quarta-feira, 27 de março de 2013

O Eu na era digital: qual o futuro da vida privada? (III)





"Em anos recentes, porém, as narrativas de ficção parecem ter perdido boa parte de sua hegemonia inspiradora para a autoconstrução dos leitores e espectadores, com uma crescente primazia de seu suposto contrário: o real - ou, mais precisamente, a não-ficção".

Paula Sibilia - O show do eu

 
Poderia me estender sobre o livro O show do eu: a intimidade como espetáculo* em diversas outras postagens, dada a sua excelente qualidade (além dos temas de que trata, claro). Na tentativa de compreender como se constitui e se apresenta a subjetividade (talvez o mais apropriado seria escrever subjetividades) em tempos midiáticos e internéticos, Paula Sibilia chama para a sua conversa pensadores de alto calibre (Benjamin, Deleuze, Nietzsche, Descartes, Simmel, Foucault, entre outros); exemplifica pontos de vista com acontecimentos e produtos artísticos e dos mass media da atuais; além de fazer constantes menções à Literatura. Vou preferir encerrar a série por hoje, mas muito provavelmente retornarei a essa obra noutros textos aqui do blog. Há, contudo, algo que gostaria de destacar, por me interessar mais de perto.

No capítulo 7 (Eu real e os abalos da ficção), a autora observa como a ficção literária foi progressivamente perdendo terreno para outras modalidades de narrativa, mais próximas do "real" - mesmo que sejam os mais comezinhos registros - e relata um caso típico dos nossos dias:

"Mas essa ferrenha busca pelo real-banal tampouco perdoa outras figuras históricas que, por terem vivido em épocas distantes do nosso culto à personalidade espetacularizada, deixaram pouco material para as conjeturas acerca de seus cobiçados eus. Nesse descuido nos legaram, apenas, suas obras. Um livro publicado por uma reconhecida especialista na Divina comédia de Dante Alighieri, por exemplo, trouxe algumas revelações que a mídia logo divulgou em tom de escândalo. A pesquisa desvendava 'a verdadeira origem das visões dantescas' do inferno e do paraíso, descritas pelo poeta florentino há sete séculos. Eis a revelação: 'Para se inspirar, Dante ingeria substâncias estupefacientes como cannabis e mescalina'. Foram apenas poucas linhas referidas ao assunto em um livro de quinhentas páginas sobre a vida (e a obra) do escritor italiano, mas também é claro que foi somente essa questão que conseguiu despertar o interesse midiático sobre um tema tão pouco atual. Um dos mais prestigiosos cadernos literários britânicos, o Times Literary Supplement, estampou na capa a seguinte manchete: 'Dante drogado'.

Ou seja, qualquer importância cultural que a Divina Comédia possui (ou já tenha possuído) significa quase nada. Para os basbaques da era digital-virtual (e os que lucram a partir deles) só interessa saber da "vida como ela é", acompanhada da bisbilhotice típica de nosso tempo.

No título da série de postagens há a seguinte pergunta: qual o futuro da vida privada? Não ambiciono dar uma resposta. Direi apenas - e não há novidade alguma nisso - que noções como intimidade, privacidade, interesse e espaço públicos foram completamente modificadas num curto espaço de tempo com a adoção (quase) maciça das tecnologias de informação e comunicação, que, entre tantos empregos relevantes, permitem, por outro lado, as mais estapafúrdias e doentias exibições do eu. Quem não se adaptar a essas alterações terá muita dificuldade de ser partícipe de alguns dos fenômenos socioculturais da atualidade.

Sou um desses.

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* SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

BG de Hoje

Há momentos, nas festas e noutras reuniões semelhantes, em que todo mundo fica meio "caidaço". Nessas horas, uma canção bem escolhida pode mudar a atmosfera borocoxô. She, do GREEN DAY, é certeira: rápida, curta e contagiante. Ah,  já fui menos melancólico...


sexta-feira, 22 de março de 2013

O Eu na era digital: qual o futuro da vida privada? (II)



"Sem abandonar o fértil terreno da intimidade, porém, as tiranias atuais esquecem os pudores para ultrapassar aqueles muros que antes protegiam o âmbito privado. Estende-se, assim, a colcha de retalhos de confissões multimídia, costurada com uma multidão de pequenos falatórios e imagens cotidianas, até cobrir todos os recantos do antigo âmbito público. E é provável que chegue até mesmo a asfixiá-lo sob seu peso tão uniforme como pertinaz".

Paula Sibilia - O show do eu

 
Em O show do eu: a intimidade como espetáculo* (e isso é importante) é possível perceber que a autora não coloca o leitor-alvo de seu livro (e, provavelmente, nem ela própria) fora de toda a gigantesca onda de hipertrofia e exposição do eu testemunhadas cotidianamente. De um modo ou de outro, todos nós, conectados à Internet e usuários da rede mundial de computadores, participamos desse show, variando, contudo, o grau de comprometimento e intensidade  com que cada indivíduo se apresenta. Portanto, posar de mocinho nessa história - ou seja, apenas invectivar tuíteiros contumazes e maníacos pelo Facebook, sem, no entanto, reconhecer-se como uma das peças da engrenagem que faz funcionar o que já foi chamado de web 2.0 - é falso moralismo.

É preciso salientar também que o livro foi publicado em 2008. Como a era digital é caracterizada por rápidas mudanças, há apenas cinco anos o cenário das redes socias era bem diferente do atual (o Orkut, por exemplo, era popularíssimo). A autora também dá muita atenção aos blogs (que, hoje em dia, foram jogados pra escanteio). Como pretendo, numa outra oportunidade, analisar os blogs sob a ótica dos gêneros textuais, deixarei as observações da antropóloga argentina sobre esse tema para mais adiante.

Reclama-se (inclusive este blogueiro) da invasão da vida privada (e íntima) a espaços considerados públicos. Paula Sibilia nos lembra, todavia, que as noções de privacidade e intimidade têm uma história recente, consolidando-se nos séculos XVIII e XIX, nas sociedades urbanas e industriais, graças aos modelos de família e de habitação burgueses. Essas condições proporcionaram o aparecimento de uma propensão, por parte das pessoas, a desabafar, a produzir confissões (muitas vezes registradas em diários, não destinados à leitura de terceiros). O que vemos na atualidade? Com a facilidade de acesso às ferramentas de publicação de texto e imagem na web, qualquer um pode expor sua vida privada para quem quiser ver (e até para quem não quiser). Se aceitarmos a Internet como espaço público, não é difícil imaginar que tal exposição, quando beira a inconsequência e a falta de limites, incomode muita gente (inclusive este blogueiro), mas parece não  constranger boa parte dos usuários da rede, principalmente os mais jovens. Sibilia escreve:

"Independente da quantidade de leitores ou espectadores que de fato consigam recrutar, os adeptos dos novos recursos da Web 2.0 costumam pensar que seu presunçoso eu tem o direito de possuir uma audiência, e a ela se dirigem como autores, narradores e protagonistas de tantos relatos, fotos e vídeos com tom intimista. Nos Estados Unidos, por exemplo [mas não acho que seja muito diferente no Brasil], calcula-se que mais da metade dos jovens publicam seus dados biográficos e imagens na internet, sem nenhuma inquietude com relação à defesa da própria privacidade - e nem a de seus amigos, inimigos, parentes e colegas que também costumam habitar suas confissões audiovisuais. Assim, em um aparente retorno aos modos de vida nas zonas rurais e pequenos vilarejos prévios à urbanização do Ocidente, nesta intimista aldeia global do século XXI é impossível preservar os segredos. Mas aqui o anonimato tampouco parece desejável; ao contrário, inclusive, pois neste quadro, a mera possibilidade de passar despercebido pode se converter no pior dos pesadelos".

A autora também aponta para a maneira ambivalente como se olha para a privacidade na era digital:

"Entretanto, o mesmo termo [privacidade] parece envolver pelo menos duas questões bastante diferentes. Por um lado, protegem-se cuidadosamente certos dados pessoais - especialmente bancários, financeiros e comerciais - contra possíveis invasões da privacidade. Por outro lado, promove-se uma verdadeira evasão da privacidade em campos que outrora concerniam à intimidade pessoal. É neste último sentido que Jonathan Franzen clamava por uma defesa do espaço público, pois a intimidade se evadiu do espaço privado e passou a invadir aquela esfera que outrora se considerava pública". **

O que experimentamos hoje no mundo internético-globalizado parece não ter conexão com antecedentes históricos facilmente localizáveis. Como observa a autora de O show do eu, " [...] as tendências de exibição da intimidade que proliferam hoje em dia - não apenas na internet, mas em todos os meios de comunicação e também na mais modesta espetacularização diária da vida cotidiana - não evidenciam uma mera invasão da antiga privacidade, mas um fenômeno completamente novo".

Volto na próxima terça-feira, ainda falando do livro de Paula Sibilia.

* SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008

** A propósto, Jonathan Franzen escreveu um artigo sensacional chamado Amor sem pudor (disponível aqui), já mencionado no blog, em Todos têm a vidinha deles (1), no qual critica o uso compulsivo dos celulares e diz não estar disposto a ser "arrastado em sua imaginação para o mundo pegajoso da vida doméstica de algum ser humano próximo"

BG de Hoje

O SONIC YOUTH nunca foi uma banda radiofônica. Isso tem um lado bom, mas também um lado ruim porque muita gente boa que gosta de rock ainda não conhece o som do grupo nova-iorquino. Notabilizada pelos ruídos que incorpora às canções (e que, às vezes, devo dizer, transformam a música numa chatice), a banda faz jus ao rótulo de alternativa. No vídeo, uma das minhas preferidas, Mary-Christ

segunda-feira, 18 de março de 2013

O Eu na era digital: qual o futuro da vida privada? (I)

"Ao longo da última década, a rede mundial de computadores tem dado à luz um amplo leque de práticas que poderíamos denominar 'confessionais'. Milhões de usuários de todo o planeta - gente 'comum' precisamente como eu e você - têm se apropriado das diversas ferramentas disponíveis on-line, que não cessam de surgir e se expandir, e as utilizam para expor publicamente a sua intimidade. Gerou-se, assim, um verdadeiro festival de 'vidas privadas', que se oferecem despudoradamente aos olhares do mundo inteiro. As confissões diárias de você, eu e todos nós estão aí, em palavras e imagens, à disposição de quem quiser bisbilhotá-las; basta apenas um clique do mouse. E, de fato, tanto você como eu e todos nós costumamos dar esse clique".

Paula Sibilia - O show do eu

Há algum tempo, mantive um perfil no Facebook no qual advertia os "amigos" adicionados do meu hábito costumeiro de ocultar históricos (excluir do feed de notícias) por completo. Ou seja, simplesmente não lia nem acompanhava nada que fosse postado ou compartilhado pelo sujeito cujo histórico ocultei. E lembrava a todos que eles tinham o direito de fazer a mesmíssima coisa em relação ao meu próprio histórico. Por que adotei esse hábito (e ainda adoto, num novo perfil)? Porque, em meio a itens publicados muito instigantes e outros mais espontâneos, mas não menos interessantes, há dezenas e dezenas de vulgaridades repetitivas, humorismo de segunda mão, recados indiscretos e grotescos, além de mostras de estupidez envernizadas com citações fora de contexto - a maioria de autoria questionável - com o rasteiro intuito de se fazer passar por culto.

Mas o pior são os inúmeros relatos banais - a viagem "incrível" pra São José do Piancó; o jogo de casados e solteiros disputado no último fim de semana; ou o "imperdível" show da dupla Lelé de Navarro e Cipriano, etc. Tudo, é claro, acompanhado de fotos (muuuuitas fotos) enjoativas até a medula, demonstrando que o narcisismo e o cabotinismo parecem não vexar mais ninguém nestes tempos internéticos.

Comecei a olhar ainda mais criticamente as chamadas redes sociais depois de ler o brilhante trabalho da antropóloga Paula Sibilia, intitulado O show do eu: a intimidade como espetáculo *.

O livro, a meu ver, tem, um objetivo amplo: entender melhor as atuais formas de ser e estar no mundo, discutindo como se manifesta a subjetividade na web, no estágio vigente do capitalismo (sob o ponto de vista de uma estudiosa da área da Comunicação, claro). Para tanto, a autora buscará , entre outras coisas, "desnaturalizar as novas práticas comunicativas. Algo que só será possível se desnudarmos suas raízes e suas implicações políticas".

No final do capítulo introdutório, Paula Sibilia escreve:

"A rede mundial de computadores se tornou um grande laboratório, um terreno propício para experimentar e criar novas subjetividades: em seus meandros nascem formas inovadoras de ser e estar no mundo, que por vezes parecem saudavelmente excêntricas e megalomaníacas, mas outras vezes (ou ao mesmo tempo) se atolam na pequenez mais rasa que se pode imaginar".

Pessoalmente, tenho a pretensão de tentar escapar do atoleiro (pelo menos na maior parte do meu tempo de uso da web). O livro O show do eu será o tema principal da nova série de postagens.

* SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.


BG de Hoje

Não me pergunte o porquê, mas acho a canção A verdadeira Mary Poppins, do TITÃS, inteiramente afim com o assunto da postagem. OBS: Essa canção faz parte do último disco decente do grupo paulistano: Titanomaquia (1993).


terça-feira, 12 de março de 2013

Moralismo econômico, Macunaíma, "ficar à toa" e outros assuntos (IV)



Encerremos de vez essa lenga-lenga que custou a se concluir. E termino encenando, infelizmente, o que chamo de o fácil bom-mocismo internético. A série de postagens acabou se alongando demais e, na pressa de fechá-la (já encheu o saco), não consegui achar nada menos boboca do que apelar para esse discurso salpicado de humanismo ornamental (já sinto vontade de vomitar), característico de certos perfis mantidos na web e que tento evitar ao máximo. Lamento, eventual leitor(a).

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No capítulo Piaimã, o narrador nos conta que "Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina" *.

Fico pensando na expressão brigas sem vitória. As sociedades atuais (incluindo a brasileira) são marcadas por um poderoso controle do tempo das pessoas, sobretudo nos locais de trabalho. "Tempo é dinheiro", diz o conhecido adágio popular (provavelmente criado pelo primeiro capitalista da História). As horas livres ou ociosas costumam, então, ser associadas ao desperdício ou à vagabundagem. Tanto num caso quanto noutro, ficar à toa é condenável (para alguns, quase um crime).

Mas o tempo considerado útil tornou-se alienante. Arrisco dizer que a maioria dos trabalhadores mundo afora não se identifica com seu trabalho e não encontra o menor reconhecimento no seu ganha-pão. Fazem o que fazem simplesmente para pagar suas contas. E, espantosamente, terminada a jornada no emprego, o período de folga quase vira outra jornada, quando os sujeitos correm desabalados em busca da dopagem proporcionada pela indústria do entretenimento, seja domiciliar, seja aquela adquirida nos estabelecimentos que comercializam o "lazer".

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A briga entre os filhos da mandioca e a Máquina continuará - sem a vitória dos primeiros sobre a segunda - enquanto o moralismo econômico continuar determinando nossa forma de agir no mundo, controlando nosso tempo, nosso lazer, intentando nos impedir de desfrutar o ócio, necessário e indispensável, nos impedindo de ficar à toa, segundo nosso desejo. E Macunaíma parece nos sugerir uma alternativa, quando prefere inventar histórias e criar situações imprevisíveis a se submeter a uma rotina sem significado.

Só é possível praticar, em plenitude, ações criadoras ou refletir sobre nossa existência e as condições que a sustentam quando não se é oprimido pela mecanização do nosso tempo. A arte e a filosofia - para mencionar duas atividades progressivamente desvalorizadas no mundo contemporâneo - puderam surgir apenas quando os indivíduos obtiveram a liberdade de optar pelo "inútil".

A preguiça do Macunaíma, sob esse ponto de vista, é libertadora.

* ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo. Círculo do Livro, 1983.

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12 de março: Dia do Bibliotecário

Conheci, por meio do trabalho, alguns bibliotecários. Só me lembro, entretanto, de duas profissionais ao longo desses anos que ultrapassavam a mesmice e o convencionalismo das posturas típicas da categoria. Não me arrependo de ter abandonado o curso de Biblioteconomia há pouco tempo. Neste, o apego às tecnalidades e a sanha normativa pouco têm contribuído, assim me parece, para que surjam, entre seus estudantes, indivíduos capazes de entusiasmar e cativar futuros leitores. Se políticas de leitura eficientes passam pela participação e colaboração de bibliotecários, nesse aspecto, estamos bem mal também.

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BG de Hoje

O rock pesado passou por muitas transformações ao longo das últimas décadas. Firulas à parte, ainda sou mais o som cru, tosco e sujo do BLACK SABBATH. Essa "podreira" (no bom sentido, claro), é imediatamente sentida no primeiro disco da banda inglesa, na qual destaco Warning e seu andamento cheio de mudanças de riff, como gosta o guitarrista Tony Iommi.


segunda-feira, 4 de março de 2013

Moralismo econômico, Macunaíma, "ficar à toa" e outros assuntos (III)




Finalmente começo a falar de Macunaíma. Já não era sem tempo.

Assisti certa vez a um programa produzido para a TV Escola, da série Mestres da Literatura (disponível no Youtube, caros colegas da educação básica), em que o poeta Frederico Barbosa (atualmente diretor do Museu da Língua Portuguesa, acho eu) defendia a leitura do livro de Mário de Andrade não por ser este um clássico brasileiro, por ser "importante" e blá-blá-blá, mas simplesmente porque é engraçadíssimo e nos faz dar muitas gargalhadas. Falo por mim: é impressionante como até hoje, tendo lido e relido tantas vezes o Macunaíma*,  me pego rindo distraída e prazerosamente. E olha que a obra, baseada em estudos históricos e etnográficos nada superficiais, é de uma ambição tremenda - retratar, por meio da Literatura, os principais aspectos do que nos faz ser brasileiros.

O trecho mais divertido de toda a narrativa, penso, é o capítulo XI, "A velha Ceiuci". Todo ele é vertiginoso: Macunaíma acorda meio adoentado e "muito gangento com o sucesso do discurso da véspera" (no qual proclamara que ' Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são '). Decide matar o tempo procurando vestígios de animais silvestres em plena capital paulista, engana (pra variar) os irmãos, passa a perna também na população, tenta se vingar de seu arqui-inimigo, Venceslau Pietro Pietra, dizendo palavrões. Finalmente, acaba capturado pela velha Ceiuci, é ajudado pela filha dela a escapar mas acaba sendo perseguido, de norte a sul Brasil adentro, pela megera.

Quero destacar, contudo um pequeno trecho, quando Macunaíma diz ter encontrado "rasto fresco de tapir bem na frente da Bolsa de Mercadorias". O herói sai procurando, acompanhado pelos irmãos, e mais "aquele mundão de gente comerciantes revendedores baixistas matarazos". Obviamente ninguém acha nada. O "mundão de gente" se zanga. Um repórter chega a reclamar:

" - Isso não vai assim não! Pois então a gente vive trabucando pra ganhar o pão-nosso e vai um indivíduo tira a gente o dia inteiro do trabalho só pra campear rasto de tapir!"

Um estudante (provavelmente de Direito, um dos cursos preferidos da elite brasileira), aproveita a vaza e enceta um discurso, cheio de indignação hipócrita (é difícil não achar graça na sátira apresentada):

" - Meus senhores, a vida dum grande centro urbano como São Paulo já obriga a uma intensidade tal de trabalho que não permite-se mais dentro da magnífica entrosagem do seu progresso siquer a passagem momentânea de seres inócuos. Ergamo-nos todos uma voce contra os miasmas deletérios que conspurcam o nosso organismo social e já que o governo cerra os olhos e dilapida os cofres da nação, sejamos nós mesmos os justiçadores..."

O que se segue é cena digna de um filme-pastelão dos bons. Mas o que extrair dessas observações iniciais sobre Macunaíma?

Arrisco dizer que o herói sem nenhum caráter intentava, no fundo, dar à cidade (e à vida nacional) uma alternativa melhor para que a luta entre "os filhos da mandioca" (ou seja, os moradores do centro urbano) e a "Máquina" (a materialidade oriunda da industrialização que permeia a vida desses moradores) não terminasse empatada, como ele observara no capítulo V ("Piaimã"). E essa alternativa bate de frente com o moralismo econômico contra o qual me coloco.

Continuo, espero, na quinta-feira.


* ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Círculo do Livro, 1983. [ Fiz questão de citar essa edição (cuja capa ilustra a postagem) porque me lembra a iniciativa de meu falecido irmão, sócio do Círculo do Livro, e que, direta e indiretamente, contribuiu para minha formação como leitor. Guardo. até hoje, essa edição comigo.]

BG de Hoje

Fui salvo do pop açucarado graças ao VAN HALEN. Explico. Quando eu era garoto só escutava aquelas canções que hoje chamaríamos de música-de-tiozinho. Isso até eu ouvir a banda de Pasadena, Califórnia. Abriu-me as portas para o rock pesado. No vídeo, Ain't talkin 'bout love, do primeiro disco (1978).