting.

Um trio de roommates tem um método um pouco cruel (mas nem por isso menos interessante) para escolher quem pode ser o novo morador do apartamento em que residem. Os interessados são submetidos a uma espécie de entrevista com perguntas absurdas e incômodas. Ocasionalmente, inclui-se algum tipo de zombaria física. O trio se regala. Dá a eles uma sensação de superioridade. Ver-se-á no decorrer do filme, entretanto, que não eram tão espertos nem tão legais quanto se achavam.
 
De todo modo, acabo sendo favorável ao sistema de seleção de Alex, Juliet e David (os personagens centrais do filme) porque parte do princípio de que seria insuportável dividir a mesma moradia com indivíduos não compatíveis, ainda que paguem em dia e sejam pessoas cordatas.

Também uso um método (nada cruel) para não ter que me engajar em conversas com gente aporrinhante. Há anos, conservo o hábito de beber sozinho. Nos bares, contudo, sempre aparece alguém que gosta de puxar papo. Respondo com os "pois é" e os "é mesmo?" de praxe, benditas expressões para fingir interesse quando não há interesse algum no que o outro está dizendo. Se a falação não dá sinais de desfecho, vejo-me obrigado a  tentar conduzir a "conversa" para um tema que me agrada: música pop ¹. E dou um jeito de saber a opinião do(a) interlocutor(a) sobre os Beatles. Não que eu seja um beatlemaníaco, longe disso: "os quatro de Liverpool" não estão nem entre as minhas 30 bandas preferidas. Mas é preciso admitir o pioneirismo e a inventividade desses caras e como eles (junto com George Martin, claro) ajudaram a moldar muito do que se entende por música pop até hoje.

Se a pessoa fala que não gosta dos Beatles - ou pior, não gosta de música pop -, sei que não devo perder meu tempo e trato logo de ir embora. Ou troco de lugar dentro do botequim. Reconheço que estou incorrendo no lugar-comum do "o mundo se divide entre pessoas X e pessoas Y", mas aquele que não faz distinções desse tipo atire a primeira pedra (e ao usar esse lance da primeira pedra, mostro que adoro os lugares-comuns)

No último sábado, enquanto lavava roupa, ouvia uma coletânea dos Fab Four. Ao chegar numa das canções de que mais gosto - We Can Work It Out - encasquetei com os versos "Life is very short, and there's no time/for fussing and fighting, my friend". Já escutei essa faixa inúmeras vezes, por que só agora o (leve) desconforto?

Acho que tudo começou há algumas semanas, quando assisti o anúncio de um creme dental metido a besta. Como já escrevi aqui e em outras postagens, a publicidade e o discurso publicitário em geral me provocam uma grande ojeriza. "A vida é muito curta para cerveja quente, para café frio, para não celebrar, para sorvete derretido, para 'sem gelo, por favor' ", lê-se durante o comercial. No arremate, "a vida é muito curta para (ter) dentes sensíveis". Comecei a pensar em várias frases babosas que já ouvi ou li com essa mesma introdução: "a vida é muito curta para amar em silêncio"; "a vida é muito curta para permanecer magoado com alguém pelo resto da vida"; "a vida é muito curta para ficar se remoendo e reclamando de tudo"; "life is too short for regrets"; "life is too short to wait". E por aí vai...

Pra início de conversa, não me parece acurado presumir que a vida - assim, sem maiores particularizações e contextualizações - seja curta. 
 
Estaria de pleno acordo se se dissesse que a vida é frágil, instável e cercada de incalculáveis vulnerabilidades por todos os lados.

Mas o que diabos significa dizer que a vida é curta?

15 a 28 dias - esse é o tempo médio de vida de uma mosca. Na minha opinião, é uma vida curtíssima. Jimi Hendrix morreu algumas semanas antes de completar 28 anos. Viveu pouco? Estou certo de que teve uma existência imensamente mais proveitosa do que a minha, sendo eu quase um cinquentenário.
 
. . . . . . .
 
Ninguém nega que a expectativa de vida dos seres humanos ampliou-se ao longo da história, em razão de avanços na medicina, na fabricação de remédios e vacinas, na alimentação, no saneamento e na produção de itens de higienização, etc. (embora, ainda hoje, milhões planeta afora não tenham acesso a vários desses benefícios). Além disso, mesmo que quadrilhas de criminosos brutais não tenham deixado de existir, foi graças ao aperfeiçoamento das leis e da aplicação da justiça (embora cheia de falhas), bem como à monopolização legítima do uso da força física pelo Estado, que um grande número de indivíduos pode escapar da morte decorrente de ataques de hordas itinerantes de facínoras, como era comum na Antiguidade, no medievo e até mesmo no início da era moderna ².
 
Muito mais pessoas hoje têm chance de alcançar 70, 80, 90 anos de idade.

Caramba, isso não é suficiente!?
 
. . . . . . .

Matutemos um pouco nas hiperbólicas ideias de imortalidade e eternidade, abordadas há tempos pelas mitologias, pela arte e pelas religiões, ansiadas por tanta gente no passado e no presente.

Quando se olha mais a fundo e de forma realmente honesta, existir para sempre - ou nunca morrer - não seria, como se costuma pensar, verdadeiramente aprazível. Quer estejamos falando de um ponto de vista biológico/físico, quer falemos de um ponto de vista "incorpóreo"/sobrenatural, o ser humano que fosse/se tornasse eterno ou imortal experimentaria nalgum momento, penso eu, uma saciedade ou uma saturação diante da existência que o levaria até desejar sua própria dissipação. 

Os dois episódios finais de The Good Place (já escrevi sobre a série aqui) ilustram o que quero dizer - se o(a) eventual leitor(a) tem interesse em assistir, lamento o spoiler. 
 
Na chegada ao Lugar Bom, Chidi e Eleonor constataram que a ausência da perspectiva da morte transformou os que estavam naquele ambiente supostamente perfeito em "zumbis de felicidade". Decidiram então criar um portal: quem já estivesse satisfeito (ou cansado) de viver para sempre bastava passar por ele e sua existência acabaria. Dos personagens centrais, o mais descerebrado, Jason Mendoza, é o primeiro a desistir da eternidade (decorridos alguns Jeremy Bearimy) e resolve fazer a travessia.

E nem precisamos conjecturar um quimérico "paraíso" no "outro mundo". Bem aqui, neste abjeto planetinha Terra, conseguimos encontrar, até entre aqueles indivíduos beneficiados com uma imensidão de privilégios, rodeados por comodidades e luxos (estou falando, claro, dos ricaços), vários a sentir uma falta de apetência para viver, provocada, em geral, pelo tédio de obter (quase) tudo o que queriam. 

. . . . . . .
 
 
Falemos agora dos que não são privilegiados, não têm vida cômoda, nem luxuosa (a maioria da população mundial, diga-se de passagem).
 
Imaginemos uma pessoa. Chamemo-la Joana. 
 
Pois bem. Joana nasceu em uma família pobre, numa área rural, sem muitas oportunidades educacionais. Começou a trabalhar cedo. Adolescente, foi para uma cidade maior, tornando-se empregada doméstica, profissão que manteve por 20 anos. Depois virou operária na indústria, realizando a mesma tarefa repetitiva por outras duas décadas. Poderia tentar se manter com o que receberia como aposentada, mas não conseguiria evitar os apertos financeiros. Quase sexagenária, volta a ser empregada doméstica. Quando fez 63, morreu de uma doença cardiovascular. Não descrevi aqui as dificuldades que Joana teve que enfrentar no decorrer de sua existência: mãe solo com dois filhos, sem direitos trabalhistas e com horários escorchantes no tempo de doméstica, pagando aluguel, dependendo do péssimo transporte coletivo, sem boas opções de lazer e cultura, sem contar com redes de proteção social, etc. Não obstante, ela talvez tenha sido feliz. Este, entretanto, não é meu ponto. Minha questão é: essa vida difícil foi curta? Será que Joana - na improvável hipótese de que tenha sido feliz - desejaria o prolongamento dessa mesmíssima vida por mais, sei lá, outros 63 anos? Acho que não...  
 
Vou abrir o jogo: acredito que 99,9% das coisas desse mundo (o termo aqui não se refere apenas a objetos) estão relacionadas a dinheiro - seu bom ou mau uso, sua boa ou má distribuição. Entre os bilhões de indivíduos que não têm grana e são obrigados a vender sua força de trabalho em ocupações árduas, desgastantes, repetitivas ou frustrantes apenas para sobreviver, acredito que bem poucos gostariam de ter sua vida prolongada dentro dessas mesmas condições.
 
No ótimo filme A qualquer custo (Hell Or High Water - direção de David Mackenzie, 2016), quando finalmente Toby (Chris Pine) e Marcus (Jeff Bridges, impecável no papel de velho policial sabichão) se encontram, o primeiro diz:

"I've been poor my whole life. So were my parents, their before them. It's like a disease passing from generation to generation, becomes a sickness, that's what it is. Infects every person you know, but not my boys. Not anymore. This is theirs now". [Eu fui pobre a minha vida inteira. Assim como meus pais e os deles antes. É como uma enfermidade passando de geração para geração, vira uma doença, isso é o que é. Infecta cada pessoa que você conhece, mas não meus meninos. Não mais. Isso é deles agora].

Ele se refere à fazendola semiabandonada que pertencia à falecida mãe. Os filhos dele vão herdá-la, mas agora não mais um campo estéril, com algumas vacas esquálidas, e sim uma área de exploração de petróleo. O imóvel, por causa de dívidas, seria tomado pelo banco. A solução para o problema arranjada por Toby e seu desajustado e violento irmão, Tanner, foi roubar agências da própria instituição financeira que se apropriaria do terreno. Não tenho dúvida de que está aí um dos motivos por que esse faroeste ambientado nos EUA pós-2008 (ou seja, pós-crise da bolha imobiliária) agradou parte do público: torcemos para os ladrões pois eles representam uma vingança contra os malditos bancos.

Como escreveu Eduardo Galeano (já citado aqui), "Dívidas: isto é o que tem quem nada tem; e uma patinha presa nessa ratoeira há de ter qualquer pessoa ou país que pertença a este mundo". Este blogueiro encontra-se no mesmo barco furado. Não me lembro qual foi a última vez que estive com as contas em dia. Mas, claro, como martelam em nossa cabeça os adoradores do deus Mercado (o que inclui, além dos controladores do capital grosso, uma grande parte dos publicitários e dos políticos, segmentos da mídia/entretenimento e, mais recentemente, coaches e digital influencers), a culpa é exclusivamente minha, pois não tenho "educação financeira". O sistema que explora até a nossa alma não tem nada a ver com isso...

Cheios de dívidas e no limite da saúde física e mental, muitos assalariados de baixa renda, trabalhadores informais e precários, gente que vive de biscate, aqueles e aquelas que não podem atender a determinados caprichos (fazer "uma viagem de descoberta interior" ou escolher "trabalhar com aquilo que gosta", já que a vida é curta, né?), gente que não pode ter o luxo de ligar o foda-se, essas pessoas talvez não estejam interessadas em estender seu tempo de existência, pois não há alternativas a não ser continuar na corrida de ratos - a esse propósito, recomendo vivamente o curta de animação Happiness, de Steve Cutts (a imagem no alto desta postagem foi extraída dele).
 
. . . . . . . .

 
Há muitos filmes na minha cabeça hoje. 
 

Entendo perfeitamente a atitude da personagem de Charlize Theron em A estrada (The Road - direção de John Hillcoat, 2009). Por que continuar existindo naquele mundo calamitoso, horrível e ainda cultivar a ilusão de criar uma família? É como ela diz antes de decidir partir para dentro da escuridão pavorosa, hedionda: "Eu não quero apenas sobreviver". Naquele cenário de barbárie e privação extremas - e o filme, a meu ver, acertou ao ser mais desolador ainda do que o excelente livro de Cormac McCarthy -, a melhor alternativa é morrer. Ainda assim, seu companheiro persistirá junto com o filho pequeno. 
 
Por que, fico me perguntando. Por quê?

Discordando da opinião da maioria (opinião que talvez seja resultado da inculcação religiosa), considero suicidar-se um dos gestos mais corajosos que alguém pode executar. Provavelmente por isso ainda não fiz uma segunda tentativa: não tenho a bravura necessária. Provavelmente também resta em mim aquele nocivo "amor gorduroso da vida", característica do Falstaff de Shakespeare, segundo o belíssimo poema de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa.

Gostaria que as pessoas pudessem deixar de viver, quando entendessem que já não suportam mais estar vivas. E tanto melhor se pudessem contar com a ajuda do Estado ou de terceiros, sem tabus ou recriminações moralistas e carolas. Considero esse direito de escolha e a assistência que poderia ser prestada avanços civilizatórios. Concordo plenamente com a personagem Gloria Beatty, do livro Mas não se mata cavalo?, de Horace McCoy (já abordado no blog numa postagem de 2014):

" - Uma coisa que me intriga é que todo mundo se preocupa tanto com viver e tão pouco com morrer. Por que é que todos esses cientistas bambas sempre andam por aí tentando prolongar a vida em vez de achar um jeito agradável de acabar com ela? Deve haver um mundão de gente como eu neste mundo... gente que quer morrer mas que não tem coragem..."
 
No ano passado, em meio ao bombardeamento de notícias horrorosas que recebemos todos os dias, não pude deixar de ficar abalado e ao mesmo tempo indignado com o fato de que uma mulher poderia ser condenada a um considerável tempo de prisão por ter furtado dois refrigerantes, um saquinho de refresco em pó e dois pacotes de miojo, na tentativa de alimentar a si e aos filhos.

Em uma entrevista, após ser solta por um habeas corpus concedido pelo STJ ³, ela disse que seu grande sonho "era ser gente". Não duvido que muitos dos tais cidadãos-de-bem-conservadores-e-cristãos apontaram o dedo para a pobre mulher e esbravejaram: "Mas também é uma drogada desocupada que vive na rua! Teve o que mereceu!". Digo a você, eventual leitor(a): já não aguento mais o cada-um-por-si deste mundo, a burrice generalizada, a acumulação indecente de dinheiro, a proximidade do colapso ambiental.

Acho que já vivi demais. 
 
Está insuportável.

Preciso dar o passo final. Que me venha a coragem.

___________
¹ Já expliquei este ponto anteriormente, mas o faço agora, de novo, pois julgo importante. Quando uso a expressão música pop, estou me referindo a tudo aquilo que não é música clássica nem erudita. Em termos simples: música pop é aquilo que toca no rádio, aquilo que era feito para vender discos (e hoje é feito para gerar downloads ou acessos/visualizações). Não importa a vertente (rock, reggae, dance, metal, o chamado sertanejo, blues, country, o pop em si mesmo - quando considerado como um gênero à parte -, tecno/eletrônico, jazz, aquilo que denominamos MPB, aquilo que toca nos chamados bailes funk, etc.): se não é erudito nem clássico e foi feito com objetivos mercadológicos (o que não significa necessariamente um vício de origem), coloco tudo no gigantesco balaio da música pop. Obviamente, dentro dessa vastidão, há coisas que gosto e coisas que detesto.
 
² Para fazer todas essas afirmações (um tanto forçadas e peremptórias, admito), estou deliberadamente considerando a trajetória humana "somente" a partir do processo de sedentarização possibilitado pela agricultura e o surgimento das condições para o nascimento das primeiras civilizações.  

³ Como um caso desses vai parar no STJ? Que judiciário é esse? Como os juízes das instâncias inferiores não tiveram a compreensão e a sensibilidade adequadas para lidar com isso?
 

BG de Hoje

Adoro o riff de guitarra desta canção: Summer Romance (Anti-Gravity), gravada pelo INCUBUS e lançada em 1997. Alguns comentaristas de música já observaram - e eu concordo - que o Incubus, em muitos momentos, parece um epígono do Faith No More (esta sim uma das minhas bandas preferidas).