quinta-feira, 31 de maio de 2012

30 anos de Blade Runner



Não me lembro bem, mas creio ter sido um de meus irmãos (faz tempo...) que me recomendou o filme Blade Runner, o caçador de androides (Blade Runner, 1982 - direção de Ridley Scott).

Assisti pela primeira vez numa distante madrugada televisiva. Acho que tinha uns 13 ou 14 anos na época. E, por isso, Blade Runner representou um aprendizado: a partir dali começava a me tornar um espectador menos ingênuo. Sem exagero, foi uma obra que contribuiu para meu amadurecimento.

O cult movie de Ridley Scott completa, em 2012, 30 anos desde sua estreia nos cinemas (aliás, eu só o assisti numa tela grande em 1989, durante retrospectiva dos 10 melhores filmes daquela década, no cine Humberto Mauro, dentro do Palácio das Artes aqui de BH). Passado esse tempo, cabe perguntar: a obra ainda tem algo a nos dizer? Penso que sim.

Uma das maneiras de se avaliar uma produção de ficção científica é tentar verificar o que se tornou (ou pode, no curto prazo, se tornar) "realidade" nas "previsões" feitas pela narrativa. Nesse quesito, Blade Runner acertou em cheio ao retratar uma megalópole (no caso, Los Angeles, no ano de 2019) apinhada de gente, com ruas sombrias e tristes, mas habitada por pessoas das mais diversas nacionalidades, numa miscelânea de idiomas e comportamentos. Isso é bem similar ao que se pode encontrar em boa parte dos centros urbanos mundo afora. Contudo, mesmo antecipando o avanço da engenharia genética, não estamos nem perto de testemunhar o aparecimento de androides tais como os que são personagens do filme.

Ontem revi o filme em DVD (versão do diretor) e constatei que as perguntas contidas em Blade Runner não deixaram de ser importantes pra mim: afinal, o que define um ser humano? O que pode justificar nosso viver (se é que este precisa de alguma justificativa)?

O policial Gaff - esplendidamente interpretado por Edward James Olmos - numa da últimas cenas do filme diz: "It's too bad she won't live. But than again, who does? [É pena que ela não viverá. Mas quem vive?]. Ele está se referindo à Rachael, androide possuidora de uma memória falsa e que também deveria ser "retirada" (ou seja, executada). Só que essa fala do personagem vai mais além e acaba por recuperar a questão - velha, mas inescapável para a humanidade -  proposta pelo filme: qual o significado (ou o sentido, como queiram) de nossa existência?

Blade Runner, nem preciso dizer, é uma das minhas obras prediletas.

BG de Hoje

A trilha sonora do filme, composta por VANGELIS, também acabou virando cult. Gosto muito do tema final.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Dizer o indizível


Muitas pessoas (muitas mesmo, inclusive eu) têm imensa dificuldade para explicar (algo) ou explicar-se. Sem falar no quanto é complicado traduzir em palavras determinados sentimentos, sensações e emoções experimentadas, ao testemunhar, por exemplo, uma catástrofe ou, num outro extremo, fruindo uma obra de arte. Nesses casos, comunicar o que se pensa ou sente, numa forma que seja direta e imediatamente compreensível por outra pessoa, é tarefa das mais árduas.

Esse tema aparece, de certo modo, no romance As intermitências da morte*, de José Saramago, numa passagem que será crucial para mais uma das reviravoltas pelas quais passa a narrativa.

O narrador nos conta que o violoncelista - que não havia recebido a funesta "carta violeta" da morte e, portanto, não morrera na data estabelecida - disse, em conversa com outros colegas de ofício, que seu retrato musical (ou seja, uma composição que o pudesse descrever) seria um "brevíssimo estudo de chopin, opus vinte e cinco, número nove, em sol bemol maior". Para o violoncelista, "em cinquenta e oito segundos chopin havia dito tudo quanto se poderia dizer a respeito de uma pessoa a quem não podia ter conhecido".

Na volta para casa, após um ensaio, o músico, depois de alimentar a si e ao cão de estimação, toca o Opus 25, sem saber que a morte "em pessoa" o observava, mas toca "como se tivesse percebido a presença de um terceiro em sua casa, a quem, por motivos não explicados, deveria falar de si mesmo", sem "ter de fazer o longo discurso que até a vida mais simples necessita para dizer de si mesma algo que valha a pena".

E o que sucede à morte, ouvindo a execução musical?

"A morte, porém, que por dever de ofício tantas outras músicas havia escutado, com particular relevância para a marcha fúnebre do mesmo chopin ou para o adágio assai da terceira sinfonia de beethoven, teve pela primeira vez na sua longuíssima vida a percepção do que poderá chegar a ser uma perfeita convizinhança entre o que se diz e o modo por que se está dizendo. Importava-lhe pouco que aquele fosse o retrato musical do violoncelista, o mais provável é que as alegadas parecenças, tanto as efecctivas como as imaginadas, as tivesse ele fabricado na sua cabeça, o que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naqueles cinquenta e oito segundos de música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma cousa tivesse ficado por dizer".

Talvez só a música - e mais nenhuma outra forma de arte - possa mesmo promover "essa convizinhança entre o que se diz e o modo por que se está dizendo". Quero, porém, destacar aqui o elogio fabuloso feito por Saramago à dimensão artística da existência. A peça musical, no livro, chega a impressionar até mesmo a morte. E a narrativa do escritor português - outra forma de arte - impressiona a nós, leitores.

* SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo. Companhia das Letras, 2005

BG de Hoje

Obviamente, o Opus 25/n.9, de FRÉDÉRIC CHOPIN (nesta execução, com a pianista ucraniana VALENTINA LISITSA)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Falou e disse...



SEM BARRA*

Enquanto a formiga
carrega comida
para o formigueiro,
a cigarra canta,
canta o dia inteiro.

A formiga é só trabalho.
A cigarra é só cantiga.

Mas sem a cantiga
da cigarra
que distrai da fadiga,
seria uma barra
o trabalho da formiga!


* PAES, José Paulo. Olha o bicho. 11 ed. São Paulo: Ática, 2005


terça-feira, 22 de maio de 2012

"Vadiagens pelos recantos do idioma"

"Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.".

Manoel de Barros, no poema O apanhador de desperdícios (do livro Memórias Inventadas*)

 
Ocorreu-me a lembrança de Manoel de Barros no momento em que escrevia a última postagem, discutindo matéria publicada na revista Metáfora (que mencionava, entre outras coisas, brinquedos construídos a partir de autores, obras e personagens literários). Desejo voltar ao tema do brinquedo, pois a brincadeira é um elemento constitutivo da poesia de Barros.

Numa entrevista concedida, anos atrás, à  revista Caros Amigos*, o poeta, relembrando certa conversa que manteve com Guimarães Rosa, disse: "Eu andei procurando retirar das palavras suas banalidades. Não gostava de palavra acostumada. E hoje gosto mais de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério". Logo adiante, dando outra resposta, concorda que pratica uma "língua de brincar":

"É um dialeto infantil. Acho que passei a vida inteira brincando, porque todo mundo ri da minha poesia. Riem quando compreendem. Comecei a ler meus versos. São todos assim: quanto à razão, inclusive se você for raciocinar em cima do verso pra procurar o sentido, não acha a ideia, porque a linguagem apaga a ideia, a metáfora destrói qualquer ideia. As ideias depois, se quiserem, inventem".

Essa opção por uma "língua de brincar" pode ser melhor percebida lendo a série Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros**.

No texto que serve de prefácio ao livro, o mato-grossense escreve: "Acho que o que eu faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem". E nas Memórias inventadas, brinca, ao mesmo tempo, com a linguagem e com a noção de autobiografia.

As memórias são inventadas, ou seja, nem tudo ali (ou quase nada) é factual - o que pouco importa para a apreciação do livro. E é possível buscar nos diversos textos indícios que forneçam meios para compreender o modo de fazer poesia adotado por Manoel de Barros.

Em Delírios, o poeta nos conta ter adquirido, desde menino, o hábito de anotar frases insólitas, futuras candidatas a virarem versos: "Esses delírios irracionais da imaginação fazem mais bela a nossa linguagem". Em Soberania ele nos diz ter aprendido com Einstein que "a imaginação é mais importante do que o saber" e decidiu botar "um pouco de inocência na erudição"; seu olho "começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho". Lemos em Jubilação:

"Na faceirice as palavras me oferecem todos os seus lados. Então a gente sai a vadiar com elas por todos os cantos do idioma. Ficamos a brincar brincadeiras e brincadeiras. Porque a gente não queria informar acontecimentos. Nem contar episódios. Nem fazer histórias. A gente só gostasse de fazer de conta. De inventar as coisas que aumentassem o nada. A gente não gostasse de fazer nada que não fosse de brinquedo. Essas vadiagens pelos recantos do idioma seriam só para fazer jubilação com as palavras. Tirar delas algum motivo de alegria. Um alegria de não informar nada de nada".

A poesia de Manoel de Barros está repleta dessas "vadiagens pelos recantos do idioma": não há intenção de "informar nada de nada". Um estraga-prazeres beeeem obtuso poderia perguntar: se assim é, qual a utilidade dessa poesia?

Ah, esse é assunto pra outra postagem...

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* Três momentos de um gênio. Caros Amigos, São Paulo, ano X, n. 117, dez. 2006, p. 29-33

** BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008


BG de Hoje

Gosto de grupos de rock que sabem usar o humor. Até mesmo para rirem deles mesmos. Nesse quesito, o ULTRAJE A RIGOR ainda é uma das minhas referências, como neste reggae "desleixado": Mim quer tocar.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Um leitor sisudo


Deixo para escrever um pouco mais sobre o livro de José Saramago (As intermitências da morte) noutra oportunidade. É que li recentemente matéria bastante curiosa na revista Metáfora e achei melhor tratar dela.

Com o título Literatura, modo de brincar*, o texto, assinado por Luiz Costa Pereira Júnior e Terciane Lopes, arrola diversos tipos de produtos - brinquedo, calendário fotográfico, camiseta, programa de computador, entre outros - inspirados em escritores, obras ou personagens literários. Os autores dão a seguinte recomendação, logo de início: "Esqueça a ideia de que ela [a Literatura] é um jogo de linguagem da cultura, para iniciados. Pois na vida de seus genuínos apreciadores, será sempre diversão - ou não será literatura".  Pereira Júnior e Terciane Lopes, apoiados em boa parte no livro Homo ludens, de Johan Huizinga, defendem que:

"A 'ludicidade' da literatura conviveu e cedeu espaço ao amadurecimento da ideia de estética - a consciência de que há uma cultura literária forjada por uma tradição de procedimentos que podem ser construídos e virtualmente negados. Essa consciência parece ter se tornado robusta o bastante para que a dimensão lúdica da literatura ficasse circunscrita e associada, na cultura literária, a um nicho: a diversão é preocupação acessória, de preferência restrita à produção pouco séria, destinada ao mercado de consumo ligeiro. Virou fato que muito da literatura prèt-à-porter, aquela que é pré-fabricada para vender e ensinada por manuais e cursinhos, ocupe um campo específico no consumo de livros (de ficção, auto-ajuda, religiosos, etc.). Mas também é verdade que parte substancial da grande literatura é resultado de uma forma de encarar a escrita muito próxima à sensação de quem participa de uma brincadeira autossuficiente".

Os autores, na conclusão da matéria, afirmam: "os trabalhos [referência aos produtos citados no segundo parágrafo] que apresentamos nessas páginas foram desenvolvidos por quem tenta entusiasmar as pessoas, instigar o interesse pela leitura insistindo no fato de que a literatura é o tratamento lúdico que damos às alternativas da imaginação que desconhecíamos".

. . . . . . . 

Por temperamento, sou um leitor sisudo. Não quer dizer que não me divirta com boa parte das obras que leio: gargalho nalgumas passagens do Macunaíma, por exemplo; fiquei fascinado com o complexo jogo proposto por Georges Perec em A vida: modo de usar (como já comentei aqui e aqui); e não resisto às brincadeiras verbais propostas por José Paulo Paes (poeta citado várias vezes no blog, inclusive aqui).

Porém,dando uma olhada nos objetos "lúdicos" e "divertidos" citados pela revista, principalmente nos Literary Greats Paper Dolls (imagem no alto da postagem), fiquei na dúvida se estes podem, de fato, "entusiasmar as pessoas" e "instigar o interesse pela leitura".

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Chega a ser um truísmo afirmar que estamos cercados, quase o tempo todo, por estímulos audiovisuais provenientes de dezenas de fontes, sobretudo dos meios de comunicação de massa. Isso sem mencionar o advento, nas últimas décadas, da World Wide Web, com seu luxo e seu lixo.  Justamente por essa "overdose" de imagens e sons, nossa atenção é constantemente dispersada. Também somos solicitados, insistentemente, a "interagir" com outras pessoas - enviando mensagens de celular, respondendo publicações nas tais redes sociais ou mesmo exercitando a velha e famigerada conversa fiada (o que me leva a perguntar: quantos atos de comunicação são necessários para nos satisfazer?).

Mas ler efetivamente um texto, penso eu, exige concentração e isolamento (além de esforço, em alguns casos), condições bastante difíceis de se atingir no cenário acima esboçado.

Quero dizer com isso que os produtos exibidos na matéria da revista Metáfora podem ser muito simpáticos (e alguns são mesmo sensacionais) mas não acredito que objetos alusivos a textos literários, por mais lúdicos que sejam, possam fazer com que as pessoas se tornem leitores mais aplicados e qualificados só por tê-los ou manuseá-los. Usar um verso de Fernando Pessoa numa camiseta ou ter um bonequinho lego de Edgar Allan Poe - falo daqueles que  por ventura comprarem tais produtos, não daqueles que os elaboraram -  é algo bem legal, além de fazer o  possuidor dessas coisas ficar "bem na foto". Agora, se essas pessoas vão efetivamente ler as obras desses autores, já não sei dizer.

* Literatura, modo de brincar. Metáfora, São Paulo, ano I, n. 7, abr. 2012, p. 26-32

BG de Hoje

Taí uma canção - Champagne Supernova - meio metida a besta, né não? Tem uma certa pretensão sinfônica que chega a incomodar muita gente... E como os integrantes do OASIS nunca primaram pela humildade, a coisa se complica ainda mais. Bem, como sou uma besta quadrada - mas um sujeito metido a besta - não me importo em nada com isso. Gosto muito da música; um belo momento da música pop.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Falou e disse...



"Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno"
*

* Antonin ARTAUD, em Van Gogh: o suicidado da sociedade

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Filosofia e morte

 
Falei de Montaigne no início da semana e acabei tendo de  voltar a ele após a leitura de um romance de José Saramago. Explico.

Em As intermitências da morte*, no terceiro capítulo, relatando o debate ocorrido na "comissão interdisciplinar" formada por religiosos e filósofos, um dos últimos afirma: "Porque a filosofia precisa tanto da morte como as religiões, se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur de montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer".

Saramago está fazendo referência direta a um texto do ensaísta francês**, assim iniciado:

"Diz Cícero [muito provavelmente remetendo a Sócrates/Platão] que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso, talvez, porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós, separam-na do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte e constitui como que um aprendizado em vista dela. Ou então é porque de toda sabedoria e inteligência resulta, finalmente, que aprendemos a não ter receio de morrer".

A seguir, Montaigne estabelece inusitada relação entre o prazer e a virtude (considerando esta bom auxílio para a aceitação do fato de que vamos morrer); argumenta que, diante da inevitabilidade da morte, devemos aprender "a esperá-la de pé firme e lutar"; e acredita que a consciência do fim pode nos tornar menos servis: "meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento".

Mas o momento mais interessante do ensaio encontra-se no trecho abaixo:

"Quíron recusou a imortalidade quando Saturno, seu pai, deus do tempo e da mortalidade, lhe revelou as condições dela. Imaginai a que ponto uma vida sem fim fora menos tolerável e mais penosa para o homem do que a que lhe foi dada. Se não tivésseis a morte, vós me amaldiçoaríeis sem cessar por vos haver privado dela. Foi propositadamente que a ela juntei alguma amargura, a fim de impedir que, ante a comodidade de seu uso, não a buscásseis com excessiva avidez. Para vos trazer a essa moderação que solicito de vós, de não abreviar a vida e não tentar esquivar a morte, temperei-as pelas sensações, mais ou menos suaves, mais ou menos duras que vos podem outorgar".

A narrativa mitológica recuperada por Montaigne toca em questões profundas (até mesmo o suicídio). E, de certa forma, o romancista português tratará delas em sua narrativa. Mas este assunto fica para mais adiante.

Por enquanto, retorno ao terceiro capítulo de As intermitências da morte. Tanto os filósofos quanto os religiosos tiveram imensa dificuldade para atuarem dentro da nova realidade surgida com a "greve" da morte. Estou propenso, entretanto, a considerar que o narrador pende mais para o lado dos filósofos. Atentemos para o diálogo - cheio do humor peculiar de Saramago -  reproduzido abaixo:

"As religiões, todas elas [disse o mais velho dos filósofos pessimistas], por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca. Os delegados das religiões não se deram ao incómodo de protestar. Pelo contrário, um deles, conceituado integrante do sector católico, disse, Tem razão, senhor filósofo, é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora, acolham a morte como uma libertação, O paraíso, Paraíso ou inferno, ou cousa nenhuma , o que se passe depois da morte importa-nos muito menos que o que geralmente se crê, a religião, senhor filósofo, é um assunto da terra, não tem nada que ver com o céu, Não foi o que nos habituaram a ouvir, Algo teríamos que dizer para tornar atractiva a mercadoria, Isso quer dizer que em realidade não acreditam na vida eterna, Fazemos de conta. Durante um minuto ninguém falou. O mais velho dos pessimistas deixou que um vago e suave sorriso se lhe espalhasse na cara e mostrou o ar de quem tinha acabado de ver coroada de êxito uma difícil experiência de laboratório".

Volto a falar do livro de Saramago na próxima semana.
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* SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005

** MONTAIGNE, Michel de. De como filosofar é aprender a morrer. In: __________. Ensaios: vol. 1. 2 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília; Hucitec, 1987. p. 157-169 [tradução de Sérgio Milliet]

BG de Hoje

Vi outro dia na MTV e gostei: ROCK ROCKET, Por um rock and roll mais alcoolatra e inconsequente.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Falou e disse...


"Sócrates falava  'Yeah-yeah' ; Aristóteles dizia  'Háááááá'; e Platão fazia Salsifufu"*


* Sérgio Mallandro, hoje no programa Grafitte, na rádio 98 FM

Existem as tais "próprias palavras"?


"E se cito os outros é para melhor dizer de mim"

Michel de Montaigne - Da educação das crianças

 
 
Desde garoto, espantava-me quando, na escola, um professor me pedia que explicasse ou escrevesse alguma coisa usando "minhas próprias palavras". Mas há palavras próprias? Palavras inéditas? Únicas? Totalmente originais? Como costumam brincar os linguistas que estudam a Análise do Discurso: falamos ou somos falados?

Voltei a pensar nisso ao ler um ensaio escrito por Michel de Montaigne. Em Pedantismo*, o pensador francês começa sua reflexão tentando descobrir por que os professores em geral têm péssima reputação. E se pergunta: "Mas como pode ocorrer que uma alma enriquecida de tantos conhecimentos não se torne mais viva e esperta, e que um cérebro vulgar e grosseiro armazene, sem se apurar, as obras e juízos dos maiores espíritos que o mundo produziu?"

Mais à frente o ensaísta julga achar uma resposta: "[...] creio ser preferível dizer que o mal provém da maneira por que tratam a ciência [...]. Em verdade, os cuidados e despesas de nossos pais visam apenas encher-nos a cabeça de ciência: de bom-senso e virtude não se fala [...]. Indagamos sempre se o indivíduo sabe grego e latim, se escreve em verso ou prosa, mas perguntar se se tornou melhor e se seu espírito se desenvolveu - o que de fato importa - não nos passa pela mente".

Ou seja, para o filósofo, de nada adianta o acúmulo de erudição, decorrente de uma cultura livresca, se este não favorecer a formação do caráter ("Só nos esforçamos por guarnecer a memória, deixando de lado, e vazios, juízo e consciência", escreve ele mais à frente). Trata-se de confiar menos no saber alheio e mais em nossa própria capacidade de discernimento.

É de se notar, entretanto, que o próprio Montaigne não se cansa de citar "palavras de outros", sobretudo Cícero, Sêneca e Plutarco, para corroborar ou ilustrar seus argumentos. Afirma ele, num outro ensaio (Da educação das crianças**): "[...] acontece-me, não raro, encontrar por acaso nos bons autores os mesmos assuntos que procuro comentar, como vem me suceder com Plutarco acerca da força da imaginação: e ao reconhecer-me diante deles tão fraco e insignificante, tão pesado e sem vida, tenho piedade de mim mesmo, e desdém. Todavia sinto prazer em verificar que minhas opiniões têm a honra de ir ao encontro das deles, às vezes, e, embora de longe, sigo-lhes as pegadas".

Assim sendo, deixando de lado a questão meio boba da "formação de caráter", pergunto: que mal há em se investir numa cultura mais livresca?

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Num belíssimo texto, lido há alguns anos*** (e que já discuti aqui, ao falar do papel das citações), Alberto Manguel afirma que "citar é continuar uma conversa do passado e dar contexto ao presente; citar é fazer uso da Biblioteca de Babel; citar é refletir sobre o que foi dito antes, pois, se não o fizermos, falamos no vácuo, onde a voz humana não faz som". E lembra que, para Walter Benjamin, "escrever história é citá-la".

Manguel, em diversos de seus trabalhos, não cessa de defender - escrevendo de diferentes modos - o seguinte ponto de vista: a leitura desempenha papel considerável na definição de nossa própria identidade. Desse modo, não há incompatibilidade entre viver e ler.

Em Um história da leitura****, por exemplo, ele registra:  "Por mais que os leitores se apropriem de um livro, no final, livro e leitor tornam-se uma só coisa. O mundo, que é um livro, é devorado por um leitor, que é uma letra no texto do mundo; assim, cria-se uma metáfora circular para a infinitude da leitura. Somos o que lemos".

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Um professor, obviamente, quando solicita ao aluno que escreva usando "suas próprias palavras", deseja  tão somente que este não repita ipsis litteris o que outros tenham escrito sobre o assunto avaliado. Seu objetivo é verificar o quanto o estudante "absorveu" dos textos que lhe foram indicados ou medir qual o nível de conhecimento prévio que este possui a respeito do tema em questão. Assim, a pergunta colocada no título da postagem carrega uma intençãozinha maldosa...

Num sentido mais estrito, contudo, não faz sentido falar em "palavras próprias". As línguas humanas são um constante intercâmbio de formas de expressão linguística, consensuais e convencionais, sem as quais a comunicação seria bastante difícil, até mesmo impossível. Felizmente, alguns indivíduos conseguem compor novos arranjos dessas expressões, ampliando ou aumentando a significação delas. Por vezes, até criam outras, novas e inusitadas, que passam a ser incorporadas ao falar que se partilha. E um dos modos mais sublimes de ter acesso a essas re-criações é através da cultura livresca, aparentemente, tão menosprezada por Montaigne.
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* MONTAIGNE, Michel de. Pedantismo. In: ________. Ensaios, vol. 1. 2 ed. Brasília, Editora Universidade de Brasília: Hucitec, 1987. p. 201-210

** MONTAIGNE, Michel de. Da educação das crianças. In: ________. Ensaios, vol. 1. 2 ed. Brasília, Editora Universidade de Brasília: Hucitec, 1987. 211-238

*** MANGUEL, Alberto. O destino da leitura na era da web. Veja, São Paulo, n. 1681, 27 dez. 2000. Disponível em http://veja.abril.com.br/especiais/perspectivas/p_100a.html Acesso em 06 mai. 2012

**** MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010


BG de Hoje

Péssimo dia cá na escola. Acho que o trabalho em unidades de educação básica torna-se ainda mais desagradável nem tanto pelos baixos salários ou pelas pífias condições de trabalho. É mais pela sensação de frustração que se sente ao ver que os esforços feitos não resultarão em nada significativo. Foi aí que me lembrei dos versos de uma canção do LULU SANTOS (Já é):

"Sei lá...
Tem dias que a gente olha pra si
E se pergunta se é mesmo isso aí
Que a gente achou que ia ser
Quando a gente crescer"

Definitivamente, não era isso que eu achava...

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Todos os que têm o cargo de professor podem realmente ser chamados de professores?


Antes de entrar propriamente no tema desta postagem, gostaria de lembrar duas excelentes professoras das quais fui aluno na época em que fazia o curso de Letras, nos anos 1990*.

Uma delas foi Maria Aparecida Andrés, que não pertencia à FALE/UFMG, mas ministrou a disciplina "Lógica do Pensamento Científico", componente do antigo "Ciclo Básico", obrigatório, ofertado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da mesma universidade.

Era impressionante. Sem se levantar de sua cadeira durante quase toda a aula, fumando a maior parte do tempo (naquela época, um ato perfeitamente tolerável ainda), Aparecida Andrés conseguia amarrar, brilhantemente, as observações titubeantes e imprecisas que fazíamos aos textos dos autores lidos naqueles encontros (Adam Schaff, Karl Mannheim, Marilena Chauí, entre outros). Em certa ocasião, trocou o assunto que seria discutido para falarmos do (então) recente suicídio de Kurt Cobain, líder do Nirvana, sem, contudo, comprometer a (imensa) qualidade de sua aula. Dizia que preferia trabalhar com a graduação porque gostava - as palavras são dela - de "cabeças virgens"; ou seja, aquelas sem os "vícios" dos estudantes já ingressados no mestrado e/ou doutorado.

A outra foi Graça Paulino. Duas de minhas irmãs já haviam estudado com ela e muito a elogiavam; assim, foi com grande expectativa que me matriculei na disciplina "Teoria da Literatura I". Infelizmente, entretanto, só tive duas aulas. Trabalhadores do Brasil inteiro, naquela época - inclusive professores universitários - estavam muito preocupados com a reforma da previdência implementada no primeiro governo FHC, receosos de que os valores de suas aposentadorias fossem achatados ou de serem obrigados a continuar na ativa além do tempo inicialmente previsto. Foi o caso de Graça Paulino (e acho que também o de Aparecida Andrés), que decidiu aposentar-se justamente naquela oportunidade. Não sem antes, ainda bem, nos oferecer um pouco de sua sabedoria, discutindo conosco um dos mais belos poemas de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa: Se te queres matar, por que não te queres matar?.

Só que Graça Paulino retornou à vida universitária, na condição de professora associada da Faculdade de Educação (UFMG) e integrante do Ceale (Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita), vinculado a essa unidade acadêmica. Recentemente, li entrevista sua publicada na (excelente) revista Presença Pedagógica** (publicação, aliás, da qual Paulino foi editora geral e atualmente compõe o conselho editorial). Na conversa, entre os assuntos  tratados, chamou-me a atenção principalmente o que vai no trecho abaixo:

"Quanto ao papel dos intelectuais, professores universitários, acredito que primeiramente eles devem assumir a graduação, dedicar-se a esse nível de ensino. Tenho visto nas universidades públicas uma inversão. Quem se considera intelectual, professor de primeira linha, só quer dar aula para a pós-graduação e não para a graduação. Isso tem de mudar para que a graduação melhore e para que os alunos da licenciatura possam chegar às suas escolas de uma maneira diferente. Dessa forma, com professores bem formados, o diálogo entre universidade e escola básica pode melhorar muito. Na verdade, o que ocorre é que apenas a pesquisa é valorizada no currículo do professor universitário. Ganham-se bolsas de produtividade por pesquisa, mas não por aulas bem ministradas. Outro descaso que encontramos relaciona-se a projetos de extensão. Esses projetos, que fazem com que a universidade se insira na vida social da comunidade, não são valorizados. Nem o ensino nem a extensão são premiados, destacados, somente a pesquisa. Se a universidade está dividida em ensino, pesquisa e extensão, se são essas as três funções que temos de exercer, então que sejam exercidas com equilíbrio. Um pesquisador não deve ser mais valorizado do que um professor". 

Algo que sempre me incomodou no ensino superior é a  seguinte crença: se um sujeito chegou ao cume da vida acadêmica (doutorado e quejandos) "naturalmente" será um bom professor. Isso não é verdade. Há péssimos docentes nas universidades brasileiras e, na minha opinião, o MEC deveria cobrar mais competência didática destes. Mas, como observou Graça Paulino, a desvalorização daquele que se dedica ao ensino também atinge o "mundinho" universitário.

Considero a profissão de quem ensina exatamente isso: uma profissão. Nada a ver com "dom" ou "caminho vocacional". Mas para que essa missão seja bem realizada é preciso empenho (como, aliás, em qualquer outra atividade profissional). Isso, penso eu, vale tanto para a educação básica quanto para o ensino superior.

Alguns "professores" universitários - com pós-doc em não-sei-o-quê, com dezenas de artigos e livros publicados, mas incapazes de transmitir "a chama sagrada" (exagerei na imagem, né não?) a seus alunos - na minha opinião, são inadequadamente chamados de professores. Esses "alguns" ou são deslumbrados demais com sua própria trajetória ou são simples burocratas da docência.

* É claro que tive outros ótimos professores na FALE/UFMG - Hugo Mari, Sueli Pires, Murilo Marcondes de Moura, Jussara Santos, Antonio Orlando, Lúcia Castello Branco. Estou falando dessas duas porque estão mais diretamente relacionadas com o assunto da postagem.

** "Ainda não temos um Brasil literário, mas precisamos continuar lutando por isso". Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 17, n. 102, nov./dez. 2011, p. 5-10

BG de Hoje

Não sou nem de longe um fã ardoroso, mas gosto muito de R.E.M. A primeira canção da banda que ouvi foi Orange Crush e que até hoje me agrada muito. 

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Porta de banheiro



Já deve ter dado até tema para trabalhos acadêmicos, arrisco. Falo das portas de banheiro, mais especificamente das frases que usuários deixam como legado de sua sabedoria aos pósteros, cagões e mijões pensantes que ocuparão tão nobre (e necessário) espaço num futuro nem tão distante.

Muitos já devem ter escrito e comentado a respeito desses dizeres ora sarcásticos, ora espirituosos, ora francamente imbecis e, infelizmente, nalgumas vezes, cheios de racismo, homofobia e outras mostras de intolerância. Mas apesar do tema ser batido, não consegui escapar dele.

Outro dia, numa dessas instalações sanitárias, li a seguinte frase: "Eu estou com Jesus, e você?". Supus, obviamente, tratar-se da mensagem de uma pessoa inclinada para o lado religioso da existência. Deve ter achado que fez um ato louvável ao escrever tão grandiloquente informe na porta de um banheiro público...

Na semana seguinte, duas novas frases apareceram como respostas: "Eu estou mijando" e "Tô cagando". Que exemplo mais perfeito de objetividade! Se estamos próximos a uma latrina, nada mais lógico que estejamos lá para urinar e defecar! Fiquei verdadeiramente fascinado com o registro desses dois respondedores, certamente adeptos de uma visão pragmática do mundo.

No dia ulterior, o toque irreverente: 1) alguém puxou uma seta diretamente da palavra Jesus e acrescentou "Luz?", provavelmente referindo-se ao modelo brasileiro que se tornou famoso por ter sido namorado da popstar Madonna; 2) outro alguém registrou: "Estou com a Maria Madalena". Nas duas respostas, duas tentativas de afirmação da identidade: uma homossexual (será?); outra heterossexual (será?).

Mas o melhor ficou para o final. Exemplo da mais pura lucidez: alguém escreveu simplesmente "Eu estou vivo".

Não consigo imaginar melhor resposta.

P.S. Ah, estou acompanhando este interessantíssimo debate até hoje. Bom, pelo menos até que a porta seja limpa. O que duvido que ocorra nas próximas semanas.

BG de Hoje

Não sou muito fã de MARILYN MANSON, mas tenho que admitir que os clipes de suas canções são ótimos. Como esse, de This is the new shit.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Tudo a ver comigo (1)

NUTSHELL
(Layne Staley)

We chase misprinted lies
We face the path of time
And yet I fight, and yet I fight
This battle all alone
No one to cry to, no place to call home


My gift of self is raped
My privacy is raped
And yet I find, and yet I find
Repeating in my head
If I can't be my own, I'd feel better dead