quinta-feira, 29 de junho de 2017

Situando a poesia de Adélia Prado (I)


Não quero agourar e nem botar zica (até porque não acredito em nada disso). Mas com o falecimento de Manoel de Barros, em 2014, e o de Ferreira Gullar no ano passado, permaneceu apenas Adélia Prado como a grande poeta brasileira ainda viva.

E ao empregar o termo "grande poeta", este blogueiro, convenhamos, deixa o caminho livre para a controvérsia. A ela, pois.

Quando uma pessoa diz "fulana é uma graaande romancista" ou "beltrano foi um graaande cronista" geralmente manifesta uma reverência fajuta, apenas uma opinião emitida a partir daquilo que o cânone fixou ou do que a intelligentsia e os descolados julgam ser bom - vai olhar direito e a pessoa nunca leu nem sequer uma linha do trabalho de fulana ou de beltrano. Além do mais, qual(is) o(s) critério(s) para considerar alguém "grande" em Literatura? Ter escrito, sei lá, doze livros? Ter sucesso comercial/financeiro (fenômeno esporádico no meio literário, raro sobretudo no Brasil)? Ter recebido muitos prêmios? Ser objeto de uma fortuna crítica volumosa? Ter sua obra estudada na academia?

Como se percebe, afirmar que alguém foi ou é um grande romancista/contista/poeta/dramaturgo/cronista pode acabar não dizendo nada de muito relevante a respeito da escrita desse alguém. Contudo, não o considero um qualificativo vazio. Vou insistir nele. E para as modestas pretensões desta postagem, ao considerar que Adélia Prado é a grande poeta brasileira hoje, quero dizer com isso, principalmente, que, dos poetas há mais tempo na estrada vivos atualmente, ela é a mais popular. Pronto, mais controvérsia.

Imaginemos um desses levantamentos (chamados de "pesquisa de opinião"), realizados pelo IBOPE ou outras empresas do gênero, no qual constasse a seguinte pergunta: "Você saberia dizer o nome de um(a) poeta brasileiro(a) vivo(a) atualmente? Em caso afirmativo, cite o nome". Certo, certo, a questão poderia ser mais elegantemente formulada, mas acredito que o(a) eventual leitor(a) deve estar percebendo onde quero chegar.

Mesmo esclarecendo que se deveria citar pessoas vivas, estou certo de que muitos respondentes, no nosso levantamento hipotético, acabariam mencionando autoras e autores já falecidos, dada simplesmente a grande notoriedade destes ou, quando se tratar de poetas menos célebres, porque ouviu-se falar a seu respeito nalguma instituição de ensino frequentada pelo respondente (afinal, um grande número de pessoas - que têm milhões de outras coisas pra fazer - não está familiarizada com o cenário literário atual). Esse seria um dado importante de se compilar pois ajudaria, suponho, na elaboração de um panorama da recepção de poesia na sociedade como um todo, além de fornecer indícios sobre a atuação da escola (e da universidade, por que não?) como mediadora entre a produção poética contemporânea e o público que ainda está matriculado nela ou que passou por lá.

Contudo, claro, outros respondentes da nossa pesquisa hipotética conseguiriam citar poetas vivos(as). Sinto-me irresistivelmente propelido, porém, a dizer que a porcentagem desses últimos respondentes seria bem pequena. Não se tem encontrado muitos leitores de poesia por aí ultimamente ¹, sejamos francos (aliás, situação curiosíssima, é mais fácil achar escrevedores de versos do que leitores para estes; voltarei a esse tópico na próxima postagem).

Tudo isso me leva a formular a seguinte conjectura: considerando, segundo penso, que a leitura literária é praticada, de forma habitual e recorrente, apenas por uma minoria, a leitura de textos poéticos é algo ainda menos generalizado socialmente (aliás, não o é mesmo entre apreciadores de literatura; este blogueiro, por exemplo, tem muito maior inclinação para a prosa do que para a poesia). Por isso, quando digo que Adélia Prado é a mais popular, bem como a última dos grandes poetas vivos hoje quero dizer com tal afirmativa que ela provavelmente seria a mais mencionada num levantamento hipotético como o sugerido anteriormente. E popular aqui somente quer dizer "ter fama" - sem dúvida por possuir certa celebridade, mas trata-se de um renome, como tentei argumentar, circunscrito a um grupo minoritário na sociedade, formado pelos leitores contumazes de literatura.

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Não poderei prosseguir sem antes fazer algumas ressalvas importantíssimas.

Para os propósitos desta postagem, deliberadamente, parto de uma concepção não-abrangente (pode-se dizer até conservadora) do que vem a ser um poema: essa concepção restringe-se aos textos organizados em versos (mas contempla também a chamada prosa poética), destinados à leitura e publicados num suporte velho conhecido nosso - o livro de papel. Portanto, muitas criações envolvendo recursos sonoros e visuais, incrementados ainda mais com as atuais tecnologias, bem como algumas modalidades de arte performática - iniciativas que muitos outros não hesitariam, contemporaneamente, de tratar, se não como poemas, seguramente como formas de poesia para além ou mesmo independente do texto - escapam de minha reduzida capacidade de avaliação.

Acho oportuno também observar que é humanamente impossível, mesmo para pesquisadores extremamente comprometidos e ciosos de seu trabalho, dar conta da inumerável produção/publicação de poetas na web - e sendo assim, o que se pode esperar de um simples blogueiro metido a besta como eu? Quantos(as) poetas excelentes, cujos textos podem estar ao alcance de qualquer um com uns poucos cliques, ainda assim não conseguem atingir, em meio aos zilhões de conexões da internet, justamente aqueles leitores que saberiam apreciá-los? Desse modo, o exame da astronômica quantidade de poesia produzida e publicada na web está fora do meu estreito escopo analítico.

Ao pensar no poema como texto-em-versos-publicado-em-livro - uma concepção, como já reconheci, restritiva - excluo também de minha avaliação poetas excepcionais, cuja excelência está expressa em canções. É inimaginável não incluir nomes como os de Gilberto Gil, Aldir Blanc ou Chico Buarque entre os grandes poetas vivos do Brasil. E quanto ao maior de todos, Caetano Veloso? (Aqui, se me permite o(a) eventual leitor(a), cabe uma pequena digressão. O Nobel concedido a Bob Dylan no ano passado pela Academia Sueca é o maior reconhecimento de que letras de canções populares muitas vezes são verdadeiras joias literárias. E digo sem qualquer tipo de receio: Caetano Veloso é um poeta tão bom quanto Bob Dylan). Contudo, como salientei acima, dentro dos propósitos desta postagem, devo deixar de lado as letras de música, mesmo que para isso deixe de lado também um gênio como Caetano Veloso.

E por falar em letras de canções, é também por isso que deixarei de lado Antonio Cicero, escritor pelo qual tenho imensa admiração. Poeta (e filósofo), é provavelmente por suas parcerias musicais, todavia, que ele seja mais conhecido. Talvez, no levantamento hipotético do qual falávamos lá em cima, seu nome fosse muito lembrado, mas como desejo estabelecer uma "demarcação" ² ... Esse é o caso também de Arnaldo Antunes, cuja carreira musical precedeu e é mais destacada do que a literária.

Por fim, embora normalmente goste muito do que escreve Adélia Prado, tenho preferência por outros poetas vivos, como, por exemplo, Alexei Bueno, Roseana Murray, Régis Bonvicino e, como já falei, Antonio Cicero (autores bastante diferentes uns dos outros, vale notar). Ao situar Prado na posição de a grande poeta brasileira ainda viva (por ser a mais popular, tal como se pode ser popular com a circunscrição apontada anteriormente), estou tentando não me ater apenas aos meus gostos pessoais (algo de todo impossível, pois nem cogitei Augusto de Campos, cuja poesia não me agrada). Se estou redondamente enganado ou, pelo menos, não há desatino no que escrevi até agora, caberá ao(à) eventual leitor(a) julgar.

Na próxima postagem, finalmente observaremos textos de Adélia Prado - com especial atenção a dois deles: O alfabeto no parque e Sítio.

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¹ Para ser justo, não tenho como afirmar se numa outra época anterior lia-se mais poesia do que hoje (supondo-se, claro, que hoje se leia pouca poesia). Seria necessário empreender uma investigação nesse sentido, algo completamente fora das modestas pretensões deste blog  e da competência deste blogueiro. Quando afirmo não se encontrar muitos leitores de poesia parto, apenas e unicamente, de minhas observações pessoais.

² A demarcação é para permanecer no terreno exclusivo dos poemas publicados em livros de papel. Antonio Cicero, obviamente, publicou livros de poemas, mas como seu trabalho de letrista é bastante difundido, prefiro não tratar de sua obra poética nesse momento. Além do mais, já escrevi sobre ele aqui no blog noutras oportunidades.

BG de Hoje

Sou fã do jeitão anos-sessenta-setenta do grupo O TERNO. Gosto particularmente da canção Culpa, boa demais! E o que dizer da auto-ironia do clipe? Sobre essa opção pelo retrô (detesto essa palavra!), a auto-ironia e como as pessoas "consomem" música, vale a pena também ouvir 66.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Falou e disse...


"Apoiado pelo poder tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular global. Combinando os atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas inquestionáveis que as formas modernas de capitalismo compartilharam relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra – a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria e da propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão.

Cada um destes artigos de fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro. É provável que o choque entre estas duas ideias e princípios seja o acontecimento mais significativo da paisagem política da primeira metade do século XXI, uma paisagem formada menos pela regra da razão do que pela liberação geral de paixões, emoções e afetos". *

* Reflexão extraída do  fundamental artigo A era do humanismo está terminando, do historiador e cientista político camaronês Achille MBEMBE. O autor conseguiu condensar, em poucos parágrafos, o tenebroso futuro (imediato) que nos aguarda. Vale a pena ler o artigo na íntegra.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

"Porque a sabedoria serve de defesa..."



Em fevereiro deste ano, Vilma Trujillo, 25 anos de idade e mãe de dois filhos, foi amarrada e jogada numa fogueira. Isso aconteceu em El Cortezal, no norte da Nicarágua. Ela morreu com 80% do corpo queimado. Um grupo de fiéis da igreja Visão Celestial das Assembleias de Deus cometeu o crime, liderados por um pastor evangélico chamado Juan Rocha e por ordem da diaconisa (?) Esneyda Orozco. Rocha negou ter atirado a vítima no fogo. Disse que ela caiu lá quando "o espírito do demônio saiu do corpo dela".

Vilma Trujillo frequentava essa igreja. Por causa de um incidente no qual, alega-se, Vilma teria usado um facão ameaçadoramente, os outros membros acreditaram ser um caso de possessão. O marido da vítima, sem envolvimento com o crime, achava que a esposa tinha sido alvo de "bruxaria". Grupos que lutam pelos direitos das mulheres na Nicarágua consideraram esse horrendo episódio um exemplo de misoginia e fanatismo (confira a notícia da BBC sobre esse caso).

Noutra parte do mundo, em Banda Aceh (Indonésia), dois homens receberam como punição 83 vergastadas (além de dois meses na cadeia) apenas porque, de forma consensual, fizeram sexo um com o outro. Vizinhos invadiram o apartamento onde eles estavam, filmaram-nos através de celulares e postaram nas mídias sociais. A execução do castigo, ocorrida há menos de duas semanas, foi pública e em frente a uma mesquita da cidade. Uma turba compareceu para assistir a flagelação imposta, que também seria aplicada a outros quatro casais (heterossexuais, dessa vez) por manterem relações extraconjugais, o que também contraria a lei islâmica local (confira a matéria da CNN sobre esse caso).

Como se vê, tudo isso aconteceu não na Idade Média, mas neste século XXI, nesta autoproclamada "era da informação e do conhecimento". Nos dois casos, como em milhares de outros mundo afora, a torpeza busca justificação na religião. Estarrece saber que o açoitamento impingido aos dois jovens indonésios foi executado pelo poder público; revolta saber que uma mulher foi assassinada barbaramente pelo fanatismo resultante da manipulação exercida por indivíduos supostamente a serviço de uma potestade sobrenatural altamente improvável.

Todo esse fervor religioso punitivo, carregado de ignorância e violência, verificado no vilarejo da América Central e na cidade asiática, não surgiu espontaneamente. Convém notar que tanto a Indonésia quanto a Nicarágua não são nações conhecidas pelo seu estágio de desenvolvimento econômico, nem pelo bem-estar proporcionado a seus habitantes ou muito menos pela excelência de seu sistema educacional. Pelo contrário. Entre os 188 países nos quais o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é medido, a Indonésia ocupa a 113ª colocação, enquanto a Nicarágua está em 124º lugar (o Brasil, terra da desigualdade, onde poucos têm demais e muitos têm quase nada, é o 79º). Em qualquer fonte que se consulte - Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, ONU -, vê-se que tanto Indonésia quanto Nicarágua não estão entre os 100 países com maior renda per capita. E, de acordo com os dados do PISA (Programme for International Student Assessment), a Indonésia (junto com o Brasil, vale dizer) figura entre as 10 nações mais mal avaliadas (a Nicarágua não está incluída entre os 72 países analisados por essa entidade).

Áreas pobres (sejam estas pequenos logradouros ou até mesmo países inteiros), negligenciadas pelo Estado, cuja população recebeu (e continua recebendo) educação formal precária (isso quando recebe), são ambiente propício para que os indivíduos se apeguem ferrenhamente ao sobrenatural e mantenham crenças delirantes. Não preciso dizer que um ambiente assim atrai todo tipo de aproveitador e vigarista.

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"As pessoas vão à igreja pelos mesmos motivos que vão à taverna: para estupefazerem-se, para esquecerem-se de sua miséria, para imaginarem-se, de algum modo, livres e felizes. Não há nada tão estúpido como a inteligência orgulhosa de si mesma".

Quem disse isso foi o pensador anarquista Mikhail Bakunin. Concordo com ele. A taverna (que podemos chamar simplesmente de "bar", sem prejuízo de sentido) é o lugar "onde tantos iguais se reúnem contando mentiras pra poder suportar", como escreveu Aldir Blanc na letra de O rancho da goiabada, uma das muitas parcerias geniais com João Bosco. Por sua vez, a igreja, sem fornecer evidência alguma do que promete, precisa o tempo todo reiterar que há algum tipo de recompensa reservada ao fiel (mormente, no pós-morte) e que, portanto, essa vida terrena, mundana e ordinária, pouco ou nada significa e deve-se sempre esperar pela bem-aventurança do paraíso (pensando bem, a chamada "teologia da prosperidade" fala o tempo todo de prêmios ainda nessa vida).

Para Bakunin, a igreja e o bar (ou a taverna, se preferir) são lugares de conformismo e autoilusão. Não são a melhor saída quando se trata de encarar a realidade, sobretudo se for o caso de querer mudá-la.

Não sem uma tremenda carga de vergonha, este blogueiro deve confessar que é dado a frequentar bares (justamente para escapar da realidade de vez em quando por meio da embriaguez), embora hoje um pouco menos - por causa da idade e das agruras financeiras. Há diversas biroscas espalhadas no bairro em que moro. É um lugar pobre. E, como sabemos, cachaça é uma mercadoria sempre procurada nas periferias.

Pobre também é o bairro onde trabalho atualmente (certos eufemismos me dão nos nervos; por isso prefiro usar o adjetivo pobre mesmo e não a locução "com alta vulnerabilidade social"). Lá também há muitos botequins. Suspeito, todavia, que o número de igrejas seja ainda maior. Apenas na avenida principal - e apenas no trecho que percorro dentro do ônibus até desembarcar - contei 14 unidades, duas católicas e as demais evangélicas. Pelo menos quatro dessas nunca vi de portas abertas (pode ser que tenham encerrado as atividades). É razoável supor que existam outras mais espalhadas em ruas e vias secundárias (é também o caso de especular: será que os crentes ¹ moradores desse bairro, como os de vários outros bairros similares pelo Brasil, nunca se perguntam: "com tantas casas de oração, devotadas à adoração do ser supremo, por que essa região não recebe maior proteção e auxílio divinos, pelo menos do ponto de vista socioeconômico e da segurança pública?").

Das igrejas evangélicas existentes lá apenas uma, das que vi, é "franquia" de uma "grande rede": há uma unidade da Igreja Mundial do Poder de Deus (aquela mesma, liderada por aquele "apóstolo" que chora na TV e, com a cara mais lavada do mundo, pede doações de R$ 1.000,00, além de vender meias e tijolinhos ungidos a R$153,00 e R$200,00, respectivamente). Os outros locais de culto são, digamos, mais autônomos e simples, mas não menos barulhentos, como se pode facilmente perceber ao passar em frente a eles. Todos esses estabelecimentos têm em comum o mesmo tipo de público ²: pessoas pobres, humildes, iletradas, extremamente crédulas ou desejosas de se livrar de uma situação de angústia/abuso - prato cheio para trapaceiros que agem em nome de Deus.

Mas os problemas do mundo real exigem soluções do mundo real, por mais que a fala da religião e da crença no sobrenatural soe consoladora e agradável aos ouvidos. A cachaça também alivia e entorpece o desespero, mas não resolve nada, como constato toda vez, desgostosamente, na ressaca da manhã seguinte.

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Em 1999, o físico (e ganhador do prêmio Nobel) Steven Weinberg disse, numa conferência da Associação Americana para o Progresso da Ciência: "Religion is an insult to human dignity. With or without it you would have good people doing good things and evil people doing evil things. But for good people to do evil things, that takes religion" [A religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, você teria pessoas boas fazendo coisas boas e pessoas más fazendo coisas más. Mas para pessoas boas fazerem coisas más, é necessário religião].

Mais tarde, num artigo baseado nessa conferência (disponível aqui), Weinberg modificou um pouco o que disse anteriormente, mas a essência permaneceu a mesma: "With or without religion, good people can behave well and bad people can do evil; but for good people to do evil - that takes religion" [Com ou sem religião, pessoas boas podem se comportar bem e pessoas más podem fazer o mal; mas para que pessoas boas façam o mal - é necessário religião].

Quando alguém acredita estar agindo em nome de Deus (ou Jesus, ou Alá, etc.) será muito difícil (talvez até impossível) convencê-lo de que algumas de suas ações não estão promovendo bem algum; pelo contrário, seriam maléficas. Em abril passado um estudante paquistanês foi torturado e morto dentro de uma universidade daquele país simplesmente por ter colocado no Facebook um conteúdo considerado ofensivo ao Islã. Aposto que os assassinos julgavam-se muçulmanos corretos e zelosos. Arrisco dizer também que muitos dos soldados de infantaria, lutando nas Cruzadas em nome da cristandade (e beneficiando exclusivamente seus suseranos), acreditavam realmente estar protegendo a "Terra Santa" quando matavam seus "inimigos" de outra religião. Mas não é apenas gente crédula e simplória que é levada a praticar o mal quando pensa estar "combatendo o bom combate". Pessoas religiosas inteligentes - às vezes com altos níveis de escolaridade, mas, paradoxalmente, dogmáticas e obscurantistas ao extremo - frequentemente recorrem à sua fé (algo particular, pessoal, que deveria dizer respeito apenas ao indivíduo) para impedir mudanças e avanços sociais, bem como colocar entraves indesejáveis à prática científica. E mesmo quando não agem pessoalmente, permitem que outros o façam com seu beneplácito.

Existe, no Congresso brasileiro, uma proposta de emenda constitucional (PEC 29/2015), de autoria do senador Magno Malta (integrante da popularmente conhecida Bancada da Bíblia), intencionando alterar o artigo 5º da Constituição Federal e fazendo com que o direito à vida seja inviolável desde a concepção. Como observou Lola Aronovich em seu blog, caso essa PEC seja aprovada, na prática ela

"Significa principalmente que qualquer intervenção para interromper a gravidez será vista como crime. Adeus pílula do dia seguinte, adeus aos três únicos casos em que o aborto é permitido no Brasil (quando a gravidez decorre de um estupro, quando apresenta risco de vida à gestante, e em casos de fetos com anencefalia), adeus aborto legal.
O Brasil já é um dos países mais restritivos do mundo em relação ao aborto, o que faz com que milhares de mulheres morram todos os anos, em consequência do aborto clandestino.
 
Se a PEC 29/2015 passar, abre as portas para que o país entre na lista das nações mais atrasadas, aquelas que proíbem o aborto em todos os casos. E automaticamente coloca as mulheres que sofrem aborto natural como suspeitas.
Tem mais: uma vez aprovada esta PEC, o 'direito à vida' pode ser usado para barrar outras coisinhas também, como inseminação artificial (em que montes de embriões excedentários são descartados) e pesquisas com células tronco embrionárias".
Esse mesmo senador e outros parlamentares da Bancada da Bíblia são também agressivos defensores do movimento denominado "Escola Sem Partido", cujo objetivo é impedir a discussão, dentro das instituições de ensino, de assuntos ligados às questões de gênero e à diversidade sexual, à temática étnico-racial, bem como impedir professoras e professores de falar de temas considerados, pelo movimento, como sendo "doutrinação ideológica" (acertadamente, os opositores do "Escola Sem Partido" - como este blogueiro - chamam essa sandice de "Escola da Mordaça"). Ações como essas, não tenho dúvida, revelam que as religiões e suas organizações, além de desprezarem o princípio republicano da laicidade, não abrirão mão da sua ânsia de controle e poder.

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O biólogo Richard Dawkins, em seu famoso livro Deus, um delírio ³, observa que

"A religião fundamentalista está determinada a arruinar a educação científica de inúmeros milhares de mentes jovens, inocentes e bem-intencionadas. A religião não fundamentalista, 'sensata', pode não estar fazendo isso. Mas está tornando o mundo seguro para o fundamentalismo ao ensinar a crianças, desde muito cedo, que a fé inquestionável é uma virtude".

Por que a religião e a crença no sobrenatural não podem ser objeto de crítica quando tudo o mais, nas sociedades democráticas, é passível de questionamento? Por que deve-se ter uma especial deferência com instituições, práticas e credos perfeitamente dispensáveis para o bem-estar de uma parte significativa dos seres humanos (e isso não se restringe apenas aos ateus)?

Todos estamos de acordo que as pessoas têm o direito de acreditar no que quiserem, participar das cerimônias e seguir a liturgia que mais lhes aprouver. Entretanto não somos todos obrigados a manifestar uma circunspecção mais rigorosa ou um respeito mais ostensivo (leia-se aceitação sem crítica) pelos credos e ritos religiosos do que o recomendado pela convivência civilizada. Reitero: a fé é algo pessoal, diz respeito apenas ao indivíduo que a professa - para o restante das pessoas, não aderentes à religião em questão (ou a qualquer religião, caso dos ateus), sua relevância é ínfima.

Viveríamos, penso eu, num mundo menos embrutecido se todos os crentes (no sentido amplo, veja nota no fim da postagem) fossem do tipo sensato. Contudo, figuras como Marco Feliciano, Silas Malafaia, Edir Macedo, extremistas muçulmanos, judeus ortodoxos radicais - ou seja, os reconhecidamente imoderados - são numerosos e muito influentes. Não tenho dúvida de que o sustentáculo dos fundamentalistas, em última análise, acaba sendo, infelizmente, a religião dita sensata. Ao ser costumeiramente refratária à crítica e ao questionamento, a fé muitas vezes enseja a intolerância, a prostração da reflexão e uma visão de mundo simplista e maniqueísta.

Religiões, penso eu, estão muito longe de ser inofensivas. Concordo com o ensaísta Christopher Hitchens quando este escreve que

"Muitas religiões agora se apresentam diante de nós com sorrisinhos insinuantes e mãos estendidas, como um comerciante pegajoso num bazar. Oferecem consolo, solidariedade e elevação, competindo como estão num mercado. Mas nós temos o direito de lembrar como se comportaram barbaramente quando eram fortes e faziam ofertas que as pessoas não podiam recusar [o autor tem em mente aqui, claro, o atual cenário verificado na Europa ocidental; na América Latina e noutras partes do mundo, para nossa miséria, religiões ainda são bastante atuantes politicamente]. E se por acaso nos esquecemos de como era isso, basta olhar os Estados e as sociedades onde o clero ainda tem o poder de ditar seus termos. Os patéticos vestígios podem ainda ser vistos, em sociedades modernas, nos esforços feitos pela religião para assegurar o controle sobre a educação, ou de se eximir de impostos, ou de adotar leis que proíbem as pessoas de insultar a onipresente e onisciente divindade, ou mesmo seu profeta".

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O título desta postagem foi retirado do Eclesiastes (capítulo 7, versículo 12): "Porque a sabedoria serve de defesa, como de defesa serve o dinheiro; mas a excelência da sabedoria é que ela preserva a vida de quem a possui". Como já escrevi aqui no blog noutra ocasião,  na Bíblia é possível encontrar, sendo um livro tão extenso e muitas vezes incoerente, passagens que ilustram e sancionam qualquer afirmativa que se queira fazer. O próprio livro de Eclesiastes enaltece a sabedoria - "[...] a sabedoria é mais excelente que a estultícia, quanto a luz é mais excelente do que as trevas" ou "A sabedoria fortalece ao sábio mais do que dez governadores que haja na cidade" - para, noutros versículos, considerá-la apenas como vaidade e recomendar que o indivíduo não seja demasiadamente sábio...

De todo modo - e embora não tenha pela Bíblia nenhum apreço ou consideração especial além do interesse literário - não acho nada mal a recomendação de que a sabedoria é uma forma de defesa. Defesa contra aproveitadores, hipócritas, fanáticos e canalhas de toda espécie, muitos dos quais estão confortavelmente domiciliados na religião e na crença no sobrenatural.

Contra eles, precisamos tentar ser, antes de tudo, sábios e não religiosos.

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¹ Sempre é bom reiterar: quando uso o termo crente tenho em mente o seguinte significado: "aquele que acredita numa divindade", em oposição ao termo descrente ou, simplesmente, ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa pela qual têm afinidade  ou da qual fazem parte.

² Mas essas características não são exclusividade apenas dos evangélicos - ou, mais especificamente, dos neopentecostais.

³ DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [Tradução de Fernanda Ravagnani]

HITCHENS, Christopher. Deus não é grande: como a religião envenena tudo. 2 ed. São Paulo: Globo, 2016 [Tradução de George Schlesinger]

BG de Hoje

Um dos discos mais marcantes da história recente do rock - OK Computer, do RADIOHEAD - completa 20 anos de lançamento. É um álbum que leva um certo tempo pra ser verdadeiramente apreciado (pelo menos comigo foi assim). Minhas faixas prediletas hoje são Lucky (que inclusive já foi BG noutra postagem) e Let down, mas foi por causa de Karma Police (junto com seu clipe fascinantemente estranho) que comprei o CD em 1997.