sexta-feira, 19 de abril de 2024

Sobre O enterrado vivo, de Drummond

 

 

Vale a pena nos questionarmos o quanto nos aferramos a consagrar o que já é consagrado.

No campo da Literatura (e das artes em geral), tal questionamento me parece ainda mais fundamental.

O que estou tentando dizer é: reafirmar a maestria de um Guimarães Rosa ou a genialidade de uma Clarice Lispector, por exemplo, é chover no molhado. Existe uma consideração pública assentada sobre certos autores, mesmo entre a parcela de pessoas que passa longe da leitura literária.

Não me entenda mal. É sempre possível acrescentar algo à fortuna crítica de qualquer escritor/escritora e, muitas vezes, pode-se ter um entendimento mais rico de determinada obra célebre por meio de uma nova interpretação. Não é disso que estou falando.

Só não suporto a reverência oca. 
 
O que seria isso? O relato a seguir talvez ajude a explicar.
 
Para mim, é inimaginável viver sem música, embora não seja um instrumentista, muito menos saiba cantar, nem entenda nada de teoria ou composição musical. Apesar dessa paixão, tenho um posicionamento sacrílego: uma invencível má vontade com a bossa nova e, principalmente, com João Gilberto. Acho tão aporrinhante... (eu sei, eu sei, lancem-me às feras). Estou ciente, é óbvio, do respeito que cerca esse artista, bem como do tamanho de sua influência, mas não vou sair por aí soltando frases vazias tipo "o grande João Gilberto" ou "como João Gilberto era bom". Creio que sua consagração é justificada e sei que perderia meu tempo contestando sua importância como violonista e cantor; não vou, porém, fingir admiração só por ter sido um artista apreciado por muitos - fazer isso seria, da minha parte, uma reverência oca.

Voltando ao ponto anterior. Muita gente, para fazer menção a certas personalidades das letras, parece se sentir obrigada a cercar os(as) autores(as) de palavras venerandas. Isso se dá não por causa de uma estima sincera, resultante do contato (muitas vezes prolongado) com a produção textual desses(as) mesmos(as) autores(as), mas apenas como resultado da reverência oca, dado o peso cultural dessas personalidades.
 
Mal algum em louvar artistas consagrados (este blogueiro mesmo fez isso em diversas ocasiões e, desavergonhadamente, o fará mais uma vez na postagem de hoje). Penso, contudo - especialmente quando se trata de entendidos na matéria (acadêmicos, críticos, jornalistas ou opinadores com alguma visibilidade nos meios de comunicação) -, que deve-se evitar cair na armadilha de só enaltecer aquilo que já foi ou vem sendo suficientemente enaltecido, deixando de lado outros(as) escritores(as) cujos trabalhos também seriam merecedores de uma projeção maior (já escrevi sobre essa minha preocupação numa postagem em outubro de 2011).

Tá certo, admito ter acabado de propor algo que eu mesmo não costumo fazer por aqui (em minha defesa, posso dizer que sou um joão-ninguém, não é minha responsabilidade)...

Apontamentos feitos, falaremos de um poema - O enterrado vivo - cujo autor (ora, ora!) é um desses monstros sagrados da literatura brasileira: Carlos Drummond de Andrade.

O poema vem ocupando meu pensamento de uns tempos pra cá graças ao emprego de seu último verso como uma das epígrafes do livro O verão tardio, de Luiz Ruffato, discutido no blog na penúltima postagem do ano passado. Bastou ler aquele verso para me lembrar de toda a composição, um texto que, durante anos, repeti para mim mesmo como um "antiacalanto". Vou reproduzi-lo abaixo:

 

O ENTERRADO VIVO

É sempre no passado aquele orgasmo.
É sempre no presente aquele duplo.
É sempre no futuro aquele pânico.
 
É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra. 

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

 

(Utilizei a 41ª edição da Antologia poética de Drummond, publicada pela Editora Record em 1998, mas O enterrado vivo faz parte originalmente no livro Fazendeiro do ar, de 1954)

E qual é minha intenção ao discutir esse poema? Nada de mais. Por se tratar de um de meus prediletos, apenas desejo fazer com que você, eventual leitor(a), valorize-o também.

Realço dois elementos da composição: o ritmo e a seleção lexical.

Não há rimas soantes, praticamente. A métrica dos versos (com linhas de dez sílabas poéticas), a repetição da fórmula "É sempre" (ou apenas "sempre") e a organização em tercetos sustentam o ritmo; os dois últimos recursos, aliás, foram simples e eficientíssimos. Quando lido em voz alta - e nunca é demais repetir, ler poemas em voz alta é fundamental para a percepção não só do ritmo e da musicalidade, mas, igualmente, do vigor e enlevo que as palavras podem provocar -, a cadência gera sentido tanto quanto aquilo que é expresso verbalmente: a desolação d'O enterrado vivo emana também de sua sonoridade. (NOTA 1: Vale mencionar que, junto a esse poema, no volume em que foi publicado pela primeira vez, está presente No exemplar de um velho livro, outro texto todo em tercetos. Há também sonetos - O quarto em desordem e A distribuição do tempo - , levando-me a supor que Drummond estava particularmente inclinado para as formas fixas e os escritos "mais arrumadinhos" naquele período)

As palavras selecionadas, quase todas de uso corrente no nosso vocabulário, ganham nova dimensão graças às combinações feitas pelo poeta. E mesmo as mais raras, "distrato" e "estampilha", não estão fora de lugar. É na segunda estrofe que a sonoridade e o ajustamento de palavras atingem seu ponto alto: "É sempre no meu peito aquela garra./É sempre no meu tédio aquele aceno./É sempre no meu sono aquela guerra". 

É um texto poético magnífico. Chega a me exasperar, de tão bom. 

Nesse momento, porém, acho oportuno mencionar um trecho de (raríssima) entrevista da poeta Maria do Carmo Ferreira, registrada em 2004 ¹ .

"Dois fatos me marcaram nessa época [anos 1960]: meu professor de Literatura Espanhola, José Carlos Lisboa, apesar de muito rigoroso e exigente, veio me cumprimentar pelo poema saído na revista Mural. Ruborizei de vergonha e até pedi desculpa, não sabendo onde esconder minha cara. E veio a primeira lição: 'Carminha, não há poetas perfeitos, quando muito há um ou outro poema perfeito'. Sempre penso nisso quando leio (ou releio) os meus poetas prediletos, onde encontro de tudo: verborragia, poemas circunstanciais, quando não excesso de rimas/ritmos/decalques, enfim, a gente está sempre separando o joio do trigo, mesmo nos que ficaram para sempre, nos clássicos da língua".

(NOTA 2: Caso o(a) eventual leitor(a) nunca tenha ouvido falar em Maria do Carmo Ferreira, sugiro essa reportagem de 2021 da revista piauí, relatando, entre outras coisas, as primeiras publicações da obra da escritora em livro, sendo ela já octogenária)

"Não há poetas perfeitos, quando muito há um ou outro poema perfeito". Isso vale também para Carlos Drummond de Andrade, que elaborou várias composições extraordinárias, mas não o tempo todo. 

Por isso valorizo ainda mais O enterrado vivo, uma dessas criações notáveis. É perfeito, digo sem hesitação.

Um poema que me atinge fortemente, sendo eu alguém habitualmente interessado nos modos de se tentar expressar a amargura existencial. 

"Sempre dentro de mim meu inimigo"... como isso é cortante...

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¹ MARQUES, Fabrício. Dez conversas -  diálogos com poetas contemporâneos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2004.

BG de Hoje

Já discuti a questão poema/letra de música em algumas postagens do blog (por exemplo, aqui). Uma letra de música, antes de qualquer outra coisa, deve contribuir "para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa", como defende Antonio Cicero. Diferentemente do poema, que tem um fim em si mesmo e "se realiza quando é lido", a letra de música existe para acompanhar uma canção. Não é muito frequente, a meu ver, que uma letra de música mantenha sua vivacidade ao ser lida como um poema. Nada de mal nisso. Como dito antes, se ela contribui para uma boa canção, isso é o que importa. Quase nada, parceria da poeta ALICE RUIZZECA BALEIRO seria uma espécie de "melhor dos dois mundos". Um lindo poema e uma amostra de como uma boa letra de canção popular deveria ser.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Luxo e inércia


É, voltei a escrever.

Permaneço péssimo, mas não quero falar disso.


Há algumas semanas soube que o Greg News acabou - para usar um irritante termo da moda, foi "descontinuado" pela HBO. 

Pena. Era uma atração televisiva muito acima da média.

Seu mérito não estava na originalidade - claramente tratava-se de uma versão nacional do Last Week Tonight (John Oliver pelo menos continua na grade da emissora norte-americana). A fusão de humor e jornalismo é algo que muitos já vêm fazendo há algum tempo, com bons resultados (destaco, além do citado John Oliver, o pioneiro Daily Show, que eu só comecei a acompanhar no período ancorado por Trevor Noah). O programa apresentado por Gregório Duvivier apareceu como um anteparo, na época em que tinha mesmo que aparecer, quando parte significativa da sociedade brasileira mergulhou de cabeça num reacionarismo obscurantista de viés religioso (evangélico), permitindo a ascensão de elementos da extrema direita e de gangsters da política, num período em que os fluxos de informação/comunicação já estavam irreversivelmente contaminados por aquilo que recebeu o nome genérico de fake news. Além disso, o artista carioca é um ótimo ator/comediante e a redação/produção do programa costumava acertar na maior parte das vezes ¹.

Na última temporada, um dos episódios que mais apreciei foi o intitulado Luxo. Assisti de novo outro dia. E me veio a vontade de abordá-lo aqui.

"Os bilionários de hoje em dia" - diz o apresentador em determinado momento do programa - "encontraram uma forma de dar a quase todo mundo a sensação de que o luxo pode ser acessível ou, no mínimo, emulável. Logo, é melhor tentar atimgi-lo do que cortar a cabeça de quem tem acesso a ele".

O destino que os revolucionários franceses deram a membros da nobreza no final do século XVIII havia sido mencionado momentos antes. Por outro lado, como também mostrado no programa, os ultraprivilegiados da atualidade, ao que parece, não correm qualquer risco de serem guilhotinados. Muito pelo contrário.

Destaca-se então o megabilionário Bernard Arnault (o homem mais rico do planeta, que havia saído do topo da lista da Forbes, mas recuperou a posição recentemente). Mostra-se um trecho de entrevista em que o nababo afirma que seu maior objetivo é fazer com que a "desejabilidade" das marcas das quais é proprietário persista por décadas. Duvivier assinala que esta é "a característica central do mercado de luxo".

"Ele não está anunciando qualidade, nem dedicação do artesão, nem tradição,[nem]expressão artística. Ele está oferecendo desejabilidade. Ou seja, o que você compra num produto de luxo não é algo que você deseja. É algo que outras pessoas desejam, mas não podem ter".

Só uma parte ínfima (ínfima mesmo) dos seres humanos tem acesso a tudo que a grana pode comprar. A imensa maioria da população mundial dá duro para "só" conseguir botar comida na mesa e se abrigar dignamente sob um teto. Isso sem mencionar a outra enorme quantidade de pessoas que simplesmente não sabe se terá alimentação suficiente no outro dia.

Entretanto - e não me canso de ficar espantado com isso -, vejo vários homens e mulheres, pobres como eu (alguns até menos remediados), que julgam estar mais próximos dos ricaços, em relação ao status socioeconômico e ao "estilo de vida", do que de indivíduos ainda mais despossuídos. Ingenuamente, pensam ser apenas uma questão de esforço pessoal: basta trabalharem e se dedicarem muito que um dia estarão com a burra cheia, como se dizia em priscas eras, quando é muito mais provável testemunharem um processo de empobrecimento individual e familiar.

Uma dupla de alemães barbudos do século XIX formulou num de seus escritos algo mais ou menos assim: as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes dentro da sociedade com um todo. Este postulado marxiano (ou marxista, nunca sei direito como usar esses dois adjetivos) ajuda a explicar por que os verdadeiros controladores do capital (ou seja, grandes proprietários dos meios de produção de bens e serviços ou, como é cada vez mais preponderante desde o final do século XX, grandes especuladores das bolsas de valores, banqueiros e outros rentistas de mesmo calibre) têm seus princípios e interesses defendidos por tantas pessoas que são invariavelmente prejudicadas quando estes princípios e interesses prevalecem (e que nunca, NUNCA, chegarão nem perto de entrar no clube desses verdadeiros controladores do capital).

Como não poderia deixar de ser, as mídias (redes) sociais e seus influencers têm um destacado papel nisso tudo, contribuindo para nos adestrar a "admirar jato [particular, feito para transportar uns poucos ricaços com um custo ambiental pesado] como se fosse símbolo de sucesso, e não de desprezo pelo resto da humanidade".

Voltemos a Bernard Arnault. 

Uma pessoa comum, com renda pouco significativa, muito dificilmente poderá comprar um colar de ouro branco e diamantes da Bulgari ou uma bolsa Louis Vuitton - duas marcas de propriedade do bilionário francês. Mas talvez consiga adquirir um perfume mais em conta da Sephora - outra marca de Arnault - para fazer inveja naquele parente que veio fazer uma visita. O consumo conspícuo (ou pelo menos uma microrrepresentação dele) parece agora estar atravessando todas as classes sociais. Os direitos trabalhistas estão sendo pulverizados, a instabilidade e a precariedade de grande parte das ocupações remuneradas hoje existentes são gritantes, poucos trabalhadores conseguem adquirir um imóvel próprio, mas é possível fingir ser bem sucedido com um frasquinho Christian Dior no armário. "Quando a ilusão de luxo é democratizada, a gente perde a capacidade de odiar o luxo obsceno de verdade", bem observa Duvivier.

É tarefa das mais árduas (e arriscadas) desmontar a armadilha ideológica do capitalismo, armadilha esta que faz os indivíduos subjugados pelo poder econômico ficarem ao lado daqueles que os estão subjugando.

Há alguns anos, li um artigo do sociólogo Michael Löwy, disponível no Blog da Editora Boitempo ² , intitulado O capitalismo como religião. Trata-se de comentários feitos a partir de várias anotações reunidas, sob o mesmo título do artigo, em algumas páginas até então inéditas de Walter Benjamin. 

Em suas observações, o pensador alemão não perde de vista o célebre A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicado por Max Weber em 1904/05: "demonstrar a estrutura religiosa do capitalismo - isto é, demonstrar que ele é não somente uma formação condicionada pela religião, como pensa Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso - nos levará ainda hoje pelos meandros de uma polêmica universal desmedida".

A estrutura religiosa do capitalismo, de acordo com Benjamin, fundamenta-se no culto. O culto é permanente. O culto produz culpa.

"Portanto" - escreve Löwy -, "as práticas utilitárias do capitalismo - investimento do capital, especulações, operações financeiras, manobras bolsistas, compra e venda de mercadorias - são equivalentes a um culto religioso. O capitalismo não exige a adesão a um credo, a uma doutrina ou a uma 'teologia', o que conta são as ações, que representam, por sua dinâmica social, práticas cultuais".

Qual seria o objeto ou a entidade a se adorar nesse culto? O dinheiro seria a resposta mais evidente (e o articulista aponta uma citação que talvez viesse a ser empregada por Benjamin em sua versão final do texto, na qual há a comparação entre o dinheiro e a figura divina). Mas este blogueiro prefere indicar o Mercado, esse termo que a imprensa corporativa hegemônica usa e abusa para criticar determinadas posições que governantes podem tomar mas que desagradariam a classe dominante: "o mercado reagiu mal à declaração do presidente"; "a fala da ministra assustou o mercado". Essas mesmas empresas de mídia, para tentar gerar um clima de otimismo, às vezes também soltam frases do tipo "o mercado está animado com os recentes índices da bolsa" ou "o governo deixou o mercado satisfeito com os cortes no orçamento", como se isso significasse um grande benefício para a maioria da população e não mais oportunidades de enriquecimento para grupos bem restritos. 

Divindade absoluta e infalível, há um temor, disseminado em toda a sociedade, dos humores do Mercado...

Dissemos acima que o culto também é permanente. Michael Löwy comenta:

"Sem descanso, sem trégua e sem piedade: a ideia de Weber é retomada por Benjamin, quase literalmente [...]. Portanto, na religião capitalista, cada dia vê a mobilização da 'pompa sagrada', isto é, os rituais na bolsa ou na fábrica, enquanto os adoradores seguem, com angústia e uma 'extrema tensão', a subida ou a descida das cotações das ações'. [...] As práticas capitalistas não conhecem pausa, elas dominam a vida dos indivíduos da manhã à noite, da primavera ao inverno, do berço ao túmulo. Como bem observa Burkhardt Lindner, o fragmento [escrito por Walter Benjamin] empresta de Weber o conceito do capitalismo como sistema dinâmico, em expansão global, impossível de deter e do qual não podemos escapar".

Por fim, a culpa. Aqui não há expiação: é preciso fazer a culpa "entrar à força na consciência". Vale uma breve digressão semântica (que está no artigo de Löwy).

Em alemão, a palavra schuld pode significar tanto "dívida" quanto "culpa". 

"Benjamin evoca, nesse contexto o que chama de 'ambiguidade da palavra Schuld' [...]. Segundo Burkhard Lindner, a perspectiva histórica do fragmento baseia-se na premissa de que não podemos separar, no sistema da religião capitalista, a 'culpa mítica' da dívida econômica.

Encontramos em Max Weber dois raciocínios análogos, que também jogam com os dois sentidos de 'dever': para o burguês puritano, 'o que consagramos a fins 'pessoais' é 'roubado' do serviço à glória de Deus'; tornamo-nos assim ao mesmo tempo culpados e 'endividados' em relação à Deus. 'A ideia de que o homem tem 'deveres' para com as posses que lhe foram confiadas e às quais ele está subordinado como um intendente devotado (...) pesa sobre sua vida com todo o seu peso gélido. Quanto mais aumentam as posses, mais pesado torna-se o sentimento de responsabilidade (...) que o obriga, para a glória de Deus (...) a aumentá-las por meio de um trabalho sem descanso'. A expressão de Benjamin 'fazer a culpa entrar à força na consciência' corresponde bem às práticas puritanas/capitalistas analisadas por Weber".

Sob a ótica capitalista, os pobres são culpados por sua situação difícil (não se esforçaram o suficiente, não sabem economizar ou investir, etc.). A vontade de Deus determina o lugar de cada um, do mesmo modo que a vontade do mercado. O resultado desse processo de culpabilização é o desespero.

"De Weber a Benjamin nos encontramos em um mesmo campo semântico, que descreve a lógica impiedosa do sistema capitalista. Mas por que ele é produtor de desespero?

Sendo a 'culpa' dos humanos, seu endividamento para com o capital, perpétuo e crescente, nenhuma esperança de expiação é permitida. O capitalista deve constantemente aumentar e ampliar seu capital, sob pena de desaparecer diante de seus concorrentes, e o pobre deve [tomar emprestado dinheiro] para pagar suas dívidas.

Segundo a religião do capital, a única salvação reside na intensificação do sistema, na expansão capitalista, no acúmulo de mercadorias, mas isso só faz agravar o desespero. É o que parece sugerir Benjamin com a fórmula que faz do desespero um estado religioso do mundo 'do qual se deveria esperar a salvação'".

. . . . . .  .

 

A concentração de renda é um fenômeno inegável. As indecentes disparidades entre os mais ricos e os mais pobres não são difíceis de se constatar. Poucos milhares injetando rios de dinheiro nas coisas mais fúteis e supérfluas enquanto milhões mal conseguem sobreviver com um mínimo de dignidade.

Mas por que, a meu ver, há tão pouca indignação com tal estado de coisas? Pior, por que não vemos grandes movimentos de massa cheios de raiva - sim, raiva - contra essa desigualdade nojenta? Por que a maior parte de nós adotou a inércia como comportamento padrão em relação às mudanças sociais que deveriam acontecer?

A sede por ostentação - que parece estar atingindo a todos, seja o bilionário que não trabalha, seja o assalariado que precisa se virar para manter o cartão de crédito em dia - e a concepção quase religiosa do capitalismo que perpassa a sociedade (e sabe-se como é difícil contestar e vencer uma religião) talvez sejam bons pontos de partida para entender essa inércia.

Vou tentar me aprofundar nessas questões assim que for possível e produzir um outro texto.

. . . . . . . 

Creio que o(a) eventual leitor(a) tomou conhecimento da gravíssima colisão, ocorrida em 31 de março deste ano, que resultou na morte de um motorista de aplicativo em São Paulo, após seu carro ser atingido violentamente por outro veículo, um Porsche (cujo valor ultrapassava um milhão de reais). Requereu-se a prisão preventiva do condutor que dirigia o Porsche, mas a Justiça de São Paulo negou a requisição (pelo menos até a data em que esta postagem foi publicada). O cara segue em liberdade, sem qualquer aborrecimento e, sabendo como são as coisas nesse poço de desigualdade chamado Brasil, prevejo que ele não passará nem um dia na cadeia.

O jornalista Leonardo Sakamoto escreveu no UOL um excelente artigo sobre esse caso: Com assassinato e fuga, Porsche vira licença para rico matar em São Paulo.

Escreve Sakamoto: "O caso se desenha como o puro suco de Brasil. Imagine se ao invés de um herdeiro dirigindo um Porsche fosse um rapaz pobre, negro retinto, em um glorioso Fiat Uno que matasse alguém tirando um racha no Capão Redondo? Se a mãe do mancebo aparecesse e dissesse que iria levar o filho para botar um curativo [como fez a mãe do playboy do Porsche] seria fuzilada pelos agentes de segurança só com o olhar.

[...]

Sim, a tradicional carteirada foi substituída pela ostentação de riqueza".

Não existe enraizamento do conceito de cidadania. Não existe a aceitação e o respeito ao preceito de que todos são iguais perante à lei.

"[...] a desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres.

Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando a violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento que vivemos hoje.

A desigualdade social, que seria motivo de vergonha em qualquer lugar civilizado,  aqui é razão de orgulho. O importante para uma parte da população, tanto a que está no topo quanto a que sonha em estar lá, não é reduzir a diferença, mas garantir que ela seja devidamente glamourizada e a ascenção social, mitificada. Assim o indivíduo passa a não desejar justiça social coletiva, mas um lugar ao sol para si mesmo.

Ou seja, o desejo não é um país em que os donos de Porsche obedecem às mesmas regras que os donos de Uno. O desejo é ter um Porsche".

 

Mais tarde vou encher a cara e tentar dormir o máximo que conseguir.

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¹ Como escrevi acima, o grupo de redatores/produtores fazia um ótimo trabalho, mas não acertava sempre. Pisaram na bola, por exemplo, no episódio que tinha como tema central a psicanálise e noutro, intitulado Filhos. Talvez escreva sobre isso noutra oportunidade.

² LÖWY, Michael. O capitalismo como religião. Blog da Boitempo, São Paulo, 8 de ago. de 2013. Disponível em <https://blogdaboitempo.com.br/2013/08/08/o-capitalismo-como-religiao/>. Acesso em 06/03/2024

BG de Hoje

Eu gosto muito dessa faixa: Steambreather, da banda norte-americana MASTODON. As transições de uma seção musical para outra são excelentes. "I wonder who I am/Reflections offer nothing/I wonder where I stand/I'm afraid of myself": tenho cantarolado isso direto.
 

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Acabou-se?

Terei que parar mais uma vez.

Não estou aguentando. Me sinto morto, por dentro e por fora.

Tentarei acumular algum ânimo para voltar, quem sabe, no ano que vem.

Até um dia, eventual leitor(a).

sábado, 30 de setembro de 2023

Os "defensores da família" (e primeiras impressões sobre O verão tardio, de Luiz Ruffato)

 

Ah, quanta merda se proclama em nome da família!

Se eu pudesse acrescentar algo à conhecidíssima frase atribuída a Samuel Johnson, seria: "O patriotismo é o último refúgio de um canalha [, porque a família, possivelmente, está entre os primeiros]". 

Os discursos conservadores mais extremados, vira e mexe, lançam mão do termo família para sustentar posicionamentos (e atos) excludentes, discriminatórios e que não contribuem para a emancipação de ninguém. Proteger a família é o subterfúgio mais usado por velhacos da política e líderes de igrejas caça-níqueis (entre outros pilantras) na hora de atormentar pessoas LGBTQIA+, na hora de enfraquecer a laicidade do Estado, na hora de negar os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, na hora de obstruir ações educativas que discutam questões de gênero e a estrutura patriarcal da sociedade.

Têm amantes e filhos desassistidos fora do casamento, mas batem no peito moralista para dizer que "só a família tradicional é que deve existir". Condenam a descriminalização da maconha "porque vai acabar com as famílias", enquanto lucram secretamente com as operações de milícias envolvidas diretamente com o narcotráfico.

"Valores familiares" - uma noção bastante discutível (para não dizer completamente vaga) - são invocados por esses indivíduos, a torto e a direito, para justificar opressões diversas.

O que escrevi até agora não foi um libelo contra a família. Um número imenso de pessoas só consegue sobreviver neste mundo desgraçado graças ao apoio dos arranjos familiares aos quais se vinculam. Não por acaso, aliás, costumam estar fora do enquadramento empregado pelos reacionários hipócritas e oportunistas, quando mascaram sua intolerância e venalidade através do discurso falsamente pró-família, porque esses arranjos não são compostos por papai, mamãe e filhinhos de comercial de margarina.

Contudo, embora sejam importantes pontos de apoio e eixos que sustêm muitas pessoas, outros tantos não encontram amparo (vai além de grana, a despeito da importância de se ter dinheiro) ou não mais preservam o sentimento de pertencimento nas famílias que lhes couberam. Foi o que ficou em mim ao acompanhar os últimos seis dias do personagem-narrador Oséias em O verão tardio, romance de Luiz Ruffato publicado em 2019.

Após muitos anos, de volta à cidade de Cataguases, sem saber o que esperar, mas certo de que naquele momento encontram-se "enosados os fios que atam o começo e o fim" ¹, Oséias busca, talvez, um acerto ou, quem sabe, uma reconciliação com o passado. 

O primeiro contato com um conhecido dos tempos de escola já é agressivo e intimidador. Não, definitivamente não será uma volta feliz. "A cidade está feia, suja, fedendo a mijo. O lixo se espalha pelos meios-fios. Mendigos e camelôs disputam os passantes. Nos botequins, bares e restaurantes, televisores ligados hipnotizam os clientes". A descrição vale para qualquer metrópole brasileira e é de se notar que, em breve, cidades do interior idílicas e limpinhas (afinal, Cataguases não passsa de 80.000 habitantes) serão apenas lenda.

No reencontro com Marilda, a ex-namorada da adolescência (que acabou se casando com um homem brutal), ouve a frase: "Às vezes penso que a vida é puro arrependimento...". Divorciado e sem contato com o filho único, viciado em drogas, Oséias se questiona:

"Em que momento as coisas começaram a desandar? Por que atalhos se meteram minhas pernas, sem que eu desse conta? Este desconforto, sempre... E eu tinha alguma expectativa... No entanto, nem essa, pouca, se cumpriu".

"Caminho sem retorno, erros que levam a outros erros, e cinquenta e três anos pelo ralo. É isso a vida?"

Ao rever as irmãs e o irmão, cada um parecendo viver em ilhas só deles, a constatação de um afastamento irreversível. O verão tardio focaliza uma família, mas o individualismo excessivo e a incapacidade de ser solidário (não só no sentido altruísta do termo) são marcas das sociedades contemporâneas, tudo sendo mais dramático ainda em países de tanta desigualdade - e em um evidente processo de clivagem ideológica e cultural - como o Brasil.


P.S: Ontem à noite, quando já tinha finalizado a redação desta postagem, acabei me deparando com o ótimo artigo Descaminhos e desesperança: o Brasil de Luiz Ruffato em O verão tardio, de Enio Passiani. Se voltar a escrever sobre este romance, certamente discutirei esse estudo.

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¹ RUFFATO, Luiz. O verão tardio. São Paulo: Companhia das Letras, 2019

BG de Hoje

Parece que, no estágio socioeconômico e político em que nos encontramos, a única coisa que os indivíduos comuns podem fazer é resistir. Não propor algo realmente novo, não partir para o enfrentamento do que (e de quem) nos está fodendo, não derrubar estruturas que precisam ser derrubadas: o máximo que conseguimos é oferecer resistência. Só. Isso é bem triste. De todo modo, adoro essa canção do duo CALLE 13: El Aguante.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Ensaio sobre a cegueira: o horror como matéria de reflexão

 

"Vamos endoidecer de horror". - pensamento do médico, dias após a quarentena e a reclusão.


"Sentada, lúcida, a mulher do médico olhava as camas, os vultos sombrios, a palidez fixa de um rosto, um braço que se moveu a sonhar. Perguntava-se se alguma vez chegaria a cegar como eles, que razões inexplicáveis a teriam preservado até agora".

Ensaio sobre a cegueira - José Saramago

 


Não consigo rever Amistad, de Steven Spielberg.

Considero um dos grandes trabalhos do cineasta norte-americano, não me entenda mal, mas há aquela sequência do testemunho de Cinqué (interpretado pelo sempre ótimo Djimon Hounsou) no tribunal, descrevendo, com a ajuda do tradutor, a horripilante travessia dele e dos outros homens e mulheres escravizados, dentro do navio do qual provém o título do filme. O relato é transformado em imagens (afinal, trata-se de uma narrativa audiovisual) fortes e impactantes.

Eu chorei. Simplesmente não conseguiria assistir de novo.

Recuso-me a rever Despedida em Las Vegas. A cena em que a personagem interpretada por Elisabeth Shue é brutalizada e estuprada tornou-se, na minha opinião, num dos momentos mais atrozes do cinema. Intolerável. NOTA: No livro de John O'Brien (do qual o filme é uma adaptação), o episódio é ainda mais torturante e doloroso, dizem. Nunca o li.

Como terá sido durante a gravação? Como terá reagido a equipe presente - operadores de câmera, diretores, assistentes, além dos atores diretamente envolvidos?

Sabemos que se trata de um artifício - a violência e a crueldade foram simuladas - ; não obstante, não é possível passar por cenas como essas incólume, sem ficar agoniado ou pelo menos experimentar algum desconforto (eu não conseguiria). Estou falando do ponto de vista do espectador, mas creio que deve ter sido angustioso, em alguma medida, também para os que tornaram possíveis as cenas.

Não deve ser "de boa" representar e expor o horror.

Terminei recentemente minha segunda leitura do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. É um texto que provoca grande aflição (por isso demorei mais de vinte anos para decidir voltar a ele). Nos seus Cadernos de Lanzarote (reunião de diários escritos entre 1993 e 1998), o autor registrou ¹:

"Lutei, lutei muito, só eu sei quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que toda a hora se me iam atravessando na história e me paralisavam. Como se isso não fosse o bastante, desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais".

Saramago levou cerca de três anos para terminar o livro e, como se lê acima, não são apenas os que o leram que se atormentaram.

É uma narrativa alegórica, em que se tenta dizer ao leitor - registra-se nos Cadernos de Lanzarote -:

"que a vida que vivemos não se rege pela racionalidade, que estamos usando a razão contra a razão, contra a própria vida. Tentei dizer que a razão não deve separar-se nunca do respeito humano, que a solidariedade não deve ser a exceção, mas a regra. Tentei dizer que a razão está a comportar-se como uma razão cega que não sabe aonde vai nem quer sabê-lo. Tentei dizer que ainda nos falta muito caminho para tentar chegar a ser autenticamente humanos e que não seja boa a direção em que vamos".

O pessimismo do escritor elevou-se à enésima potência no Ensaio sobre a cegueira. Logo no segundo capítulo, antes mesmo do confinamento e da propagação da cegueira branca, o médico constata: "É desta massa de que somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade" ². O evento catastrófico em torno do qual a história se constrói faz emergir a monstruosidade latente em nós, seres humanos, assim como, em poucos dias de flagelo, volvemos ao bicho que nunca deixamos de ser. O estilo de Saramago - os parágrafos espessos e as circunvoluções em torno de uma mesma expressão ou frase - manteve-se inalterado ao contar essa história de horror, única do gênero na obra do artista português.

A abjeção a que foram condenados os cegos dentro do romance nos martiriza, mas pensamos pouco na omissão e na insensibilidade dos que continuaram a enxergar, pelo menos por um pouco mais de tempo do que os outros. "O medo cega", diz a rapariga dos óculos escuros em determinado momento e outro personagem secunda: "São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos". 

Já que mencionei a rapariga dos óculos escuros (é dela também a frase mais famosa do livro: "Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos"), pode-se afirmar sem hesitação que o Ensaio... deve a maior parte de sua pujança às personagens femininas (as mulheres, aliás, é que foram supliciadas para que todos pudessem obter comida no local de confinamento, com a aceitação covarde dos homens "bons", inclusive...). E nenhuma personagem é tão grandiosa (como criação artística, mas também no sentido moral, ético) como a mulher do médico, a testemunha ocular de toda aquela desgraça, literalmente.

Num dos capítulos finais, lemos o seguinte: 

"As mulheres ressuscitam umas nas outras, as honradas ressuscitam nas putas, as putas nas honradas, disse a rapariga dos óculos escuros. Depois disto houve um grande silêncio, para as mulheres ficara tudo dito, os homens teriam de procurar as palavras, e de antemão sabiam que não seriam capazes de encontrá-las".

Um modo de dizer que as mulheres não se restringem (ou não deveriam se restringir) a papéis previamente delimitados ou impostos por sociedades cegas, adoecidas. 

. . . . . . . 

Comecei a postagem mencionando filmes. O(a) eventual leitor(a) certamente sabe que o Ensaio sobre a cegueira também foi adaptado para o cinema e lançado em 2008. O brasileiro Fernando Meirelles dirigiu.

Não sei se é tão dilacerante como o livro: ainda não assisti.

Será que eu aguentaria um outro enfoque para todo aquele horror do texto original?

______________

¹ Essa declaração e outras foram também reproduzidas em matéria publicada no jornal Estado de Minas no ano passado, assinada por Paulo Nogueira, a respeito da nova edição do Ensaio sobre a cegueira, marcando o centenário de nascimento do escritor: Saramago: personagem assumiu controle de 'Ensaio sobre a cegueira'. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2022/11/25/interna_pensar,1425460/saramago-personagem-assumiu-controle-de-ensaio-sobre-a-cegueira.shtml>. Acesso em: 06/09/2023

² SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

BG de Hoje

Os textos da seção BG não costumam ser longos: só que hoje tenho muito para falar. Na época em que a cena grunge se estabeleceu, eu fiquei muito interessado naquele som. Não só o de artistas provenientes de Seattle e redondezas, mas o de outros grupos assemelhados, que despontaram no mesmo período: por exemplo, o L7 (que veio de Los Angeles). Quando comprei o disco Bricks Are Heavy (lançado em 1992 e, comercialmente falando, o mais bem sucedido da carreira delas), ouvia sem parar. A colaboração do produtor Butch Vig ajuda a explicar o parentesco grunge. Quase duas décadas depois, busquei conhecer outras gravações da banda, levando-me ao disco anterior, Smell The Magic (de 1990), que teve Jack Endino, outro lendário produtor musical daquela cena, auxiliando nos trabalhos (Endino, vale acrescentar, foi parceiro dos Titãs em Titanomaquia). Desse álbum, Smell The Magic, destaco a canção Fast And Frightening, para mostrar como as raízes do L7 estão no punk, com um show à parte da baterista Demetra "Dee" Plakas.

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Falou e disse...

 "[...] Certas associações hoje são fáceis - e isso são vantagens que vieram com a era digital. Mas não quer dizer que vá fazer com que a lógica solidária ou colaborativa suplante a lógica acumulativa. [...] Então a lógica da remuneração do capital vai prevalecer e seguir o curso que as coisas vêm seguindo. O que quero dizer é: não é a tecnologia que muda a sociedade. Nunca foi. A sociedade, ou os movimentos sociais ou as relações sociais, é o que dão sentido social e histórico para a tecnologia, e não o contrário. Você pode falar de uma razão da técnica, e existe sentido nisso. Podemos até dizer que a técnica é uma língua (tudo com certas relativizações), mas a técnica por si estabelece mais diferenças, mais concentração e vira o modo próprio que se identifica profundamente com a natureza do capital, e não com uma natureza solidária ou o que se quer que se queira". *

* Afirmações do jornalista e professor da ECA-USP Eugênio BUCCI, publicadas em entrevista reproduzida no livro Cultura digital.br, organizado por Rodrigo Savazoni e Sergio Cohn (Editora Beco do Azougue, 2009). A entrevista de Bucci faz parte da seção Comunicação digital e as afirmações estão nas páginas 206 e 207.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Quatro poemas de Mariana Ianelli


Insertado em minha cabeça, há alguns dias, está o início de um texto de Mariana Ianelli: "Agora o que me importa /é a nota que desafina o coro/o casaco mal talhado/que ficou sobrando nos ombros". Os versos fazem parte do poema A marca humana, do livro Vida dupla, lançado em 2022 (integrante da coleção Madrinha Lua, da Editora Peirópolis). Se verdadeiramente humanos, carregamos uma "célula de desordem"; carregamos "o cômico e o patético enleados", como se lê noutras passagens desse mesmo ótimo poema.  

Na postagem de hoje, entretanto, intenciono falar (brevemente) sobre outros escritos da poeta e cronista paulistana, presentes em Treva Alvorada, publicado em 2011 ¹, livro que passou pelas minhas mãos há alguns anos e que tive a oportunidade de reler na última semana.

Destacarei os quatro poemas de que gosto mais.

Vamos ao primeiro:

FLOR DO OFÍCIO

Emboscada no silêncio
Eu preparo a rosa inútil
Com as horas que salvei 
Do desperdício.

Feito um verme
Decompondo ceticismo
Em força indômita,
Preparo e deito essa flor
No teu caminho
Para quando o teu corpo
(Tão quebrantável quanto o meu)
For sozinho pastorear
Seus demônios no vazio.

Quase dois mil anos
Guardado no deserto
Um salmo esperou
Para recobrar sua melodia -
E eu não te esperaria?

Até onde entendo, a poesia de Ianelli não é especialmente musical, mas esse texto é dos mais rítmicos entre todos os que conheço da autora (talvez por isso, na composição, a presença do vocábulo melodia). Vale notar que as alusões bíblicas são uma constante em sua obra.

Passemos ao segundo:

VIGÍLIA

Esta noite
Nem o gozo do pensamento
Te entretém.

Teu sentimento
É todo um espanto seco
Como se te mirassem
Os olhos da inocência
E desta vez não te acudisse
O desprezo.

Te comove
Teu sangue trabalhando
Em silêncio,
Resvalar te comove,
Pode ser teu ato extremo.

Nada se põe entre esta noite
E a perfeição
Da tua órbita no tempo.

Só tuas mãos ainda servem
De instrumento,
E elas se deitam.
Podem alcançar adiante,
Escolhem alcançar
A transparência.

A segunda estrofe sobressai: "Teu sentimento/É todo um espanto seco/como se te mirassem/Os olhos da inocência/E desta vez não te acudisse/O desprezo". É formidável a descrição do estado de espírito deste que se encontra em vigília.

O terceiro poema é o mais "narrativo" do livro, penso eu:

OS IMPUROS

A peste chegando
E não soubemos ver.

Fomos padecendo naturalmente,
Uma figueira de pouca sombra,
O tronco pesado de segundas-feiras.

Por sete dias a casa vedada,
Tentamos a paciência:
Não disparatar,
Não bulir com o silêncio,
Reconsiderar as coisas pequenas.

Mas a peste vencendo,
Comendo as paredes,
Uma vergonha 
Que não imaginávamos
Tão prestimosa, tão perfeita,
Chancelada pelo tempo.

Arrasamos a casa.
O chão nós arrancamos fora,
O grão de onde manava a doença.
Não sentimos pena.

Matar, nós matamos
Num sopro de gentileza.
Não é possível decifrar a referencialidade - afinal, o pode ser a peste? -; isso não acarreta, todavia, nenhuma perda na intensidade poética.

E, por fim, meu preferido:

MEMORANDO

Não há grandes notícias.

Uma torre desapareceu,
O inverno expandiu-se
E a esperança ainda rói
O fundo de uma caixa
Procurando saída.

Com esculpido esmero
Vai se acabando uma família.

Um gesto qualquer se repete
No ensaio de ser abolido,
Remediar, abafar, corrigir,
Nada lembra o que antes foi só
Generosidade de coisa viva.

Não convém
O alvoroço dos pássaros,
A revanche da galhardia.
É inútil desafiar o pó
E, contudo, desafia-se.

Fala-se de finitude, mas também de algo que me é estranho: fé (não necessariamente religiosa, embora possa ser, nesse caso). 


_______________
¹ IANELLI, Mariana. Treva Alvorada. São Paulo: Iluminuras, 2011.

BG de Hoje
 
Esta é provavelmente a canção que eu mais tenho cantarolado em casa, distraidamente nos últimos dias, enquanto tento fazer alguma outra coisa: Cordão da insônia, composição bacana da CÉU e do Beto Villares.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Barb e os tiozões do rock

Não aguento mais ouvir Sultans of Swing. Ou Smoke on the Water. Ou Another Brick in the Wall.

Hotel California, então, me faz querer sair correndo em desespero.

Eu já curti o som do Dire Straits. Não tenho nada contra o Deep Purple. Pink Floyd está entre as minhas 20 bandas preferidas. E embora não tenha interesse nos Eagles, reconheço que o maior hit deles, apesar de hoje me dar nos nervos, é uma grande canção.

Também não é por causa da alegação frouxa "isso é música velha!" (a ideia de que criações artísticas teriam um prazo de validade me parece sem cabimento). 

Minha ojeriza é pela repetição, ad nauseam, dessas e outras faixas por tiozões do rock nos mais diferentes locais e ocasiões.

Não me entenda mal: eu já fui e ainda me comporto, ocasionalmente (é difícil abandonar velhos hábitos), como um tiozão do rock. Não seria honesto cuspir no prato em que já comi (e ainda como, às vezes) sem admitir isso primeiro.

Gosto de rock (está até no esboço biográfico). A maioria dos vinis e CDs que já comprei nesta minha vidinha inútil é de artistas pertencentes a essa vertente musical. Se o(a) eventual leitor(a) for conferir minhas playlists no Youtube Music Premium (não aguentava mais as "travadas" de execução do Spotify), verá que a maioria das faixas é pauleira (sempre gostei dessa gíria ultrapassada: pauleira). 

Mas, desde que comecei a escutar música de forma realmente atenta e dedicada, o rock - seus subgêneros e derivações - nunca monopolizou, ainda bem, minha curiosidade e meu interesse.

Acho que preciso falar um pouco do convívio familiar, de quando eu era garoto até o início da adolescência. O(a) eventual leitor(a) há de me perdoar a fatuidade.

Além de meus pais, morava com três irmãs e dois irmãos - elas e eles mais velhos do que eu, cada um com suas preferências. Apesar de sermos pobres, sempre era possível comprar um disco ou outro, uma fita cassete ou outra. Além disso, as rádios, décadas atrás, davam preferência à programação musical, ao invés do jornalismo ou a falação ininterrupta de hoje (felizmente, estações evangélicas/de igreja eram raríssimas). Em casa ouvíamos variados gêneros: MPB sofisticada e música brega, samba e ritmos regionais, a black music norte-americana dos anos 1960-70, compositores clássicos (Debussy, Händel, etc.). Uma tarde de vitrola podia começar com Bob Dylan, passar por Burt Bacharach e Milton Nascimento e terminar com Dilermando Reis. Também se ouvia Janis Joplin, Beatles, Creedance Clearwater Revival, Queen... Uns 65% do meu gosto musical devo à minha família.

A predileção pelo rock só se deu comigo por volta dos 17-18 anos, quando comecei a ouvir muito Van Halen, Titãs (antes da fase caça-níquel total), Barão Vermelho e Rolling Stones, buscando uma certa "independência" auditiva. Pouco tempo depois, os discos Facelift (Alice In Chains), Nevermind (Nirvana), Badmotorfinger (Soundgarden) e Ten (Pearl Jam) foram lançados. A cena grunge ganhou o mundo. E eu mergulhei de cabeça...

Muitos tiozões do rock só escutaram, só escutam e só escutarão rock. Geralmente, as mesmíssimas bandas e as mesmíssimas canções.

Apesar da chatice, esse não é o maior problema, porém.

À medida que o tempo passa, a intransigência, uma propensão autoritária, começam a despontar em muitos dessa patota (eu e minhas gírias fósseis...). Esse aspecto é muito bem representado pela rainha Barb, personagem do divertido filme de animação Trolls 2 (Trolls World Tour - direção de Walt Dohrn e David P. Smith, 2020).

Para ela, só o rock deve ser escutado no mundo dos trolls e, para tanto, ataca os outros reinos. Sua primeira aparição em cena é muito elucidativa (aqui cabe um elogio à atriz e comediante Rachel Bloom, que dá voz à personagem). Não tem nenhum espaço para negociação: as guitarras de seus comandados falam alto e acossam os que não estão com Barb. NOTA: Para ser justo, o filme mostrará que a imposição e a tentativa de homogeneizar o gosto musical não é algo exclusivo dos roqueiros; não se espere, contudo, muita profundidade: afinal, trata-se de um produto de entretenimento voltado sobretudo para o público infantil e do qual se espera determinado retorno mercadológico.

E o que se toca nessa cena? 

Rock You Like a Hurricane, gravada originalmente pelos Scorpions em 1984! Banda e canção típicas de tiozões do rock...

Barb finalmente chega a seu objetivo, ganhando o poder de transformar outros trolls em zumbis headbangers. Mas, mesmo antes da resolução do conflito com a protagonista Poppy, um de seus súditos demonstra não estar 100% favorável à ideia de um mundo regido unicamente pelo rock (aliás, o pai de Barb - cuja voz, ironicamente, é a de Ozzy Osbourne - já não parecia muito entusiasmado com todo esse plano de dominação). Diz o baterista Riff (e eu ri bastante nessa parte): "If we all look the same, act the same, dress the same, how will anyone know we're cool or something? [Se todos nós parecermos os mesmos, agirmos do mesmo jeito, vestirmos do mesmo jeito, como alguém saberá que somos legais e tal?]"

Desde a sua origem - por volta dos anos 1950 -  e no decorrer das décadas ulteriores, o rock esteve associado à rebeldia e à vanguarda. As coisas mudaram nos últimos tempos, entretanto.

Não é mais contraditório que muitos fãs (e artistas) do gênero sejam retrógrados, intransigentes e propensos ao autoritarismo. E que acabem deslocando esse posicionamento em relação a seu "cardápio" musical para outras esferas da vida.

O tiozão do rock é, em muitos casos, também um tiozão conservador e fechado em preconceitos. Infelizmente.

Pode-se mudar a mentalidade reaça? Por que não? Só que é preciso abrir a cabeça, como diz o João Gordo (Ratos de Porão), falando de sua própria experiência (confira aqui).


BG de Hoje

Mesmo se você assistir a Trolls 2 e não gostar (ao contrário de mim, que adorei), acho difícil não apontar Born To Die como a melhor canção ali - ou, pelo menos, a mais surpreendente, se pensarmos que está na trilha sonora de um filme feito principalmente para crianças. Resultado dessa inusitada parceria entre Justin Timberlake e o cantor country Chris Stapleton (que rendeu o hit Say Someyhing), Born To Die é ainda mais apreciável pela linda interpretação da KELLY CLARKSON.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

A incômoda força do ressentimento

 

 

Em uma entrevista publicada há cinco anos, no Guardian, Will Self foi categórico ao exprimir sua opinião a respeito do futuro do romance (o gênero textual/literário): "Penso que o romance está absolutamente condenado a uma forma de cultura marginal, junto com a pintura que usa cavalete e a sinfonia clássica". Perguntado se isso teria a ver com a migração das narrativas para os "box sets" (ou seja, os conjuntos de filmes ou episódios de séries disponiveis em DVDs, blue-rays ou, como é mais comum atualmente, nos serviços de streaming), o escritor britânico faz uma ótima comparação:

"A relação entre os romances e os filmes no século 20 foi como a relação entre Roma e Grécia. Os filmes dependiam dos romances, pelo menos em sua infância e juventude. O problema é que agora os próprios filmes foram balcanizados - retalhados, transmitidos por streaming, carregados em DVDs, assistidos nos telefones das pessoas -, não precisam mais da sua Grécia, não precisam mais dos romances para inspirá-los. É um desastre para o romance, na verdade - acho que o romance está em queda livre".

Sinceramente, não sei o que as pessoas andam lendo, sobretudo as mais jovens. Longos e intrincados romances? Não parece ser provável, considerando que há uma enxurrada de filmes, séries de TV e vídeo-games (alguns desses últimos, para além do jogo em si, apresentando uma roteirização nada elementar), cujo acesso é cada vez mais facilitado. Simplesmente não haveria tempo suficiente para ler, proveitosamente, poesia ou prosa. No Brasil, por exemplo, são 13 horas por semana no streaming, em média, para cada um conectado na internet, sem falar nas 12 horas semanais no Youtube, segundo levantamento da NordVPN (que, estranhamente, deixou de fora da apuração a coqueluche chamada Tik Tok). Talvez seja possível afirmar - exageradamente (ou não) - que a ânsia tão humana por histórias (sobretudo inventadas) é agora aplacada por outras formas de narrar, sucedâneas da tradicional literatura. Veja o próprio caso deste blogueiro que vos escreve: apesar de não ter me dedicado muito nos últimos seis ou sete meses, posso me considerar um leitor assíduo, principalmente de ficção (romances e contos); ainda assim, tenho "gastado" boa parte do meu tempo hoje em dia assistindo filmes e séries (vídeo-game nunca foi minha praia).

Sempre busco, dentro de minhas limitações, promover a leitura, mas não é minha intenção aqui choramingar. Trata-se, objetivamente, de constatar as atuais práticas culturais da maioria. Além disso, há ótimas histórias sendo contadas em séries e filmes excelentes. E não só: algumas dessas formas narrativas fílmicas/televisivas são um primor estético, para além das histórias que contam.

Contudo, quero crer que existe uma expressividade muito particular do romance, irrepetível noutras formas de narrar, da qual muita gente (este blogueiro incluso) ainda não consegue abrir mão.

Pensando num trabalho cujo autor é o próprio Will Self, fico imaginando se uma adaptação d'O livro de Dave ¹ para o audiovisual conseguiria ser tão bem urdida quanto é o texto literário. Com relação apenas à trama seca - ao plot -, daria uma boa série, acho eu, alternando, a cada episódio, a época em que Dave Rudman é apenas um taxista perturbado, percorrendo as ruas de Londres no final do século XX e início do XXI, com os acontecimentos do futuro pós-apocalíptico, em que ele é tido como um deus implacável (aliás,  é assim que os capítulos do livro foram organizados).

Um bom romance, entretanto, não se esgota nas peripécias de seu enredo.

Talvez volte a tratar desse ponto noutra oportunidade (afinal, como escrevi na primeira postagem que fiz sobre O livro de Dave, o trabalho publicado originalmente por Self em 2006 tornou-se um dos meus prediletos). 

A discussão principal de hoje, porém, será outra.

. . . . . . .

Não saberia precisar quando os atuais partidários da extrema direita começaram a sair de suas furnas para marcharem pelas ruas sem qualquer prurido, degradarem o espaço e o debate públicos, elegerem representantes nos parlamentos e até alcançarem cargos máximos do poder executivo nalgumas oportunidades. O fato é que estão em campo por toda parte e não vejo sinais de que vão recuar ou se recolher.

A partir de uma perspectiva amparada no influxo dos afetos no terreno da política, alguns têm apontado que o ressentimento é um dos ardores que leva muitos a se colocarem ao lado dos extremistas de direita, de neofascistas e neonazistas

O medo e a esperança são provavelmente os afetos com maior tradição dentro da filosofia política, desde os contratualistas, pelo menos. Mundo afora, ultimamente, fala-se muito no efeito dos variados ódios dentro da sociedade. No Brasil, Vladimir Safatle (professor cujo pensamento sempre procuro acompanhar, na medida do possível) vem defendendo a necessidade de afirmarmos o desamparo, se quisermos fundar novas ações coletivas. 

Mas não nos desviemos do nosso tópico.

Maria Rita Kehl, em artigo publicado em 2020 ², observou, como psicanalista, que 

"a atualidade do tema ressentimento é, antes de mais nada, clínica. Essa paixão triste comparece com frequência em nossos consultórios, alimentada por acusações contra alguém ou contra o mundo todo. 'Eu sofro: alguém deve ser culpado por isso': assim Nietzsche resume a lógica do ressentido e seu apego ao dano. O ressentimento é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem contemporâneo, entre as exigências e as configurações próprias do individualismo, e os mecanismos de defesa do 'eu' a serviço do narcisismo. [...] Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer".

Segundo Kehl, "o ressentido não é alguém incapaz de esquecer ou de perdoar; é um que não quer se esquecer, ou que 'quer não se esquecer', não perdoar, nem superar o mal que o vitimou". E prossegue: "O filósofo Max Scheler, que discute as teorias de Nietzsche a partir de uma ótica cristã, considera como 'auto-envenenamento psicológico' o estado emocional do ressentido, um introspectivo ocupado com ruminações acusadoras e fantasias vingativas".

Nesse momento, preciso confessar que ainda carrego comigo muito ressentimento, um dos responsáveis pelo meu contínuo estado de raiva. Tenho familiaridade com tal "auto-envenenamento psicológico". Essa "paixão triste" também diz respeito a mim; não vou dar uma de superior. Por isso sei como o ressentimento é forte a ponto de distorcer nossa visão das coisas.

Não estou afirmando, entretanto, que as inclinações e as movimentações políticas devam ser explicadas e analisadas recorrendo-se exclusivamente ao psiquismo humano. É fundamental, a meu ver, refletir de antemão sobre as determinações de base econômica, infraestruturais/materiais, que incidem diretamente na luta de classes. Afirmo apenas que as emoções e os afetos não devem ser desconsiderados quando resolvemos pensar amplamente sobre a política.

Mas o que tudo isso têm a ver com o romance do qual estávamos falando acima?

. . . . . . .

Atentemos para um trecho do segundo capítulo d'O livro de Dave. Esse momento da narrativa ocorre em algum dia de dezembro de 2001, poucos meses após o atentado terrorista contra o World Trade Center e a subsequente invasão do Afeganistão pela coalizão capitaneada pelos EUA (tendo como principal apoiador o Reino Unido).

Um passageiro norte-americano que estava dentro do táxi de Dave Rudman, indo para o aeroporto, joga conversa fora com o motorista:

"[...] 'Não votei no Bush, mas, na minha opinião, ele tá lidando direito com isso, e não foram as Torres Gêmeas que nos puseram contra aqueles camaradas do Talibã - Deus sabe que coisa horrível foi aquilo - mas eu já sabia que era uma gente horrível quando explodiram as duas estátuas antigas do Buda, sabe quais?'

'Sei'. Camaradas? Deus sabe?

'Qualquer sujeito capaz de destruir uma coisa linda e antiga com tanta brutalidade... bom, nada que fizessem iria me surpreender depois daquilo... e o jeito como tratam as mulheres, também'.

No que me diz respeito, o jeito como tratam as mulheres é a melhor coisa daqueles arrombados... mantenham essas esfihas na linha, é o que eu digo... veja minha ex, simplesmente se mandou e bateu com a porra da ordem de restrição na minha cara, mas isso nunca teria acontecido em Cabul, eu teria enfaixado ela num daqueles troços pretos de freira antes que tivesse tempo de dizer pensão alimentícia... 'Não poderia estar mais de acordo. Foi um negócio muito triste'. Porque podiam ter ido um pouco mais longe, os desgraçados - tirem as crianças delas - nada de crianças, nenhuma porra de direito da mãe pra cima da gente..."

Will Self se vale de um recurso bem simples e trivial nos capítulos em que Rudman é o personagem central: o que se passa na cabeça dele é escrito com uma formatação de texto diferente. O passageiro não sabe da sua opinião completa sobre os Talibãs, mas o leitor, sim.

A origem do machismo e misoginia do taxista provavelmente é outra; o divórcio, porém, e o posterior impedimento (por culpa dele, aliás) de ver o filho certamente fizeram o seu ressentimento transbordar.

A decorrência?

Como disse acima, O livro de Dave conta duas histórias: em uma, Dave Rudman é apenas um taxista, com graves problemas de saúde mental e física (agravados pela situação financeira difícil), rodando por uma metrópole como Londres - multicultural e multiétnica -, que ele ama mas com a qual não consegue se ajustar; na outra, que se passa 2.000 anos depois, Dave é o nome de um deus, adorado por uma tirânica religião monoteísta, baseada num livro "sagrado". 

E de onde veio essa obra "sagrada"?

No auge de seu desatino, o taxista julgou ser o profeta de uma divindade (também chamada Dave) e escreveu as palavras "divinas" em placas de metal que enterrou escondido no quintal da casa em que a ex-mulher e o filho moravam. Após um cataclismo - provavelmente causado pelo aquecimento global -, milhares de anos no futuro, o livro "sagrado" foi descoberto. O que continha? Uma "coleção de prescrições e exigências ao que parece derivadas do mundo do trabalho dos taxistas londrinos, uma compreensão tortuosa numa mixórdia de fundamentalismo, mas na maior parte a própria misoginia vingativa de Rudman" (essa foi a avaliação da psiquiatra do taxista). 

Essa sandice em forma de texto virou fonte de adoração religiosa...

. . . . . . .

Um ressentido sozinho, isolado, não consegue provocar grandes danos, geralmente.

Mas e quando eles se unem? Quando compartilham entre si suas tantas frustrações, "ruminações acusadoras e fantasias vingativas" (para lembrar as palavras de Maria Rita Kehl)? N'O livro de Dave, um grupo de pais divorciados monta uma associação chamada Fathers First, que depois assume o nome Fighting Fathers. No início, somente um clube cheio de sujeitos queixosos e injuriados; depois, uma turma pronta para abraçar intolerâncias mil, xenofobia e reacionarismo em geral.

Não se deve subestimar o ressentimento.

________________

¹ SELF, Will. O livro de Dave: uma revelação do passado recente e do futuro distante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 [tradução de Cássio Arantes Leite]

² KEHL, Maria Rita. Ressentimento. A Terra é redonda (website). Artigo publicado em 28/07/2020. Disponível em <https://aterraeredonda.com.br/ressentimento-2/>. Acesso em 19/06/2023

BG de Hoje

Acho que já escrevi aqui nessa seção sobre os anos 1990 serem a minha década musical. Vários álbuns e artistas que despontaram naquela época figuram entre os meus preferidos. Semanas atrás, estava ouvindo os dois discos lançados no período pelo GIN BLOSSOMS e o New Miserable Experience, de 1992, é tão bom! É nele que está a faixa Found Out About You (que lembra muito uma certa fase do R.E.M.). Foi escrita pelo guitarrista Doug Hopkins, um dos fundadores da banda e principal compositor do grupo até então. A letra é melancólica, até um tiquinho sinistra. Transborda ressentimento - mas eu adoro essa canção. Hopkins acabou se suicidando em 1993. Foi demitido antes da finalização da gravação do disco. Não estava bem de saúde mental e o alcoolismo não ajudava. Triste.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Rir com Macunaíma

A expressão leitura obrigatória, preciso admitir, não é das mais simpáticas. Há bons motivos para não gostarem dela. Não obstante, costumo advogar por certas leituras obrigatórias...

Anteontem, início da madrugada, fui reler mais uma vez o Macunaíma. De repente, lá estou eu rindo sozinho no encontro do protagonista e seus irmãos com o "bacharel de Cananeia" ¹:

"Correndo correndo, légua adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Cananeia. O coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos. Macunaíma falou pra ele:

- Como vai, bacharel?

- Menos mal, ignoto viajor.

- Tomando a fresca, não?

- C'est vrai, como dizem os franceses.

- Bem, té logo bacharel, estou meio afobado...

E chisparam outra vez. [...]"

Ri sozinho também naquele que considero o capítulo mais engraçado em todo o livro - o décimo, A velha Ceuci. Um trecho:

"Uma madalena que estava na frente do herói virou pro comerciante atrás dela e zangou:

- Não bolina, senvergonha!

O herói estava cego de raiva, pensou que era com ele e:

- Que 'não bolina' agora! não estou bolinando ninguém, sua lambisgóia!

- Lincha o bolina! Pau nele!

- Pois venham, cafajestes!

E avançou pra multidão. O advogado quis fugir porém Macunaíma atirou um pontapé nas costas dele e entrou pelo povo distribuindo rasteiras e cabeçadas. De repente viu na frente um homem alto loiro muito lindo. E o homem era um grilo [ou seja, guarda de trânsito, em gíria antiga]. Macunaíma teve ódio de tanta boniteza e chimpou uma bruta duma bolacha nas fuças do grilo".

O poeta Frederico Barbosa (hoje talvez mais conhecido por seus trabalhos como gestor cultural) fez uma observação, quase ao final do episódio Mário de Andrade: reinventado o Brasil (daquela série de programas bacana da TV Escola, Mestres da Literatura, veiculada há alguns anos, encontrável no Youtube), que vale muito comentar:

"Acho que é fundamental ler o Macunaíma, Amar, verbo intransitivo [...], Ode ao Burguês, porque é divertido. Isso eu acho uma coisa fundamental. Os professores de Literatura em geral falam: 'é preciso ler porque é importante'. Acho que eles não gostam de ler. É preciso ler porque é divertido. É preciso ler porque é gostoso. Porque você dá muita risada com o Macunaíma".

Posso falar por mim: não importa quantas vezes volte a suas páginas, o sorriso vem fácil em várias passagens da saga do "herói de nossa gente". Nesse ponto, estou de pleno acordo com Barbosa. O dissenso se dá na maneira como ele vê a atuação dos professores de Literatura em geral.

De fato, alguns deles e algumas delas podem mesmo não gostar de ler: trabalham com Literatura porque foi a ocupação que apareceu, precisam pagar as contas e, num meio educacional bastante falho como o brasileiro, as coisas são assim. Também existem outros e outras que adoram ler, mas, por vários fatores, não conseguem transmitir esse entusiasmo ². E há também vários e várias que enfatizam a importância de determinadas obras - ao invés de favorecer a fruição - e isso não deveria ser um problema.

Em março de 2016, fiz uma postagem discutindo, entre outros tópicos, o título Andar entre livros: a leitura literária na escola, de Teresa Colomer. Na época, eu ainda tinha disposição para debater assuntos educacionais e trabalhava diretamente com promoção e incentivo à leitura. Repito aqui uma das citações da pesquisadora de Barcelona de que fiz uso naquela ocasião:

"Talvez tenhamos de reconhecer que, para muitas pessoas, este último acesso à leitura só terá lugar no contexto escolar e como experiência pontual. Ler enriquece a todos até certo ponto, mas como diz o escritor catalão Emili Teixidor, para certas obras o leitor não apenas precisa de ajuda, mas um certo 'valor moral', uma disposição de ânimo de 'querer saber'. Nem todo mundo, nem sempre, o deseja. É útil pensar a educação literária como uma aprendizagem de percursos e itinerários de tipo e valor muito variáveis. A tarefa da escola é mostrar as portas de acesso".

A literatura, como manifestação artística, não chega a todos da mesma forma (isso vale para todas as outras formas de arte, penso eu). Existem obstruções sérias nessa via leitor-texto literário que impedem qualquer possibilidade de fruição e de diversão. Temos desde a trajetória escolar acidentada (é comum encontrar estudantes no Ensino Médio incapazes de compreender textos que não sejam os mais elementares), até uma aversão imotivada aos livros, sem contar o desinteresse puro e simples (em tempo: ninguém é obrigado a gostar de literatura, obviamente).

Às vezes, fico muito incomodado com essas mensagens do tipo "ler é dar asas a imaginação" ou "ler é viajar", referindo-se ao prazer que um bom poema, conto ou romance podem, supostamente, proporcionar. Há o lado do "trabalho" do leitor que frases como essas, convenientemente, ocultam. Esse "trabalho" implica não só a decodificação propriamente dita do texto, mas a concentração, certa disciplina e persistência, comuns a todos os leitores assíduos, mas que precisam ser desenvolvidas e cultivadas nos leitores ocasionais e nos não-leitores, que não as têm. Além disso, como diz Teixidor no excerto acima, se o indivíduo não apresentar uma certa "disposição de ânimo de 'querer saber'", determinados livros nunca farão parte de seu repertório cultural.

Por mais que a educação básica seja insatisfatória, a escola, a meu ver, não erra quando ressalta a importância de alguns livros de prosa ficcional ou de poesia em relação a outros e os explora didaticamente. Pode-se questionar se essa ação está sendo bem realizada ou não, mas a iniciativa em si é válida, acredito.

Clássicos como o Macunaíma costumam ser uma dessas obras abordadas no Ensino Médio (deveriam mesmo ser, porque são importantes), mas que acabaram tendo seu alcance diminuído sendo vistas, infelizmente, apenas como objeto de estudo. Pessoalmente, acho que é um livro meio obrigatório para qualquer brasileiro (ou qualquer estrangeiro interessado nesse país) disposto a entender o que faz o Brasil ser o que é.

Gostaria, contudo, que as pessoas também consigam sorrir ao lê-lo, porque é mesmo pra dar risada.

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Pretendo voltar ao Macunaíma assim que for possível para fazer uma análise mais cabeçuda, que não se encaixaria na discussão da postagem de hoje.

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¹ ANDRADE, Mário de. Macunaíma o herói sem nenhum caráter. 30 ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas Ltda, 1997 [Texto revisto por Telê Porto Ancona Lopez]. Todas as citações da obra nesta postagem foram extraídas dessa edição

² Ana Maria Machado, numa entrevista publicada há uns 20 anos (infelizmente, não tenho mais o exemplar da extinta revista Educação para apontar a referência), falou sobre a dificuldade de se estabelecer uma didática eficiente do ensinar a ler Literatura. Na ocasião, ela disse que talvez o melhor seja tentar "transmitir um entusiasmo", mais do que basear-se em uma metodologia (sem, entretanto, desconsiderar a importância desta).

BG de Hoje

O TERNO seria uma das poucas bandas pelas quais eu estaria disposto a quebrar meu jejum de quase 20 anos sem ir a qualquer show de música. Canções como Zé, assassino compulsivo parecem funcionar muito bem ao vivo.