terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Destino de abelha


Não, não é cansaço.

É verdade que muitos de nós, aqui, no país do golpe, estamos cansados. Contudo, dizer-se cansado - por mais sincero que seja - não descreve muita coisa.

Esmorecimento. É, acho que é isso. Sinto-me esmorecido.

Li pelo menos quatro bons livros nas últimas semanas. Deveria escrever sobre eles - afinal, minha atividade de blogueiro baseia-se nisso, escrever sobre outros textos. Mas simplesmente não consigo. Tô seco. Não há qualquer  resquício de entusiasmo. Nada.

Vazio. Solidão. Angústia.

(Lidava bem com essas coisas antes. Hoje, nem tanto. É uma merda! Já não posso contar com meu corpo; agora, pelo visto, minha mente também começará a me deixar na mão).

Tô vivendo apenas por inércia. Que grande e miserável covarde!

Falei, na postagem anterior, sobre o livro A elegância do ouriço, da francesa Muriel Barbery. Mencionei que duas narradoras conduzem a história e uma delas é apenas uma adolescente de 12 anos. Observei, naquela ocasião, que a escritora lançou mão de um artifício bem inteligente. Paloma Josse - essa menina superdotada, pensativa e severa, com vocação para a filosofia - tem a saudável afoiteza dos jovens para dizer lugares-comuns como se se tratasse de pensamentos inéditos. É tocante! (além do mais, quem consegue se livrar dos lugares-comuns?).

Pois bem. Há uma passagem em A elegância do ouriço que vai ao encontro do que estou pensando neste exato momento. A irmã mais velha de Paloma - a superficial Colombe - resolve falar com ela sobre a fecundação das abelhas: seu intuito era encabular a garota. Os zangões, cuja única função é fecundar a abelha-rainha, morrem após a cópula (assim que esta termina, os órgãos genitais dos machos são arrancados junto com os intestinos). Aqueles que não participam da fecundação, por serem mais lentos ou mais fracos, são expulsos (e não resistem às condições fora da colmeia) ou mortos pelas operárias, já que não têm qualquer outra utilidade para a vida em comunidade: não são capazes de coletar néctar, nem de fazer mel.

(Mas, penso eu, se considerarmos que o tempo de vida médio de uma abelha operária é de 32 a 45 dias apenas, pra que tanto trabalho? E, por favor, eventual leitor(a), estou sendo sarcástico.)

Pouco interessada no que a irmã chata está dizendo, Paloma, entretanto, chega à seguinte conclusão:

 "Mas não vejo nada de chocante ou de safado no voo nupcial das rainhas e no destino dos falsos zangões porque me sinto profundamente parecida com todos esses bichos, mesmo se meus costumes são diferentes. Viver, se alimentar, se reproduzir, realizar a tarefa para a qual nascemos e morrer: isso não tem sentido, é verdade, mas é assim que as coisas são. Essa arrogância dos homens de pensar que podem forçar a natureza, escapar de seu destino de pequenas coisas biológicas... e essa cegueira que têm para a crueldade ou a violência de suas próprias maneiras de viver, de amar, de se reproduzir e de fazer a guerra a seus semelhantes...

Acho que só há uma coisa para fazer: encontrar a tarefa para a qual nascemos e realizá-la o melhor possível, com todas as nossas forças, sem complicar as coisas e sem acreditar que há um lado divino na nossa natureza animal. Só assim é que teremos a sensação de estar fazendo algo construtivo no momento em que a morte nos pegar. A liberdade, a decisão, a vontade, tudo isso são quimeras. Acreditamos que podemos fazer mel sem partilhar o destino das abelhas; mas nós também não somos mais que pobres abelhas fadadas a cumprir sua tarefa e depois morrer".

A falta de sentido da existência, o delírio do ser humano crendo ser algo mais do que um mero primata falante, a ilusão da liberdade e da escolha: tudo isso já foi matéria da reflexão filosófica de grandes e pequenos pensadores. Não faz mal. Paloma dá tratos à bola assim mesmo porque são temas inescapáveis. E sua sugestão, mesmo que trivial, não é fácil de empreender. Muito do meu esmorecimento deriva disso.

Qual seria a minha tarefa? O que me daria "a sensação de estar fazendo algo construtivo no momento em que a morte [me] pegar"?

Eu não sei. E, pior, acho que nunca vou saber que papel interpretar na grande colmeia humana.

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Ah, quero assinalar uma coisa, antes que me esqueça.

Estou cheio de ouvir pessoas me dizendo: "Você devia procurar (psico)terapia!". Dá vontade de rir... Como se esse tipo de serviço fosse ace$$ível a qualquer um...

Além disso, por mais que eu possa achar interessante ter uma pessoa remunerada (e bem remunerada!) pra ficar ouvindo as miudezas pessoais de alguém - afinal, escutar outro indivíduo não parece ser algo que nossa espécie gosta de fazer -, duvido bastante da eficácia de tratamentos desse tipo. E aí que me lembro daquela passagem memorável de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar (e que não canso de repetir), quando André, a certa altura do diálogo (falho e inútil) com o pai, atira:

"- Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro de onde tira sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo sua fragilidade".

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O Besta Quadrada interromperá suas atividades até fevereiro do ano que vem. Muito obrigado a quem prestigiou o blog nesta temporada. Que o(a) eventual leitor(a) procure se divertir nas festas e comemorações típicas dessa época. Como não espero que o próximo ano seja minimamente feliz (basta acompanhar essa retrospectiva, apenas falando do campo da "justiça", para projetar um tenebroso 2018), poupo você daquela frase batida, comum em finais de dezembro. Inté.

BG de Hoje

Embora o single Human tenha sido lançado em 2016, foi somente neste ano que fui prestar atenção no musicaço do RAG'N'BONE MAN. Posso dizer sem pestanejar que foi minha trilha sonora durante todo este maldito 2017: me peguei várias vezes cantarolando-a no caminho pro trabalho ou dentro de casa ouvindo rádio. Ajudou bem a suportar a barra.