quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

"Vida sem utopia não entendo que exista"


Nunca se deve desprezar a eficácia da mistificação e do falseamento da realidade para se atingir determinados objetivos políticos. 

Pensemos, por exemplo, na tal "ameaça comunista".

Quanta iniquidade tivemos (e temos) que aturar porque parte das pessoas vive em constante temor da  "ameaça comunista"!

Houve, claro, diversas motivações para o golpe (civil-)militar de 1964, mas um dos pretextos mais usados para justificá-lo - assim como a ditadura que o seguiu - foi o de "proteger o Brasil do comunismo". Mais recentemente, estamos testemunhando a ascensão de grupos truculentos, intolerantes e obscurantistas, sendo uma das evidências dessa escalada a ultrajante administração federal atual (como se já não bastasse a maioria de congressistas antipobre, prepostos da plutocracia nacional, além de outros que parecem saídos da Idade Média), vociferando slogans como "Nossa bandeira jamais será vermelha!" ou denunciando o perigo do "marxismo cultural" (que diabo é isso?).

Tenha paciência! Em que momento, do passado ou do presente, o país deu mostras cabais de que partiria, na bucha, para o comunismo? É sério: quando, em nossa história, aqueles que mandam e desmandam por aqui desde antes da instalação da República dormiram agoniados só por imaginar que sua acumulação de capital corria risco de cessar?

Entretanto, não é difícil convencer a classe média e os pobres-que-acham-que-não-são-pobres de que os comunas subversivos estão logo ali na esquina prontinhos para tomar tudo o que é seu. Protejam-se! Protejam-se! A precarização do trabalho é cada vez mais dramática, assim como a desigualdade socioeconômica, mas "para o futuro do Brasil, só a luta contra os comunistas é prioritária", escreveu no Twitter, meses atrás, o ex-astrólogo que é guru de integrantes dos grupos acima referidos.

Por que tanta paúra, minha gente?

Há alguns dias, estava refletindo sobre a canção Um comunista, de Caetano Veloso, que faz parte do disco Abraçaço, lançado em 2012.

Não é uma faixa radiofônica. É longa, se pensarmos em termos de música pop (tem mais de 8 minutos); o andamento é lento; há pouca variação melódica. Gosto dela, porém.

Abaixo, reproduzo a letra da canção:

Um mulato baiano,
Muito alto e mulato
Filho de um italiano
E de uma preta hauçá [haussá]
Foi aprendendo a ler
Olhando o mundo à volta
E prestando atenção
No que não estava à vista
Assim nasce um comunista

Um mulato baiano
Que morreu em São Paulo
Baleado por homens do poder militar
Nas feições que ganhou em solo americano
A dita guerra fria
Roma, França e Bahia

Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!

O mulato baiano, mini-manual
Do guerrilheiro urbano que foi preso por Vargas
Depois por Magalhães
Por fim, pelos milicos
Sempre foi perseguido nas minúcias das pistas
Como são os comunistas

Não que os seus inimigos
Estivessem lutando
Contra as nações-terror
Que o comunismo urdia
Mas por vãos interesses
De poder e dinheiro
Quase sempre por menos
Quase nunca por mais

Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!

O baiano morreu
Eu estava no exílio
E mandei um recado:
[que]"eu que tinha morrido"
E que ele estava vivo,
Mas ninguém entendia
Vida sem utopia
Não entendo que exista
Assim fala um comunista

Porém, a raça humana
Segue trágica, sempre
Indecodificável
Tédio, horror, maravilha
Ó, mulato baiano
Samba o reverencia
Muito embora não creia
Em violência e guerrilha
Tédio, horror e maravilha

Calçadões encardidos
Multidões apodrecem
Há um abismo entre homens
E homens, o horror
Quem e como fará
Com que a terra se acenda?
E desate seus nós
Discutindo-se Clara
Iemanjá, Maria, Iara
Iansã, Catijaçara

O mulato baiano já não obedecia
Às ordens de interesse que vinham de Moscou
Era luta romântica
Era luz e era treva
Feita de maravilha, de tédio e de horror

Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! os comunistas! 

Em se tratando de uma homenagem, o caráter, digamos, narrativo da canção foi mais do que acertado. 

Embora o letrista "não creia/em violência e guerrilha", Carlos Marighella  - "mini-manual do guerrilheiro urbano" - representou mais do que um combatente. Para além dos elementos biográficos citados, é esse outro valor representativo que a composição realça.

. . . . . . .

Em agosto de 1967, na cidade de Havana, foi organizada a 1ª Conferência da OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade). O Partido Comunista Brasileiro - então sem registro eleitoral, desde 1947 - decidiu não mandar representantes, mesmo tendo sido convidado. Marighella foi, contrariando o comitê central, que enviou comunicado ao seu correspondente cubano, ameaçando expulsar o ex-deputado federal baiano e desautorizando-o como porta-voz do PCB. Creio que a resposta dada por Carlos Marighella a esse comunicado é bastante útil para a discussão da postagem de hoje; vamos ler um trecho dela (foi reproduzida no essencial livro Batismo de sangue  ¹, de Frei Betto):

"É evidente que compareci [à conferência] sem pedir permissão ao Comitê Central, primeiro porque não tenho que pedir licença para praticar atos revolucionários, segundo porque não reconheço nenhuma autoridade revolucionária nesse Comitê Central para determinar o que devo e o que não devo fazer... As divergências que tenho com a Executiva, da qual já me demiti em data anterior, são as mesmas que tenho com o atual Comitê Central. Uma direção pesada como é, com pouca ou nenhuma mobilidade, corroída pela ideologia burguesa, nada pode fazer pela revolução. Eu não posso continuar pertencendo a esta espécie de Academia Brasileira de Letras, cuja única função consiste em se reunir (...). Falta ao Comitê Central a condição mais importante para a liderança marxista-leninista, que é saber conduzir e enfrentar a luta ideológica. E como não pode fazê-lo, recorre a medidas administrativas constantes, suspendendo, afastando, expulsando militantes, apreendendo documentos e proibindo a leitura de materiais dos que discordam. É o Comitê Central da censura, das reprimendas, das desautorizações, do crê ou morre. (...) Em minha condição de comunista, à qual jamais renunciarei, que não pode ser dada nem retirada pelo Comitê Central, pois o Partido Comunista e o marxismo-leninismo não têm donos e não são monopólios de ninguém, prosseguirei pelo caminho da luta armada, reafirmando minha atitude revolucionária e rompendo definitivamente com vocês".

Na época em que se deu a Conferência da OLAS, o Brasil vivenciava o autoritarismo dos generais. Diante de um regime discricionário e opressor, como se deve reagir? 

"Uma ditadura" - escrevem Lilia Schwarcz e Heloisa Starling ² - "é formada por mandantes arbitrários, oposicionistas tenazes e uma população que precisa sobreviver - parte dela atravessa em silêncio, com medo ou apenas conformada com o tempo de arbítrio". É forçoso admitir que uma contestação de massa à ditadura não aconteceu ³. A oposição encontrava-se fragmentada e dispersa. Parte daqueles e daquelas que se dispuseram a combater o regime efetivamente associaram-se em grupos como o MR-8, a VPR ou a ALN (a Ação Libertadora Nacional, criada por Marighella). "Algumas dessas organizações eram minúsculas", observam as historiadoras, "poucas tiveram força e estrutura suficientes para desafiar a ditadura, e a maioria formou-se a partir de dissidências originadas pela derrota sem resistência sofrida pelo Partido Comunista, em 1964; mas quase todas optaram pela luta armada".

Os indivíduos que partiram para a guerrilha avaliaram (com acerto, vale dizer) que a quartelada causadora da deposição de João Goulart (presidente que ocupava legitimamente o cargo e pretendia, aparentemente, colocar em prática reformas defendidas pela esquerda) não seria algo passageiro, indolor e sem maiores consequências para o futuro do país. Para essas pessoas, as únicas ações políticas aceitáveis naquele momento histórico eram as ações revolucionárias. NOTA: É irônico que uma parcela dos militares chame o golpe executado por eles de revolução: uma revolução feita para que tudo continuasse a ser com sempre foi...

A resposta de Marighella ao comitê central do PCB, como se lê, ilustra o seu rompimento com o partido, instituição que, na visão do guerrilheiro, parecia acomodada à situação, além de manter-se numa reprovável subordinação doutrinária: "o mulato baiano já não obedecia/às ordens de interesse que vinham de Moscou", como canta Veloso. Sua "luta romântica" - no sentido de se pautar por ideais e cujos principais objetivos eram irrealizáveis, pelo menos naquele momento - não conseguiu, entretanto, causar qualquer abalo no regime ditatorial. A esse respeito, Frei Betto assinalou:

"Muitos ingressavam na organização [ALN] sem nenhum preparo político, movidos pela mística revolucionária, acreditando que a luta obedeceria a um desenvolvimento linear até a vitória final [...] A prática revolucionária restringia-se quase que exclusivamente às ações armadas que, sem apoio popular, tornavam-se cada vez mais vulneráveis à ofensiva da repressão. Não se fazia trabalho político de massa, nem se sabia como incorporar os trabalhadores à luta política. A guerrilha, praticamente restrita às cidades, colocava-se como alternativa ao trabalho de base, à organização popular, como se ela fosse capaz de, por si só, deflagrar o descontentamento latente no povo, materializando-o no efetivo apoio ou participação na luta".

A esquerda brasileira continua cometendo parte desses erros até hoje, agora noutro contexto histórico.

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Não é ocioso lembrar que críticas ao capitalismo são anteriores a Marx e seus escritos (as jornadas diárias em que os trabalhadores mal tinham tempo de se alimentar e dormir o suficiente, verificadas durante a Revolução Industrial, bem como as condições de trabalho degradantes em vários ramos da atividade econômica - com trabalho infantil generalizado, inclusive -, geravam indignação já em seu tempo). O que a obra do pensador alemão fez foi aprimorar e aperfeiçoar a crítica, conferindo maior coerência e profundidade.

Entretanto, ao pressagiar uma sociedade humana sem classes, igualitária (portanto, sem exploradores e explorados), graças ao fim da propriedade privada dos meios de produção (embora falte a explicação de como a economia funcionaria de fato numa tal sociedade), Karl Marx, involuntariamente, assumiu ares de profeta para muitos (o caráter teleológico de seu pensamento dá margem a isso) e o comunismo foi tido por eles como a garantia de que um mundo mais justo se instalaria de um modo ou de outro. Obviamente, essa garantia não existe. Estamos aqui no terreno da utopia - o que não que dizer ilusão.

Estou entre aqueles que, apesar de compreender e aceitar a categorização vigente, não circunscreve o comunismo (e, por agregação, o socialismo) ao que foi feito na antiga União Soviética, na China (mesmo agora, após as últimas décadas de feroz competitividade ao estilo capitalista) e em outros países mundo afora. Mas, por uma questão de honestidade, não se pode evitar falar desses lugares. 

Não tenho necessidade de arrolar aqui os crimes e atrocidades cometidos por dirigentes pertencentes a essas nações (as "nações-terror", das quais Caetano Veloso fala na canção); são fatos bastante divulgados e devem ser repudiados e não repetidos. Espero, contudo, que o(a) eventual leitor(a) já tenha notado que, muitas vezes, enfatizam-se esses aspectos maléficos para que se chegue a conclusão de que o capitalismo é, por conseguinte, a melhor coisa do mundo. Pergunto: melhor para quem, cara-pálida? Possivelmente não para os quase 40 milhões de norte-americanos abaixo da linha de pobreza (cito esse fato porque geralmente os EUA são apontados como exemplo de que o capitalismo é uma maravilha pra todos...).

Se experiências colocadas em prática na União Soviética, na China e em outros países revelaram-se insatisfatórias (cruéis, em muitos casos) e distantes da expectativa de justiça abrangente que prenunciavam, não se deveria abandonar de vez a ideologia socialista/comunista?

Não. Por causa, justamente, da dimensão utópica do comunismo.

Para mim, em boa parte das ocasiões não se ganha nada dizendo que algo é utópico e, portanto, não se deve gastar tempo ou esforço com aquilo. Ao pensar num outro mundo/outra sociedade/outra forma de trabalhar/outra forma de produzir, diferentes dessa perversa corrida de ratos que é a vida de quem não detém o controle do capital e os meios de produção (ou seja, a vida da imensa maioria dos indivíduos no capitalismo), pode surgir a disposição de alterar o status quo, nem que seja só um pouco, para que as coisas se tornem - quem sabe? - mais dignas para um maior número de pessoas. Será que é possível almoçar e jantar opressão, desigualdade e conformismo todos os dias sem sequer imaginar outros modos de se viver? Vida sem utopia/não entendo que exista...

Caetano Veloso canta: "os comunistas guardavam sonhos". O verbo está no passado. O que quer dizer que não guardam mais. Nesse ponto discordo um pouco do letrista. A melhor parte desses indivíduos ainda os conserva, mesmo que não sejam capazes de fazer "com que a terra se acenda" e "desate seus nós".

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¹ BETTO, frei (Carlos Alberto Libânio Christo). Batismo de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982

² SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. No fio da navalha: ditadura, oposição e resistência. In: Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 437-466

³ Existe explicação para a falta da resistência de massa à ditadura. Entre alguns dos fatores que podem ser apontados estão: a censura generalizada, ocultando informações do público sobre ilicitudes e negociatas do governo; o enfraquecimento e mesmo a extinção dos sindicatos, além de repressão pesada aos movimentos de trabalhadores; um grande contingente populacional ainda vivendo em áreas rurais (mesmo com o aumento da urbanização desde a década de 1950) e, portanto, longe dos centros de poder e incapazes, assim, de exercer qualquer tipo de pressão sobre os autocratas. Importante mencionar também que, como observam Schwarcz e Starling, "todo governo, para se sustentar, depende de alguma forma de adesão, e o 'milagre econômico' [altas taxas de crescimento do PIB entre 1968 e 1973] ajudou a fabricar uma base de consentimento junto à população [junto à classe média, diria eu, pois os operários e os demais trabalhadores de baixa renda, com salários achatados e impedidos de reivindicar melhorias, não costumavam (e não costumam) fazer parte daquilo que se convenciona chamar de "opinião púbica"]".

BG de Hoje

Não poderia ser outro: CAETANO VELOSO, Um comunista.