terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Destino de abelha


Não, não é cansaço.

É verdade que muitos de nós, aqui, no país do golpe, estamos cansados. Contudo, dizer-se cansado - por mais sincero que seja - não descreve muita coisa.

Esmorecimento. É, acho que é isso. Sinto-me esmorecido.

Li pelo menos quatro bons livros nas últimas semanas. Deveria escrever sobre eles - afinal, minha atividade de blogueiro baseia-se nisso, escrever sobre outros textos. Mas simplesmente não consigo. Tô seco. Não há qualquer  resquício de entusiasmo. Nada.

Vazio. Solidão. Angústia.

(Lidava bem com essas coisas antes. Hoje, nem tanto. É uma merda! Já não posso contar com meu corpo; agora, pelo visto, minha mente também começará a me deixar na mão).

Tô vivendo apenas por inércia. Que grande e miserável covarde!

Falei, na postagem anterior, sobre o livro A elegância do ouriço, da francesa Muriel Barbery. Mencionei que duas narradoras conduzem a história e uma delas é apenas uma adolescente de 12 anos. Observei, naquela ocasião, que a escritora lançou mão de um artifício bem inteligente. Paloma Josse - essa menina superdotada, pensativa e severa, com vocação para a filosofia - tem a saudável afoiteza dos jovens para dizer lugares-comuns como se se tratasse de pensamentos inéditos. É tocante! (além do mais, quem consegue se livrar dos lugares-comuns?).

Pois bem. Há uma passagem em A elegância do ouriço que vai ao encontro do que estou pensando neste exato momento. A irmã mais velha de Paloma - a superficial Colombe - resolve falar com ela sobre a fecundação das abelhas: seu intuito era encabular a garota. Os zangões, cuja única função é fecundar a abelha-rainha, morrem após a cópula (assim que esta termina, os órgãos genitais dos machos são arrancados junto com os intestinos). Aqueles que não participam da fecundação, por serem mais lentos ou mais fracos, são expulsos (e não resistem às condições fora da colmeia) ou mortos pelas operárias, já que não têm qualquer outra utilidade para a vida em comunidade: não são capazes de coletar néctar, nem de fazer mel.

(Mas, penso eu, se considerarmos que o tempo de vida médio de uma abelha operária é de 32 a 45 dias apenas, pra que tanto trabalho? E, por favor, eventual leitor(a), estou sendo sarcástico.)

Pouco interessada no que a irmã chata está dizendo, Paloma, entretanto, chega à seguinte conclusão:

 "Mas não vejo nada de chocante ou de safado no voo nupcial das rainhas e no destino dos falsos zangões porque me sinto profundamente parecida com todos esses bichos, mesmo se meus costumes são diferentes. Viver, se alimentar, se reproduzir, realizar a tarefa para a qual nascemos e morrer: isso não tem sentido, é verdade, mas é assim que as coisas são. Essa arrogância dos homens de pensar que podem forçar a natureza, escapar de seu destino de pequenas coisas biológicas... e essa cegueira que têm para a crueldade ou a violência de suas próprias maneiras de viver, de amar, de se reproduzir e de fazer a guerra a seus semelhantes...

Acho que só há uma coisa para fazer: encontrar a tarefa para a qual nascemos e realizá-la o melhor possível, com todas as nossas forças, sem complicar as coisas e sem acreditar que há um lado divino na nossa natureza animal. Só assim é que teremos a sensação de estar fazendo algo construtivo no momento em que a morte nos pegar. A liberdade, a decisão, a vontade, tudo isso são quimeras. Acreditamos que podemos fazer mel sem partilhar o destino das abelhas; mas nós também não somos mais que pobres abelhas fadadas a cumprir sua tarefa e depois morrer".

A falta de sentido da existência, o delírio do ser humano crendo ser algo mais do que um mero primata falante, a ilusão da liberdade e da escolha: tudo isso já foi matéria da reflexão filosófica de grandes e pequenos pensadores. Não faz mal. Paloma dá tratos à bola assim mesmo porque são temas inescapáveis. E sua sugestão, mesmo que trivial, não é fácil de empreender. Muito do meu esmorecimento deriva disso.

Qual seria a minha tarefa? O que me daria "a sensação de estar fazendo algo construtivo no momento em que a morte [me] pegar"?

Eu não sei. E, pior, acho que nunca vou saber que papel interpretar na grande colmeia humana.

. . . . . . .

Ah, quero assinalar uma coisa, antes que me esqueça.

Estou cheio de ouvir pessoas me dizendo: "Você devia procurar (psico)terapia!". Dá vontade de rir... Como se esse tipo de serviço fosse ace$$ível a qualquer um...

Além disso, por mais que eu possa achar interessante ter uma pessoa remunerada (e bem remunerada!) pra ficar ouvindo as miudezas pessoais de alguém - afinal, escutar outro indivíduo não parece ser algo que nossa espécie gosta de fazer -, duvido bastante da eficácia de tratamentos desse tipo. E aí que me lembro daquela passagem memorável de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar (e que não canso de repetir), quando André, a certa altura do diálogo (falho e inútil) com o pai, atira:

"- Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro de onde tira sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo sua fragilidade".

. . . . . . .

O Besta Quadrada interromperá suas atividades até fevereiro do ano que vem. Muito obrigado a quem prestigiou o blog nesta temporada. Que o(a) eventual leitor(a) procure se divertir nas festas e comemorações típicas dessa época. Como não espero que o próximo ano seja minimamente feliz (basta acompanhar essa retrospectiva, apenas falando do campo da "justiça", para projetar um tenebroso 2018), poupo você daquela frase batida, comum em finais de dezembro. Inté.

BG de Hoje

Embora o single Human tenha sido lançado em 2016, foi somente neste ano que fui prestar atenção no musicaço do RAG'N'BONE MAN. Posso dizer sem pestanejar que foi minha trilha sonora durante todo este maldito 2017: me peguei várias vezes cantarolando-a no caminho pro trabalho ou dentro de casa ouvindo rádio. Ajudou bem a suportar a barra.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Os pensamentos de Renée e Paloma


Um tempinho atrás estava lendo a postagem de um blog cuja autora mencionara o filme Le hérisson. Achei tão cativante a ponto de, mesmo não compreendendo patavina de francês (pelo menos não ainda), ficar com muita vontade de assisti-lo. Até o momento não tive oportunidade.

Felizmente, porém, consegui chegar ao romance ¹ (traduzido no Brasil) em que se baseia o longa-metragem. E, a propósito, A elegância do ouriço, de Muriel Barbery, é um romance muito bom.

São duas narradoras, alternando-se ao longo do livro: Renée Michel e Paloma Josse. A primeira é a concierge de um prédio de apartamentos em Paris; a segunda é uma estudante de colégio, filha de um político importante e moradora desse edifício habitado por endinheirados. Renée tem 54 anos, sempre foi pobre e, segundo sua própria avaliação, feia e sem atrativos. Apesar de sua função humilde e insignificante e de corresponder "tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge" - na aparência e no modo como, dissimuladamente, relaciona-se com seus patrões -, guarda uma inteligência rara e é muito culta. Por sua vez, Paloma, adolescente de 12 anos, apesar de viver em meio a privilégios, toma uma decisão dramática: suicidar-se antes de seu próximo aniversário. Superdotada, mas retraída e discreta, ela supõe-se um fruto da contradição, "porque, por uma razão desconhecida, [é] hipersensível a tudo o que é dissonante, como se tivesse um tipo de ouvido absoluto para as fífias, para as contradições".

As duas personagens têm em comum o pendor para a filosofia; o modo severo como examinam os outros (sobretudo os moradores do prédio) e a si mesmas; a constatação da falta de sentido da vida e do absurdo inerente ao existir, um fascínio pelo Japão (a adolescente, por causa dos mangás; a mulher madura, por causa do cinema de Yasujiro Ozu); a aversão, ora pela fatuidade, ora pelo materialismo bruto dos ricos (no caso de Paloma, dirigida até contra sua família); e, por fim, a estima e a consideração especiais pela arte, conjugada a um olhar estetizante sobre o mundo. A aproximação entre elas, contudo, leva páginas e páginas para acontecer, proporcionada em grande medida pela chegada de um novo morador ao prédio. Já falo disso.

A autora de A elegância do ouriço, Muriel Barbery, é professora universitária de filosofia, o que, naturalmente, leva suas narradoras a carregar de reflexões "cabeça" os diários que escrevem, sem comprometer, contudo, o ritmo da narrativa. Reflexões magníficas como esta, de Renée:

"Nesses dias, em que soçobram no altar de nossa natureza profunda todas as crenças românticas, políticas, intelectuais, metafísicas e morais que os anos de instrução e educação tentaram imprimir em nós, a sociedade, campo territorial cruzado por grandes ondas hierárquicas, afunda no nada do Sentido. Acabam-se os ricos e os pobres, os pensadores, os pesquisadores, os gestores, os escravos, os gentis e os malvados, os criativos e os conscienciosos, os sindicalistas e os individualistas, os progressistas e os conservadores; não são mais que hominídeos primitivos, e suas caretas e risos, seus comportamentos e enfeites, sua linguagem e seus códigos, inscritos na carta genética do primata médio, significam apenas isto: manter o próprio nível ou morrer.

Nesses dias, precisamos desesperadamente da Arte. Aspiramos ardentemente a retomar nossa ilusão espiritual, desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda poesia e toda grandeza não sejam excluídas deste mundo.

Então tomamos uma xícara de chá ou assistimos a um filme de Ozu, para nos retirarmos da ronda das justas e batalhas que são os costumes reservados de nossa espécie dominadora, e darmos a esse teatro patético a marca da Arte e de suas obras maiores"

Ou esta outra, também estupenda, de Paloma:

"Eu, ao olhar aquela haste e aquele botão, intuí num milésimo de segundo a essência da Beleza. Sim, eu, uma pirralha de doze anos e meio, tive essa chance inacreditável porque, hoje de manhã, todas as condições estavam reunidas: mente vazia, casa calma, lindas rosas, queda de um botão. E foi por isso que pensei em Ronsard, sem muito compreender no início: porque é uma questão de tempo e de rosas. Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte.

Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o movimento e seu desaparecimento?

Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem".

Muriel Barbery foi muito sagaz assentando como condutoras da história uma autodidata com mais de 50 anos e uma adolescente tão circunspecta quanto inteligente. A visão de mundo melancólica e pé-no-chão de quem já viveu bastante (Renée), associada ao aprendizado feito por conta própria, livra a voz narrativa da esterilidade e da aridez da filosofia de cunho mais acadêmico. E o destemor típico dos muito jovens (mesmo numa garota pouco expansiva como Paloma) faz com que afirmações um tanto grandiloquentes sejam "perdoadas" pelo leitor e não pareçam antipáticas e afetadas.

A narrativa ganha outro andamento (e até uns toques de humor) quando um novo personagem passa a residir no prédio. Um senhor japonês de quem Renée e Paloma ficarão amigas. É, aliás, numa conversa com ele que a adolescente elabora uma bela analogia, propiciando, inclusive, o título do livro.

Tenho mais a dizer sobre A elegância do ouriço. Farei-o, todavia, noutras ocasiões. Por ora, encerro a postagem com esta demolidora reflexão de Renée:

"Qual é essa guerra que travamos, na evidência de nossa derrota? Manhã após manhã, já exaustos com todas essas batalhas que vêm, reconduzimos o pavor do cotidiano, esse corredor sem fim que, nas derradeiras horas, valerá como destino por ter sido tão longamente percorrido. Sim, meu anjo, eis o cotidiano: enfadonho, vazio e submerso em tristezas. As alamedas do inferno não são estranhas a isso; lá caímos um dia por termos ficado ali muito tempo. De um corredor às alamedas: então se dá a queda, sem choque nem surpresa. Cada dia reatamos com a tristeza do corredor e, passo após passo, executamos o caminho da nossa sombria danação".
__________
¹ BARBERY, Muriel. A elegância do ouriço. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. [Tradução de Rosa Freire d'Aguiar]

BG de Hoje

Lançado neste ano mesmo, o álbum French Touch, de CARLA BRUNI, reúne 11 covers de hits cantados em inglês. Ouvi algumas das faixas. Não gostei de sua versão para Highway to Hell (AC/DC), nem a feita para The Winner Takes It All (ABBA). Por outro lado, adorei Enjoy The Silence (Depeche Mode) e, principalmente, a vibração diferente imprimida em Miss You (The Rolling Stones). Ouça e depois me fale.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Falou e disse...

"O profissionalismo da filosofia, sua transformação em uma disciplina acadêmica, foi um mal necessário, mas que encorajou tentativas de tornar a filosofia uma quase-ciência autônoma. Essas tentativas deveriam ser combatidas. Quanto mais a filosofia interage com outras atividades humanas - não apenas com a ciência natural, mas também com a arte, a literatura, a religião e a política - mais relevante para a política cultural ela se torna - e, portanto, mais útil. Quanto mais ela luta por autonomia menos atenção ela merece".*

* RORTY, Richard. Filosofia como política cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 13 [Tradução de João Carlos Pijnappel]

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

"No fim das contas, quem está preocupado realmente com esse país?"

Este blog trata, na maior parte do tempo, de literatura. Há bastante espaço também para a música pop. E para a filosofia, claro.

São meus principais interesses.

Não significa, entretanto, que eu não me importe com outros assuntos. De vez em quando, só para exemplificar, trato aqui de educação e ensino. Outro tópico, a política - em seu sentido lato -, já perpassou muitas postagens também, embora raramente fosse o tema preponderante, devo dizer. E já que falei em política, esta, como sabemos, tem um outro sentido, mais reduzido, que é, porém, geralmente o primeiro a vir à cabeça das pessoas quando usam o termo, relacionado às organizações partidárias, à disputa eleitoral e aos profissionais que ascendem a cargos no poder público por meio do voto. Contudo, dadas a mesquinhez e as vilanias da maioria dos governantes, parlamentares e (é preciso hoje citá-los, mais do que nunca) magistrados brasileiros, nunca tive qualquer disposição para abordar o tópico nessa perspectiva restrita, pelo menos não aqui no Besta Quadrada

Só que o Brasil atravessa um momento, a meu ver, preocupante.

Por essa razão, em março deste ano, decidi republicar aqui (e não tenho o costume de reproduzir integralmente artigos de terceiros no blog) um texto escrito pelo filósofo e professor da USP Vladimir Safatle que capturava bem uma parte da minha apreensão. Hoje senti a mesma necessidade de republicação ao ler o que escreveu Tico Santa Cruz, frontman da banda Detonautas. As observações do cantor apareceram primeiro no seu perfil do Facebook, mas eu cheguei a elas através do Diário do Centro do Mundo.

Devo confessar que pouco ouvi as músicas do Detonautas, mas sempre estive familiarizado com o posicionamento político de Santa Cruz. No texto abaixo, de forma muito simples, direta, ele registra alguns pontos de vista com os quais tenho tanta concordância que não vi outra alternativa a não ser reproduzi-lo na íntegra (as únicas - pequenas - alterações que fiz foram na pontuação e na ortografia) .


"É verdade, sim, minhas opiniões políticas nessa página [do Facebook] importam mais do que o meu trabalho musical. A página do Detonautas Roque Clube tem mais de um milhão de seguidores e lá quem está, está apenas pela música.

Também é verdade, sim, que por conta da minha insistente defesa contra o impeachment, perdi muitos fãs, me tornei uma pessoa estigmatizada e até malquista por muitos. Mas também é verdade que passei a ser admirado por outros que jamais se interessaram por mim ou pelo meu trabalho musical e amado por gente que não sabia quem eu era .

Só que eu sou músico! Quem paga minhas contas é minha música! O que eu amo fazer está relacionado a arte e como existe uma imaturidade GIGANTESCA em relação ao discernimento entre minha pessoa pública – Tico Santa Cruz, artista e CIDADÃO – e Tico Santa Cruz, vocalista do Detonautas – quem acabou se prejudicando foi o Detonautas!

Não por falta de público! Ao contrário, nosso público aumentou – porque acumulou uma parcela nova de pessoas que passaram a me acompanhar por conta dos meus posicionamentos e mantivemos a maioria dos fãs que sempre gostaram de nossas canções! Mas é verdade, sim, que algumas portas foram fechadas, alguns contratantes passaram a evitar a banda por minha causa e alguns veículos de comunicação importantes passaram a ignorar nossas produções.

Mas fazer o quê?

Muitos artistas que se omitiram ou que foram favoráveis a todo esse processo absurdo que destruiu nossa democracia e criou essa legião de monstrinhos que andam pelas redes sociais ofendendo tudo e todos que não concordam com eles, tentando censurar museus, peças de teatro, atacando ícones da música popular brasileira, querendo associar a cultura à vagabundagem e a outros absurdos, invadindo palestras, queimando 'bruxas' e 'lutando pela moral, ética e pela família, em nome de Deus e para proteger 'nossas crianças' ', agora estão sentindo na pele o que foi abrir a Caixa de Pandora dessa nação.

Com esses seres, não há diálogo, não há conversa, não há nada que possa ser feito, porque foram tomados pelo pânico, pela histeria, pela hipnose de um perigoso comportamento que até a própria imprensa que participou e estimulou tudo isso que vivenciamos nos últimos anos já percebeu que algo saiu do controle. Essa gente… Esquece, precisam de intervenção psiquiátrica apenas.

Temos que evitar é que uma parte ainda grande da sociedade que consegue raciocinar o MÍNIMO perceba que estamos caminhando para um movimento perigoso. Alertá-los de que foram manipulados e que agora precisam garantir que o processo democrático brasileiro retorne no ano de 2018.

Essa pauta MORAL que estamos assistindo por nossas redes sociais é apenas uma maneira de convergir toda essa energia de ódio para um lugar qualquer, já que o papo da luta contra a corrupção FALIU.

Explico o porquê.

O MBL e adjacências são cúmplices desse governo bandido atual, então não vão liderar nenhuma manifestação contra todos os absurdos que estamos vendo, ouvindo e vivendo.

E ALGUNS setores, ligados principalmente ao PT, querem mais é que Temer acabe com o país para que o povo sinta na pele todo este retrocesso e então creia que a volta de Lula seja a solução.

Logo as massas – tanto de 'um lado' quando do 'outro lado' – não são mobilizadas para que as ruas sejam tomadas e esse governo seja derrubado.

A esta altura do campeonato, com Temer já desmoralizado, o PSDB – ator principal através de AÉCIO NEVES – que agora todos sabem quem é – se afogando junto com o PMDB nessa lama e a formação de uma nova conjuntura para 2018, para a classe política de modo geral, principalmente a quem almeja o poder, retirar um presidente já não faz mais sentido. Deixa o crápula lá e vamos costurar nossas alianças e possibilidades para tomarmos o poder em 2018!

No fim das contas, quem está preocupado realmente com esse país? Com as pessoas desamparadas? Com os desempregados? Com as famílias que estão se desfazendo em meio à crise? Com as pessoas que estão se suicidando em meio ao desespero? Com as facções criminosas que cada dia ganham mais poder e assustam os cidadãos e cidadãs brasileiras com o avanço na criminalidade? Com os hospitais caindo aos pedaços, médicos, professores, servidores públicos, um monte de gente sem receber salários enquanto AS LIDERANÇAS estão se articulando para lutar pelo poder nas próximas eleições!!!

O Brasil melhorou depois do impeachment?

O governo que assumiu e seus aliados – incluindo os partidos que perderam as eleições – conseguiram erguer nossa nação?

Os corruptos foram todos presos? A corrupção acabou ou ficou evidente que está cada vez mais descarada?

Essa sucessão de erros e manobras aos quais todos nós fomos submetidos no fim das contas serviu a quem?

Se você não foi contaminado completamente pelo ódio e consegue raciocinar o mínimo, mesmo que não concorde comigo na maioria das pautas, há de concordar que foi um FRACASSO COMPLETO todo esse movimento que foi perpetrado em nome da MENTIRA da 'luta contra a corrupção'!

Ah mas a Dilma, o PT, os 13 anos que ficou no poder….

É meu amigo, minha amiga… Enquanto você consumia, viajava, comprava carro, casa, melhorava de vida, não pensou em nada disso. Quando a economia começou a desandar e a brecha foi dada para que todo esse processo fosse iniciado, infelizmente esse Congresso NOJENTO, e toda essa irresponsabilidade com nossas famílias e nossa indignação com a impunidade acabaram sendo usadas para benefício daqueles que sempre comandaram esse país, inclusive quando o PT era governo.

Está na hora de começarmos a perceber que somos apenas peões nesse tabuleiro. Se quisermos mudar algo no ano que vem precisamos pensar seriamente em que TIPO de congresso vamos montar e, dessa gente que se apresentará como opção, quem realmente está mais preparado para reconduzir o Brasil para o crescimento.

Seja você de direita ou esquerda ou de nenhuma das duas, pense bem em qual será seu papel, para depois não ficar por aí histérico e cheio de medo!

Estou cada vez mais certo de que precisamos parar com essas discussões estéreis e rasas nas redes sociais e convergir para pessoas SÉRIAS – seja do espectro político a qual pertencem – e que queiram realmente trabalhar acima de tudo pelo desenvolvimento desse país e não só pelo PODER.

Uma vez por semana vou propor reflexões políticas; nos demais dias, vou trabalhar minha música e minha banda, que é o que realmente vim fazer nesse planeta!

Se você chegou até aqui, convido-o a estar comigo também para além da política!

Bom dia!"

BG de Hoje

Seria GABRIEL o PENSADOR um daqueles artistas do tipo "ame ou odeie"? Pergunto porque conheço tanto pessoas que execram seu trabalho quanto pessoas que adoram. Pessoalmente, não morro de amores pela sua música mas também não detesto (peraí, pra ser sincero, preciso admitir que, definitivamente, não suporto 2345meia78 e Festa da música tupiniquim). Uma de suas melhores faixas, penso eu, é Até quando?. Letra direta, bem construída, criticando a apatia que parece estar inscrita no nosso DNA de brasileiro. A pegada mais rock também merece ser destacada; há uma levada que me lembra muito I'd love to change the world, do Ten Years After (não sei se foi algo intencional na gravação). E o clipe, de uma simplicidade tremenda, é muito bom.

sábado, 28 de outubro de 2017

Luis Fernando Verissimo e a sinceridade de um escritor profissional (II)


Na semana passada fiz uma mistureba daquelas aqui no Besta Quadrada.

Se o(a) eventual leitor(a) tiver a amabilidade de conferir a postagem anterior, verificará que iniciei o texto com duas citações do filósofo e crítico literário francês Maurice Blanchot (extraídas de um ensaio¹ publicado, creio eu, em 1949), nas quais há reflexões sobre a condição dos escritores (lá, na acepção de literatos). A seguir, mencionei uma entrevista de Luis Fernando Verissimo ao jornal Extra Classe e comentei o fato do autor gaúcho habitualmente ter aspirações modestas como artista, a despeito de seu talento. Ao enfatizar que Verissimo é reconhecido sobretudo por escrever crônicas, obstinei-me - não sei por que cargas d'água - em estabelecer se estas deveriam ou não ser consideradas literatura, o que me volveu para outra questão ainda mais ampla: afinal, que diabos seria a própria literatura? Retornei, então, a Maurice Blanchot e ao seu ensaio A literatura e o direito à morte, observando que o crítico francês, influenciado por Martin Heidegger, acreditava que o ideal da escrita literária é "nada dizer, falar para nada dizer" - expressar, pois, um vazio. Assim sendo, como localizar a literariedade de um texto, se é que isso existe? Como detectá-la nas crônicas? Por que, para muitos, a crônica teria menos "investidura" literária do que outros gêneros? Como se vê, as perguntas assomam. Porém, ao invés de respondê-las, fui citar outro trecho da entrevista de Luis Fernando Verissimo, no qual ele afirma nunca escrever para si, querendo dizer com isso que trabalha seu texto visando o público leitor. Algo execrado por Maurice Blanchot: segundo ele, as obras feitas para serem lidas acabam não sendo lidas por ninguém. Mas, quando paramos para pensar, percebemos que esse ninguém a quem o afetado pensador francês se refere são aquelas raras (e privilegiadas) pessoas que tiveram uma educação literária como a dele ou que compartilharam do mesmo substrato cultural no qual ele cresceu. Senti que precisava desvencilhar-me do enfoque excludente de Blanchot.

E aqui estamos. 

Meu objetivo hoje é apresentar um outro conceito de literatura, para, a partir deste, defender o genuíno lugarzinho da crônica junto aos demais gêneros literários. Mantenho também, desde a postagem anterior, a intenção de desmitificar um pouco o ofício dos(as) escritores(as) e, para isso, as declarações de um autor nada deslumbrado como Luis Fernando Verissimo serão muito oportunas.

. . . . . . .

No livro Teoria da Literatura: uma introdução ², de Terry Eagleton, encontramos a seguinte passagem:

"John M. Ellis [atualmente professor de Literatura Alemã na University of California, Santa Cruz] argumentou que a palavra 'literatura' funciona como a palavra 'mato': o mato não é um tipo específico de planta, mas qualquer planta que por uma razão ou outra, o jardineiro não quer no seu jardim. 'Literatura' talvez signifique exatamente o oposto: qualquer tipo de escrita que, por alguma razão, seja altamente valorizada. Como os filósofos diriam, 'literatura' e 'mato' são termos antes funcionais do que ontológicos: falam do que fazemos, não do estado fixo das coisas. Eles nos falam do papel de um texto ou de um cardo num contexto social, suas relações com o ambiente e suas diferenças com esse mesmo ambiente, a maneira pela qual se comporta, as finalidades que lhe podem ser dadas e as práticas humanas que se acumularam à sua volta. 'Literatura' é, nesse sentido, uma definição puramente formal, vazia. Mesmo se pretendermos que ela seja um tratamento não-pragmático da linguagem, ainda assim não teremos chegado a uma 'essência' da literatura, porque isso também acontece com outras práticas linguísticas, como as piadas".

A literatura não é uma coisa - não é um ente com a mesma, digamos, "densidade" ontológica das rochas ou das células do nosso corpo, por exemplo. Também não seria o caso de classificá-la como algo etéreo, inefável. É claro que o literário se dá por meio da linguagem, sendo os diversos idiomas do mundo o seu sustentáculo. Muitos estudiosos, inclusive, entendem a literatura como uma forma peculiar no uso de um sistema linguístico (o tal "tratamento não-pragmático" mencionado acima), empregando propositalmente determinados artifícios e, com isso, transformando, intensificando ou mesmo deformando esse sistema (Terry Eagleton cita aquele famoso aforismo de Roman Jakobson, segundo o qual a literatura seria uma "violência organizada contra a fala comum"). No momento, interessa-nos mais de perto, porém, a sugestão de que um texto literário é aquele ao qual atribuímos um alto valor, distinguido-o do conjunto dos outros textos produzidos na sociedade. E isso gera "uma consequência bastante devastadora", segundo Terry Eagleton:

"Significa que podemos abandonar, de uma vez por todas, a ilusão de que a categoria 'literatura' é 'objetiva', no sentido de ser eterna e imutável. Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente - Shakespeare, por exemplo - , pode deixar de sê-lo. Qualquer ideia de que o estudo da literatura é o estudo de uma entidade estável e bem definida, tal como a entomologia é o estudo dos insetos, pode ser abandonada como uma quimera. Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da literatura é ficcional, e parte não é; a literatura pode se preocupar consigo mesma no que tange ao aspecto verbal, mas muita retórica elaborada não é literatura. A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não existe".

Importante: sendo um qualificativo um tanto flutuante, o adjetivo literário não deveria ser empregado de forma taxativa ³.

A literatura é, pois, uma modalidade de escrita à qual costumamos atribuir um alto valor e que não partilha da estabilidade de outros objetos de conhecimento/estudo (como as rochas e as células, por exemplo). Sua vicissitude "resulta do fato de serem notoriamente variáveis os juízos de valor". Uma obra pode receber (ou perder) o status de literatura com a passagem do tempo, mudar de classe. Além do mais, "pode variar o conceito do público sobre o tipo de escrita considerado como digno de valor". Os critérios para avaliar uma boa escrita literária modificam-se dentro de uma cultura - o que era aclamado em um texto no século XVIII pode não ter nenhum apelo para o leitor atual, do mesmo modo que técnicas de escritura e composição hoje em alta sejam desprezadas daqui a algumas décadas.

"Isso" - escreve Eagleton - "não significa necessariamente que venha a ser recusado o título de literatura a uma obra considerada menor: ela ainda pode ser chamada assim, no sentido de pertencer ao tipo de escrita geralmente considerada como de valor. Mas não significa que o chamado 'cânone literário', a 'grande tradição' inquestionada da 'literatura nacional', tenha de ser reconhecido como um construto modelado por determinadas pessoas, por motivos particulares, e num determinado momento. Não existe uma obra ou uma tradição literária que seja valiosa em si, a despeito do que se tenha dito, ou se venha a dizer, sobre isso. 'Valor' é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas em situações específicas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados objetivos. Assim é possível que, ocorrendo uma transformação bastante profunda em nossa história, possamos no futuro produzir uma sociedade incapaz de atribuir qualquer valor a Shakespeare. Suas obras passariam a parecer absolutamente estranhas, impregnadas de modos de pensar e sentir que essa sociedade considerasse limitados ou irrelevantes. Em tal situação, Shakespeare não teria mais valor do que muitos grafitos de hoje. E embora para muitos essa condição social possa parecer tragicamente empobrecida, creio que seria dogmatismo não considerar a possibilidade de que ela resultasse de um enriquecimento humano em geral".

(Bem, como pessimista crônico, este blogueiro, apesar de concordar com o crítico literário britânico a respeito da transitividade da noção de valor, não crê que os seres humanos progridam como espécie ou sociedade e, portanto, não acredita na possibilidade de melhoria aventada acima)

Todavia, não pensemos que os valores são cambiantes simplesmente por causa da arbitrariedade e dos caprichos de nossas inclinações pessoais. Valores tem muito menos a ver com nossa subjetividade e são menos particulares do que costumamos supor. Como observa Terry Eagleton, "todas as nossas afirmações descritivas se fazem dentro de uma rede, frequentemente invisível, de categorias de valores; de fato, sem essas categorias nada teríamos a dizer uns aos outros". Além do mais, os juízos de valor "têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão evidentes e inabaláveis quanto o edifício Empire State". Embora um pouco fora de moda hoje em dia, há uma palavra adequada para designar "essas estruturas mais profundas de crenças": ideologia.

. . . . . . .

A literariedade de um texto, como acabamos de ver, é um valor atribuído, escorado, em última análise, nas diversas ideologias em circulação. Creio não ser difícil imaginar aquele que lê - seja um acadêmico ou crítico experimentado, seja um diletante sem maiores credenciais do que seu interesse, curiosidade ou paixão - nesse papel atribuidor. Mas e quanto àquele que escreve? Suponho que boa parte dos(as) autores(as), ao elaborarem seus textos - sejam estes romances, poemas, contos ou crônicas (porque, a esta altura, já não temos dúvida de que a crônica é um gênero literário, não é mesmo?) -, agem, intencional e conscientemente, para que sua escrita exiba certos elementos e traços passíveis de serem valorizados (e isso diz respeito ao aspecto verbal/formal do texto) como literatura, do mesmo modo que o fazem outros artistas nos seus respectivos campos.

Imagino, porém, que os artistas, independentemente do talento individual, não são capazes de produzir obras-primas o tempo todo. Noutras vezes, aquilo que o artista considera um trabalho estupendo pode não ir ao encontro daquilo que os atribuidores de valor - crítica, academia, imprensa, público em geral - têm em mente. Convém também lembrar que os artistas, até segunda ordem, estão sujeitos ao implacável capitalismo, assim como você e eu. E é nesse ponto que entra o tema do escritor profissional.

Parece haver certa vergonha (ou pudor, sei lá) da parte de muitos autores(as) em se assumirem como profissionais. Certamente não é o caso de Luis Fernando Verissimo. Em diversas ocasiões, até mesmo em algumas de sua crônicas, ele trata sem melindres dessa questão.

Já fui, noutros tempos, dessas pessoas que concebem a atividade literária como compromisso puramente artístico, sem qualquer transigência de natureza comercial. E isso é uma tolice! Nem todo(a) escritor(a) que "vende" é, necessariamente, um(a) mau(má) escritor(a) - embora muitos(as) o sejam. E vários(as) autores(as) populares ou bem sucedidos(as) nas livrarias não deixam de estabelecer para si padrões de escrita que avaliaríamos como literários, caso usássemos os critérios empregados no julgamento de obras mais "respeitáveis". Luis Fernando Verissimo, penso eu, é um desses.

Antes de terminar, gostaria de lembrar uma resposta do cronista gaúcho na entrevista ao jornal Extra Classe mencionada lá no início da postagem. Ele dissera, a respeito dos romances de sua autoria, que não tem grandes pretensões literárias. O entrevistador, então, pergunta: "Por escrever entretenimento?". E Verissimo diz:

"É, acho que sim. No Brasil é uma literatura considerada não muito respeitável, por isso os autores relutam em se dedicar a ela. Como não busco respeito... (risos). Mas é um gênero que precisa existir, até para a sobrevivência do mercado editorial".

Nós que gostamos de literatura temos a mania de só pensar na sublimidade da arte e não costumamos dar a devida atenção à dimensão material e mercadológica dessa atividade cultural. Por isso é sempre bom ouvir o que tem a dizer sobre isso sujeitos lúcidos e sinceros (além de talentosos) como Luis Fernando Verissimo.
__________
¹ BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte. In: __________. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p. 309-351 [Tradução de Ana Maria Scherer]

² EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [Tradução de Waltensir Dutra]

³ "Quando, deste ponto em diante, eu utilizar as palavras 'literário' e 'literatura' neste livro, eu o farei com a reserva de que tais expressões não são de fato as melhores; mas não dispomos de outras no momento", registra Terry Eagleton em seu livro

Eagleton faz ainda um importante acréscimo: "Não entendo por 'ideologia' apenas as crenças que têm raízes profundas, e são muitas vezes inconscientes; considero-a, mais particularmente, como sendo os modos de sentir, avaliar, perceber e acreditar, que se relacionam de alguma forma com a manutenção e reprodução do poder social".

BG de Hoje

Tenho gostado muito do som da banda potiguar FAR FROM ALASKA. Ouvindo direto nos últimos dias, sobretudo a faixa Cobra.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Luis Fernando Verissimo e a sinceridade de um escritor profissional (I)


Num ensaio cujo título é um tanto lúgubre - A literatura e o direito à morte ¹ -, publicado, se não me engano, no final dos anos 1940, o escritor e crítico literário Maurice Blanchot escreveu:

"Desde o seu primeiro passo, diz mais ou menos Hegel, o indivíduo que quer escrever é impedido por uma contradição: para escrever, precisa de talento para escrever. Mas nele mesmo os dons não são nada. Enquanto não se puser à mesa e escrever uma obra, o escritor não é escritor e não sabe se tem capacidade para vir a ser um. Só terá talento após ter escrito, mas dele necessita para escrever".

É possível que muitos(as) - talvez a maioria - dos(as) escritores(as) tenham estacado frente à contradição mencionada por Blanchot, nem que seja ao menos no início de suas trajetórias. "Terei jeito pra coisa?", perguntaram-se, hesitantes, nalgum momento. Mas só há um modo de saber: escrevendo. O texto resultante (a obra resultante) dirá se existe ou não talento. O ensaísta francês acrescenta:

"O escritor não é um sonhador idealista, não se contempla na intimidade da sua bela alma, não se enterra na certeza interior de seus talentos. Seus talentos, ele os põe na obra, isto é, necessita da obra que produz para se conscientizar deles e de si mesmo. O escritor só se encontra, só se realiza em sua obra; antes de sua obra, não apenas ignora o que é, mas também não é nada".

Maurice Blanchot tinha em mente neste ensaio os(as) escritores(as), digamos, com amplas veleidades literárias. Digo isso porque suas observações talvez pouco tenham a ver com autores mais modestos em suas aspirações artísticas, como Luis Fernando Verissimo, por exemplo. Ou talvez não. Vejamos.

Aos 81 anos, o escritor gaúcho acaba de doar parte significativa de seu acervo pessoal (incluindo textos não publicados, rascunhos, traduções, cartuns, etc.) para a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), que, segundo ele, bem-humorado, vai compor "um cantinho ali da biblioteca" central do novo campus da instituição, recém-inaugurado em Porto Alegre. Sinal inequívoco de que o reconhecido trabalho de Luis Fernando Verissimo já faz parte da história (afinal, acervos do tipo costumam ser demandados por pesquisadores e estudiosos interessados na obra e vida dos autores). E, penso eu, também sinal de aclamação de seu talento, muito embora o criador d'O analista de Bagé e um dos idealizadores da Comédia da vida privada, mesmo após quase cinco décadas de carreira, não costume olhar para si como um literato, na acepção mais requintada do termo. Bem recentemente, em entrevista concedida no mês passado ao jornal Extra Classe, Verissimo declarou:

"A quase totalidade de meus romances foi feita por encomenda, só Os espiões (2009) que partiu de uma ideia própria, achei que era hora e fiz. Ficou direitinho. Mas meu preferido é Borges e os orangotangos eternos (Cia das Letras, 2000), que é um pouco melhor do que os outros. Não tenho, de verdade, grandes pretensões literárias".
Esse escritor, contudo, não se notabilizou nacionalmente por obras de grande fôlego (ao contrário do pai, Erico Verissimo) e sim por sua atividade de cronista. O que nos obriga a fazer a velha pergunta, meio embaraçosa, chata e deselegante, mas ainda não completamente vencida: "E a crônica, deve ser considerada Literatura ou não?" Mas melhor seria, pra começo de conversa, perguntar que diabos é a própria Literatura?

Voltemos a Maurice Blanchot.

Em seu ensaio, lemos:

"Constatamos com surpresa que a pergunta: 'O que é a literatura?' só recebeu respostas insignificantes. Mas existe algo mais estranho: na forma dessa pergunta, algo parece retirar-lhe toda a seriedade. Perguntar: O que é a poesia?, O que é a arte? ou mesmo: O que é o romance?, podemos fazê-lo e foi feito. Mas a literatura, que é poema e romance, parece ser elemento do vazio, presente em todas essas coisas graves, e sobre que a reflexão, com sua própria gravidade, não se pode voltar sem perder sua seriedade. Se a reflexão imponente se aproxima da literatura, esta se torna uma força cáustica, capaz de destruir o que nela e na reflexão se poderia impor. Se a reflexão se afasta, então a literatura volta a ser, com efeito, algo importante, essencial, mais importante do que a filosofia, a religião e a vida do mundo que ela abarca".

Por que perguntar o que é a literatura retiraria, aparentemente, a seriedade da própria pergunta, como pensava Blanchot? Bem, antes de responder, é preciso dizer de saída que o pensador francês foi muito influenciado por Hegel e, especialmente, por Heidegger, dois filósofos famosos pelas ideias meio herméticas e pelos escritos difíceis de ler. Mas procuremos simplificar.

Tentar encontrar o ser da literatura, buscar situá-la ontologicamente -  ou seja, responder, afinal, o que é a literatura -, não pareceria algo sério porque a literatura, segundo Maurice Blanchot, tem como ideal "nada dizer, falar para nada dizer". A literatura se liga a uma linguagem, claro, mas essa linguagem expressa, no fim das contas, o vazio, diz Blanchot, ao modo heideggeriano. Podemos definir determinadas formas de organização da linguagem e chamá-las literárias - romances, poemas, contos -, mas a essência do que responde pelo literário nelas mesmas nos escaparia.

Suponhamos que você receba uma folha de papel na qual esteja escrito, sem qualquer indicativo, apenas o seguinte:

"As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz".

É um texto literário ou não?

Adianto que sim.

Mas o que, precisamente, demonstra a sua literariedade?

A disposição formal do texto? Creio que não. Um léxico particularmente especial, raro, fora do comum? Menos ainda. Então o que é?

Penúltima parte de um ótimo livro de Arnaldo Antunes ², o poema reproduzido acima, se colocado numa folha de papel avulsa, sem indicação de autor, pouco diferiria de um texto convencional, não-poético. Mas há algo difícil de precisar (um nada? um vazio?) naquela organização de palavras que alguns de nós percebemos e interpretamos prontamente como literatura. Um fenômeno assim acontece com as crônicas?

O falecido jornalista (e político) Artur da Távola escreveu certa vez que a crônica é "a literatura do jornal. O jornalismo da literatura". Sérgio Roberto Costa, no seu Dicionário de gêneros textuais ³, afirma que a "crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser veiculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e predeterminada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o leem".

Quanto ao estilo, "deve dar a impressão de naturalidade e a língua escrita aproximar-se da fala. Daí porque a crônica seja considerada por muitos críticos um gênero menor: aquela vontade de forma que todo grande artista possui termina subjugada pela necessidade de ser acessível a todos. Mesmo assim, alguns desses prosadores são capazes de alcançar uma linguagem de singular beleza".

Estariam todos os cronistas condenados a uma escrita destituída de qualidade artística por causa dessa "necessidade de ser acessível a todos", dessa obrigação de "agradar aos leitores", decorrente, por sua vez, da "finalidade utilitária e predeterminada" do gênero textual que produzem? É óbvio que não. Há centenas de textos - assinados por Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, pelo próprio Luis Fernando Verissimo, por Antonio Prata (na minha opinião, um dos melhores cronistas da atualidade), entre muitos outros - nos quais a composição e  o acabamento primorosos (entre outros elementos) não nos fazem duvidar de que se trata de arte literária. Ainda assim, dedos acusadores são apontados para os cronistas por estes fazerem demasiadas concessões ao leitor... Na entrevista anteriormente mencionada, quando perguntado se obedece a alguma metodologia quando escreve, Luis Fernando Verissimo não faz rodeios: "Escrevo sempre para ser publicado, nunca para deleite próprio. Só com esse foco. Nunca fiz isso de escrever para mim".  E ele não se sente nem um pouco incomodado. Seus leitores, idem. Sou remetido, então, a outra passagem de A literatura e o direito à morte:

"O autor que escreve especialmente para um público", diz Maurice Blanchot, "na realidade, não escreve: é esse público que escreve, e, por essa razão, esse público não pode mais ser leitor; a leitura o é apenas em aparência, no fundo é nula. Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas - ninguém as lê. Daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e descobri-los eles mesmos: é que os outros não querem ouvir suas próprias vozes, mas sim a voz de um outro, uma voz real, profunda, que incomoda como a verdade".

Ao que tudo indica, o critico francês, por meio desse ensaio, visava rebater a concepção de literatura engajada (e, portanto, assumidamente política), defendida por Jean-Paul Sartre em Que é a Literatura? (publicado originalmente em 1948). Percebe-se essa intenção no trecho "daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e descobri-los eles mesmos" encontrado no excerto acima. No entanto, o que mais me chama a atenção é a sentença "Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas - ninguém as lê". É um tipo de arrogância aristocrática - diríamos, nos dias de hoje, elitista - antipática até para um cara esnobe como Maurice Blanchot, não obstante seu traquejo intelectual. Ora, quando diz que ninguém lê as "obras feitas para serem lidas" (ou seja, textos artisticamente menos ambiciosos e, em boa parte dos casos, bastante populares), ele quer denotar, com o pronome indefinido ninguém, simplesmente o seguinte: nenhuma-daquelas-raras-pessoas-que-tiveram-uma-educação-literária-como-a-minha-ou-que-compartilham-do-mesmo-substrato-cultural-no-qual-cresci.

Luis Fernando Verissimo escreve para o público, escreve para ser lido. E como seria possível, se seguíssemos de perto o que diz Maurice Blanchot, afirmar que ninguém lê seus textos, quando sabemos ser o escritor gaúcho um dos mais estimados autores brasileiros? Pode-se contra-argumentar, contudo, lembrando que o trabalho de Verissimo não se encaixaria naquilo que o ensaísta francês considera ser literatura.

Precisarei, então, deixar pra lá Maurice Blanchot.

. . . . . . .

Só agora, eventual leitor(a), estou me dando conta de que a postagem seguiu por direções não planejadas quando comecei a escrevê-la. O objetivo inicial era apenas destacar alguns pontos da entrevista de Veríssimo ao jornal Extra Classe, mas acabei enveredando por outros rumos, pois também tinha acabado de ler o ensaio A literatura e o direito à morte. E nem sei por que acabei juntando as duas coisas nesta mistura estranha.

Prossigo com a discussão na próxima semana, retomando de onde parei hoje e tentando tornar tudo um pouco menos confuso. Mas não garanto nada.
__________
¹ BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte. In: _________. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p. 309-351 [Tradução de Ana Maria Scherer]

² ANTUNES, Arnaldo. As coisas. 9 ed. São Paulo: Iluminuras, 2000.

³ COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

BG de Hoje

Nos meus dias ruins (e estes suplantam, com folga, os dias bons) costumo escolher determinadas canções para ouvir pela madrugada afora e tentar aliviar a barra. Uma das que mais tenho escutado ultimamente é a linda Enjoy the Ride, do MORCHEEBA. Ah, importante dizer que essa faixa, na gravação, é interpretada pela cantora Judie Tzuke. A "titular" do Morcheeba, Skye Edwards, estava fora da banda em 2008, quando foi lançado o disco Dive Deep, do qual faz parte Enjoy the ride (Edwards retornaria algum tempo depois).

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Falou e disse...

"É preciso coragem para assumir os riscos de escutar: a escuta tem a capacidade de nos mover de nós mesmos. Determina um jogo instável em que transitamos de falantes a ouvintes para depois retomarmos a fala. Em última instância, é preciso não impor ao outro que, para ser ouvido, se encaixe numa determinada matriz de discurso e sirva a determinados interesses.

É como nos versos de Anna Akhmátova: 'E finalmente pronunciaste a palavra, não como quem se ajoelha, mas como quem escapa da prisão'". *

* LIMA, Daniela. Podem as mulheres falar?: contra a violência naturalizada, sejamos todos bárbaros. Folha de S. Paulo, 6 dez. 2015, Caderno Ilustríssima, p. 6 (também disponível aqui)


quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Dois contos de Alice Munro


Devo admitir que não sou um habitual leitor de contos - sempre preferi os romances. A predileção nada tem a ver com aquele papo furado sobre o conto ser uma modalidade textual "inferior" (se comparado ao romance). Apenas creio faltar-me a agudeza de percepção que a narrativa curta requer.

Essa disparatada crença (um tanto difundida, contudo) na "inferioridade" do conto enquanto gênero literário remete-me a uma passagem de um dos textos que compõem o esplêndido livro Felicidade demais¹, da escritora canadense Alice Munro. A personagem central da narrativa em questão, Joyce, comprara um livro chamado Como havemos de viver, da jovem escritora Christie O'Dell. Apesar de adquiri-lo por causa de um (até ali) vago interesse pela autora, Joyce não tem certeza ainda se lerá de fato o volume, pois estava em meio a "duas boas biografias que com certeza fazem mais o seu estilo [...]". Outro fator também contribui para sua indecisão: 

"Como havemos de viver é uma reunião de contos. Não um romance. Só isso já é uma decepção. Parece diminuir a autoridade do livro, fazendo com que a autora pareça alguém pendurado nos portões da Literatura, mais do que seguramente estabelecido lá dentro"

Essa avaliação mordaz do status dos contistas ocorre no plano narrativo-ficcional, mas, naturalmente, atende a uma intenção clara de Munro, na sua condição real de escritora de contos: debicar da crença mencionada há pouco. Para evitar mal-entendidos, porém, é oportuno esclarecer que o humor não é um elemento presente nos dez textos reunidos em Felicidade demais, inclusive em Ficção, do qual estamos falando. E isso não implica nenhum desabono. Pelo contrário.

Ficção é dividido em duas partes. Na primeira, a protagonista, jovem, é professora de música numa pequena cidade do Canadá e casada com Jon, a quem conhecera no colégio. Joyce acredita ser feliz e os primeiros parágrafos do conto descrevem sua frívola satisfação em verificar a repetição de certas sensações e gestos - o marido, carpinteiro, virando-se para cumprimentá-la enquanto ela manobra o carro na volta para casa, por exemplo. Mas, antes que Joyce se dê conta, esse arranjo se desfaz: nas palavras da narradora, "uma calamidade trivial".

Na segunda parte, a protagonista, agora madura, mora em Vancouver, é violoncelista profissional e casada com Matt, um professor universitário mais velho do que ela. Nessa altura da vida, "é uma mulher seca de olhar ansioso com um cabelo que parece um esfregão cinza-chumbo e uma discreta inclinação que pode ter nascido de tanto abraçar seu grande instrumento, ou simplesmente do costume de ser uma ouvinte prestativa e uma interlocutora solícita". Na festa de 60 anos de Matt, vê Christie O'Dell pela primeira vez e a impressão não é das melhores: "tipo de garota cuja missão na vida, pensou, era deixar os outros incomodados". Entretanto, ao topar com o rosto da escritora iniciante num cartaz promocional de livraria, tem a impressão de ser um semblante familiar, o que a reconecta inesperadamente com seu passado em Rough River, a cidadezinha onde fora professora de música, principalmente após a leitura de um dos contos do livro de O'Dell.

Gosto particularmente dessa história por aludir a algo em que sempre pensei muito: os investimentos afetivos infrutíferos (e eles são muitos) feitos ao longo de nossas vidas. Julga-se ter um relacionamento inabalável com alguém - seja amoroso, seja uma amizade - e, de súbito, percebe-se que aquilo carecia de profundidade e era menos sólido do que a princípio parecia. Mas o conto merece ser destacado, acima de tudo, por tematizar o ato de se converter memórias e experiências pessoais de vida em relatos ficcionais (um expediente corriqueiro dos escritores). E isso tem significações bem diferentes para quem escreve (portanto, sendo parte de um ofício, de um trabalho) e para quem lê (ainda mais quando essas memórias e experiências, com toda a sua carga emocional, lhe dizem respeito).

É impressionante também a habilidade de Alice Munro em realizar alterações no tempo das narrativas, transitando entre o passado e o presente dos personagens - e isso é bastante difícil de se fazer na prosa curta -, sem submeter o leitor a "solavancos" indesejáveis durante o fluxo de leitura. Essa característica da autora canadense foi ressaltada pelo escritor britânico Julian Barnes. Ele diz, numa breve matéria publicada pela revista New Yorker:

"Alice Munro can move characters through time in a way that no other writer can. You are not aware that time is passing, only that it has passed—in this, the reader resembles the characters, who also find that time has passed and that their lives have been changed, without their quite understanding how, when, and why. This rare ability partly explains why her short stories have the density and reach of other people’s novels" ².

Barnes tem razão também ao mencionar a densidade das narrativas dessa contista. Exemplos não faltariam. Num conto como Buracos-profundos, a transformação de um garoto curioso e inteligente em um asceta místico, paralelamente à mudança (menos radical, mas também expressiva) ocorrida com a mãe dele, poderia ser desdobrada num romance extenso, mas é narrada em apenas 25 páginas. A preferência por situar suas histórias em cidadezinhas no interior de seu país também exerce uma função importante no trabalho da escritora. Christopher Tayler, numa resenha sobre Felicidade demais para o jornal The Guardian, observou que:

"Munro's localism isn't antiquarian or defensive. Small-town Canada, it turns out, is an ideal place to observe the mysteries of sex and selfhood, of personal formation and deformation. But localism has also insulated her writing from windy notions of universality, giving it a sense of history and a network of social gradations and prohibitions to work with, as well as an understated Gothic turn. Rural or puritanical suspicions of pretension, which often oppress her characters, have left their impress on her writing style, too. Her prose is clean, precise and unmannered; her stories are attentive to emotion but sometimes almost witheringly unsentimental. She's also a storyteller rather than a maker of atmospheric vignettes, not afraid to shift chronology around or have dramatic things happen". 

De fato, a prosa de Munro é clara, precisa e sem afetação. E o "sutil sentido gótico" mencionado acima por Tayler, é também um grande atrativo, sobretudo em histórias como Wenlock Edge e Brincadeira de criança. Destaquemos esta última.

Mais uma vez as transições entre passado e presente acontecem, magistralmente. O conto segue aquela linha das histórias envolvendo pactos celebrados na infância, muitas vezes com resultados sinistros. A narradora, Marlene, conhecera num acampamento de verão uma outra menina, cujo nome - Charlene - e alguma semelhança física fizeram com que outros as tomassem como gêmeas. A identificação e a amizade entre as duas desenvolveram-se rapidamente, com Charlene tendo grande ascendência sobre a narradora. Peço atenção do(a) eventual leitor(a) para a seguinte passagem:

"Adultas fazem a mesma coisa que Charlene e eu fazíamos. Não digo contar as verrugas das costas e comparar o tamanho do dedos do pé, talvez. Mas quando se conhecem e simplesmente simpatizam uma com a outra sentem necessidade de estabelecer quais são as informações relevantes, os grandes acontecimentos públicos ou secretos, e depois vão preenchendo as lacunas entre eles. Quando sentem esse calor e essa avidez é totalmente impossível ficarem entediadas uma da outra. Darão risada de qualquer detalhe ou bobagem que estão contando, ou com a revelação de um egoísmo assombroso, uma frustração, crueldades, puras maldades. 
É preciso que haja uma grande confiança, é claro, mas essa confiança pode acontecer subitamente, de uma vez só. 
Foi o que observei. Deve ter começado naqueles longos períodos sentados em volta da fogueira mexendo o mingau ou coisa que o valha enquanto os homens estavam na mata sem poder falar porque espantaria os animais selvagens. (Estudei antropologia, mas sou uma antropóloga relapsa.) Observei mas nunca tomei parte nessas trocas femininas. Não para valer. Algumas vezes fingi porque me pareceu necessário, mas a mulher com quem eu devia fazer amizade sempre percebia meu fingimento e ficava confusa e desconfiada".

A dificuldade para construir amizades na idade madura decorre, sem dúvida, do que aconteceu a Verna, uma menina com certa deficiência mental não especificada na narrativa mas a quem Marlene temia e "odiava como algumas pessoas odeiam cobras ou taturanas ou ratos ou lesmas. Sem nenhum motivo razoável. Nem por qualquer dano que ela pudesse causar mas pelo modo como ela era capaz de mexer com as minhas vísceras e me deixar enjoada com a vida".

Brincadeira de criança é meu texto preferido em Felicidade demais.

Fiquei com vontade também de escrever um pouco sobre o conto que dá nome a este livro de Alice Munro. Mas, por ser uma narrativa bastante distinta em relação às demais e construída de um modo bem peculiar, falarei dela, mais demoradamente, noutra oportunidade

Christopher Tayler, na resenha que citei anteriormente - e aproveitando também a avaliação zombeteira dos contistas feita por Alice Munro mencionada lá no início da postagem -, afirmou que "far from hanging on to the gates of literature, her stories create a prowerfull illusion of bringing their readers up against unmediated life [...]" ("bem longe de estarem penduradas nos portões da literatura, suas histórias criam uma poderosa ilusão de educar seus leitores em oposição a vida direta").

É um bom jeito de definir o sortilégio da escrita de Alice Munro.

__________  
¹ MUNRO, Alice. Felicidade demais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [Tradução de Alexandre Barbosa de Souza]

² [tradução aproximada]: "Alice Munro pode mover os personagens através do tempo de um jeito que nenhum outro escritor consegue. Você não está consciente de que o tempo está passando, somente que ele passou - nisso, o leitor assemelha-se aos personagens, que também descobrem que o tempo passou e que suas vidas mudaram, sem entender bem como, quando e por quê. Essa rara habilidade explica parcialmente por que seus contos tem a densidade e o alcance dos romances de outas pessoas". 

³ [tradução aproximada]: "O localismo de Munro não é antiquado ou defensivo. Acontece que o Canadá das pequenas cidades é um lugar ideal para observar os mistérios do sexo e da individualidade, ou a formação e a deformação pessoal. Mas o localismo também protegeu sua escrita das prolixas noções de universalidade, dando a ela um senso de história e um cruzamento de gradações sociais e proibições com que trabalhar. bem como um sutil sentido gótico. Suspeições rurais ou puritanas de pretensão, que frequentemente oprimem seus personagens, deixaram sua impressão na escrita dela também. Sua prosa é limpa, precisa e sem afetação; suas histórias estão atentas à emoção, mas algumas vezes quase derrisoriamente desapaixonadas. Ela é também uma contadora de histórias ao invés de uma criadora de cenários atmosféricos, sem receio de alterar a cronologia ou fazer coisas dramáticas acontecerem".

BG de Hoje

Em 1998 o METALLICA lançou um CD duplo não muito bem recebido pelos fãs, mas do qual eu pessoalmente gosto muito - Garage Inc. O álbum é todo composto de covers. No disco II, há gravações mais amadoras ou menos trabalhadas em estúdio, como Stone Cold Crazy, do Queen, ou a sensacional Crash Course In Brain Surgery, de um obscuro grupo chamado Budgie (nesta última, o baixista ainda era o falecido Cliff Burton). No disco I, Whiskey In The Jar (originalmente gravada pelo Thin Lizzy) chegou a tocar nas rádios e a versão para Turn The Page, do cantor country Bob Seger, teve seu (dramático) clipe bastante exibido pela MTV na época. Mas as melhores covers, na minha opinião, foram It's Electric (originalmente gravada pelo Diamond Head) e Astronomy (do BLUE OYSTER CULT). Arrisco dizer que a versão do Metallica é melhor. Coloco as duas no BG e faça você a comparação.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Elogio da Loucura não ganharia likes se fosse publicado hoje





"Na verdade, nos enganamos redondamente quando queremos distinguir-nos do gênero humano, recusando-nos a nos adaptar aos tempos. [...] O contrário seria pretender que a comédia deixe de ser comédia. Além disso, se a natureza vos fez homens, a verdadeira prudência exige que não vos eleveis acima da condição humana. Em poucas palavras, de duas uma: ou dissimular intencionalmente com os seus semelhantes, ou correr ingenuamente o risco de se enganar com eles. E não será esta - indagam os sábios - outra espécie de loucura? - Quem o nega? Que me concedam, porém, que é essa a única maneira de cada qual fazer a sua pessoa aparecer na comédia do mundo".

Erasmo de Rotterdam - Elogio da Loucura



A burrice sempre triunfa.

Ao longo da história sempre houve mais (muito mais) pessoas burras do que pessoas inteligentes. Melhor dizendo: sempre houve mais (muito mais) indivíduos confortavelmente (e, às vezes, alegremente) adaptados à sua ignorância do que indivíduos dispostos a mitigar (dentro das condições possíveis) seu desconhecimento sobre as coisas e os fenômenos à nossa volta. A burrice, precisamos admitir, é mais disseminada entre a população do que a inteligência.

Basta olhar ao seu redor.

Quando me preparava para escrever este texto lembrei-me de uma passagem de Crime e castigo. Estamos no capítulo IV, sexta (e última) parte do romance. Raskólnikov, já sem forças para não se deixar apanhar, decide revelar à pobre Sônia o seu segredo. Mais uma vez o protagonista retoma a sua tese do "homem extraordinário", cujos atos só devem ser julgados tendo em vista aquilo que ele realizou ou as forças que mobilizou e arregimentou, sendo irrelevantes os meios empregados para isso (o exemplo paradigmático de sua tese é Napoleão Bonaparte). O estudante então começa a recordar a época em que passava horas e horas trancafiado na sua apertada e mísera habitação em São Petersburgo ¹:

"Vê, naquela época eu estava sempre me perguntando: por que eu sou tão tolo que, se os outros são tolos, se eu sei ao certo que são tolos, por que eu mesmo não quero ser mais inteligente? Mais tarde fiquei sabendo, Sônia, que se a gente for esperar que todos fiquem inteligentes, isso irá demorar demais... Depois fiquei sabendo ainda que isso nunca vai acontecer, que as pessoas não vão mudar, que não há ninguém que possa refazê-las e não vale a pena perder tempo. Sim, isso é assim! É a lei delas. A lei, Sônia! É assim!..."

Claro que qualquer um poderia simplesmente desprezar todo esse papo de Raskólnikov por se tratar de alguém (um ser ficcional, sei disso, OK?) que não está nada bem, psicologicamente falando, além de ter cometido dois assassinatos (convém dizer que, fiel à sua queda pelo melodrama - não obstante sua genialidade -, Dostoiévski garantirá uma humilde redenção ao seu personagem). Ainda, porém, que a tese do "homem extraordinário" de Raskólnikov seja inaceitável, sob um ponto de vista moral/ético, o excerto acima permanece válido para mim e interessa-nos sobretudo pelo seguinte trecho:

"[...] se a gente for esperar que todos fiquem inteligentes, isso irá demorar demais... Depois fiquei sabendo ainda que isso nunca vai acontecer, que as pessoas não vão mudar, que não há ninguém que possa refazê-las e não vale a pena perder tempo".
Raskólnikov olha para a burrice dos seres humanos como algo inextirpável. Tornar-se inteligente exige um esforço que poucos desejarão fazer ao longo da vida porque a burrice já está à mão, é reconfortante e se adequa muito bem aos "itens" mentais "de fábrica" da nossa espécie. Ser burro é gratuito e nada exige do sujeito: não requer aprendizado, tempo de dedicação, nem tampouco a mais módica das curiosidades ou o mais primário dos ceticismos. Dentro da "economia" psíquica, a burrice ocupa pouco espaço e tem custo baixíssimo. Daí ser perda de tempo, inútil mesmo, "esperar que todos fiquem inteligentes": há certas "vantagens" na ignorância. Na sua presunção e impaciência  para contornar esse problema, contudo, o personagem dostoieviskiano seguiu por um caminho violento, trágico - e malogrado.

Alguma escapatória possível?

Dias atrás li a seguinte observação do filósofo italiano Nuccio Ordine numa matéria sobre o seu livro A utilidade do inútil:

"O fato de [conhecimentos como o literário, o artístico, o filosófico e a ciência pura/não aplicada] serem imunes a qualquer expectativa de benefício [representa] uma forma de resistência aos egoísmos do presente, um antídoto contra a barbárie do útil, que chegou a corromper inclusive nossas relações sociais e nossos afetos íntimos".

Apesar de achar a palavra barbárie meio fora de lugar nessa declaração, concordo com Ordine em relação ao papel, teimoso e digno, que a literatura, a arte, a filosofia e a ciência pura podem ainda desempenhar num mundo excessivamente pragmático e hostil à imaginação. A questão que se coloca, entretanto, é: sendo a burrice (estreitamente relacionada, aliás, com os "egoísmos do presente" mencionados acima) a regra geral, como convencer outros de que o esforço voltado para esses conhecimentos, mesmo o pouco que se puder aprender, vale a pena?

E não se trata apenas disso. Esses conhecimentos "imunes a qualquer expectativa de benefício" levam, quase sempre, a uma visão menos ingênua e mais crítica da existência. Não são uma promessa de bem-aventurança, muito pelo contrário. Promovem um necessário desconforto em relação às noções - e pretensões - arrumadinhas de como viver. E pessoas burras não querem experimentar um tal abalo do pensamento. A ignorância, como vimos, é quase uma consolação. Pode até produzir a ilusão de felicidade. "Ignorance is bliss": não é o que diz o ditado?

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"Quem no mundo viverá mais feliz do que os vulgarmente chamados bobos, tolos, insensatos e imbecis?": é uma das perguntas feitas na obra-prima de Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura ², um de meus livros prediletos. Pouco antes, no parágrafo anterior a essa passagem, a "autopanegirista" (ou seja, a própria Loucura) já havia dito: "[...] infiro que os verdadeiros felizardos são os que mais se aproximam da índole e da estupidez dos brutos". Tenhamos em mente, contudo, que ainda não se trata aqui propriamente daqueles a quem estou chamando burros - indivíduos que, deliberadamente, permanecem imersos na sua ignorância. Os "bobos, tolos, insensatos e imbecis", nesse caso, correspondem àqueles a quem avaliaríamos hoje como pessoas com algum tipo de deficiência mental/intelectual (o Elogio da Loucura foi escrito em 1509 e publicado em 1511: outro zeitgeist, outra sensibilidade, outro vocabulário, distintos da atualidade - lembremos disso, por mais óbvio que seja, antes de dirigir increpações ao autor).

Todavia, o livro de Erasmo tem muito a dizer sobre os burros. E com o perdão do(a) eventual leitor(a), precisarei ser um pouco pedante.

Elogio da loucura, como a quase totalidade das obras elaboradas por eruditos naquela época, foi escrito em latim. Seu título original é Encomium, id est, Stultitiae Laus (em tradução literal, Louvor, isto é, Elogio da Loucura). A palavra stultitia deu origem, no português, às palavras estultícia e estultice, cujos sinônimos atuais costumam ser "tolice", "insensatez", "imbecilidade" e também "necedade", "inaptidão" e "estupidez". Portanto, estultice (que, antigamente, tinha a acepção de "loucura") e burrice são hoje termos equivalentes.

Há pouco eu escrevi que as pessoas burras são indivíduos deliberadamente ignorantes. "A ignorância" - lê-se no texto de Erasmo - "tem, pois, dois grandes privilégios: um que consiste em estar de perfeito acordo com o amor-próprio, e outro, que consiste em trazer em si a maior parte do gênero humano". Ou seja, o burro costuma ter a si mesmo em alta conta e nunca se sente sozinho, pois a maior parte da população é igualmente burra.

Escrevi também que a burrice é reconfortante. Erasmo - ou melhor, a Loucura - afirma que existe um "furor" dentro dos seres humanos compelindo-nos a "uma certa alienação de espírito que afasta do nosso ânimo qualquer preocupação incômoda, infundindo-lhe os mais suaves deleites. É justamente essa divagação que, como um insigne dom dos supremos deuses, deseja Cícero para si quando diz a Ático que não pode mais suportar o peso de tantos males". E arremata logo adiante:

"Dizem os sábios que é um grande mal estar enganado; eu [a Loucura], ao contrário, sustento que não estar é o maior de todos os males. É uma grande extravagância querer fazer consistir a felicidade do homem na realidade das coisas, quando essa realidade depende exclusivamente da opinião que dela se tem. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade. [...] Porque, se há verdades que, tendo sido bem demonstradas, não deixam lugar às dúvidas, quantas não serão - pergunto - as que perturbam a tranquilidade e os prazeres da vida? Os homens, enfim, querem ser enganados e estão sempre prontos a deixar o verdadeiro para correr atrás do falso".

Verdades perturbadoras impedem a felicidade alienada daquele que optou pela burrice. E numa espécie de mecanismo defensivo, quanto mais essas verdades perturbadoras irrompem, mais os indivíduos parecem entrincheirar-se na ignorância deliberada.

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Como se sabe, Erasmo valeu-se de seu escrito satírico para criticar determinadas práticas e instituições de seu tempo. Sem, infelizmente,  qualquer traço do talento e da ironia do pensador holandês, pretendo fazer o mesmo e, nesse caso, miro a pretensa sociabilidade da internet, especialmente nas mídias sociais.

Reafirmar um chavão neste momento acaba sendo inevitável. Vamos a ele.

Em si, a web é só uma ferramenta. Revolucionária, sem dúvida, tão importante quanto e mais poderosa até do que a difusão do texto impresso iniciada séculos atrás, além de ser tentacular de uma maneira tal nem sequer imaginada pelos meios de comunicação de massa surgidos no final do último milênio. Mas ainda assim, apenas uma ferramenta. O uso (humano, demasiado humano) desse instrumento fabuloso, contudo, é suscetível a juízos valorativos.

Provavelmente seja bastante precoce emitir julgamentos sobre o proveito (falo apenas das pessoas comuns) que tiramos da rede mundial de computadores atualmente (afinal, para usar uma expressão de Carlos Heitor Cony, vivemos na "era da internet lascada": difícil saber o que o futuro ainda nos reserva nesse campo, caso, claro, o planeta não se acabe numa catástrofe ambiental ou numa guerra nuclear). Arriscarei-me, contudo.

Em grande parte do tempo, tenho notado, as pessoas lançam mão da internet como uma espécie de "brinquedão", sejam elas crianças, adolescentes ou adultos. Explico. O uso é majoritariamente para diversão ou entretenimento (isso sem falar na propensão de muitos para bisbilhotar a vida alheia). Não me entenda mal, eventual leitor(a). Muitas vezes também estou apenas atrás de distração na web. Meu ponto, contudo, é: uma ferramenta tão transformadora como essa só está nos servindo para nos enternecermos com gifs de gatinhos e afundarmos a cara nos vídeo games? E, saindo dos passatempos inofensivos: a web conseguirá manter-se um ambiente saudável, sendo tão utilizada, como é nos dias de hoje, para o bullying virtual, a propagação do ódio e a instilação do obscurantismo e da intimidação? Aquelas projeções otimistas dos anos 1990 (penso, por exemplo, em livros como A vida digital, de Nicholas Negroponte, ou Cibercultura, de Pierre Lévy), que imaginavam tempos favoráveis ao desenvolvimento da compreensão, da inteligência e da educação colaborativa por meio da web, talvez precisem ser revistas. Para não me perder em generalizações e avaliações simplistas, entretanto, deixarei essa questão de lado para voltar ao Elogio da Loucura.

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Muitos são os alvos de Erasmo nesse livro. Os advogados, os comerciantes, os soldados e guerreiros, os religiosos e teólogos... E também os filósofos. Peço a atenção do(a) eventual leitor(a) para esta passagem:

"Convidai um sábio para um banquete, e vereis que ou conservará um profundo silêncio ou interromperá os demais com frívolas e importunas perguntas. Convidai-o para um baile, e dançará com a agilidade de um camelo. Levai-o a um espetáculo, e bastará o seu aspecto para impedir que o povo se divirta. [...] Entra o sábio em alguma palestra alegre? Logo todos se calam, como se tivessem visto o lobo. Trata-se porém, de comprar, de vender, de concluir um contrato, em suma, de fazer uma dessas coisas que diariamente sucedem a cada um? Tomareis o sábio mais por uma estátua do que por um homem a tal ponto se mostra ele embaraçado em cada negócio. Assim, o filósofo não é bom, nem para si, nem para o seu país, nem para os seus. Mostrando-se sempre novo no mundo, em oposição às opiniões e aos costumes da universalidade dos cidadãos, atrai o ódio de todos com sua diferença de sentimentos e de maneiras".

Ao indicar como podem ser ridículos os sábios/filósofos ou como seriam estes inábeis para "essas coisas que diariamente sucedem a cada um", Erasmo tem duas intenções, a meu ver. A primeira é transmitir um recado: nossas tentativas para sermos menos ignorantes, nossas buscas por maior sabedoria, não precisam ser, necessariamente, empreitadas sem prazer, feitas de modo enfezado ou desgostoso. Um pouco de bom humor não faz mal a ninguém. Além disso, essas tentativas e buscas não deveriam ser desculpas para descuidarmos dessas "coisas que diariamente sucedem a cada um", sob pena de ingressarmos numa outra forma de alienação, pretensamente mais "sublime". A segunda intenção - não imediatamente perceptível no excerto acima, mas expressa noutras partes do Elogio da Loucura - é reivindicar, apesar da derrisão aparente do texto, a importância dos sábios/filósofos (afinal, o autor tenciona estar entre eles), esses indivíduos que se colocam costumeiramente "em oposição às opiniões e aos costumes da universalidade dos cidadãos".

Como escrevi antes, a burrice é reconfortante, entre outros motivos, porque ela é partilhada pela maioria. Faça um rápido exercício, eventual leitor(a). Olhe com atenção para os(as) "amigos(as)" perfilados(as) na sua conta do Facebook. Quantos(as) destes(as) você considera inteligentes? Eu sei, eu sei, é muita soberba achar que se tem condição para fazer uma avaliação dessas, além de ser descortês e meio malvado. Não esquecendo também que temos a tendência - irresistível - de considerar inteligentes somente aqueles(as) cujas ideias e opiniões vão ao encontro das nossas. Ainda assim, mantenho a proposta. Ceda à tentação, eventual leitor(a). Este blogueiro já fez o exercício. O resultado? Bem, vá acompanhando...

Numa das melhores passagens do Elogio da Loucura (cheguei inclusive a reproduzi-la no Twitter semana passada, na tradução inglesa), Erasmo escreveu:

"[...] que é, afinal a vida humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo; cada qual representa o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe dos comediantes não o faz descer do palco. O mesmo ator aparece sob várias figuras, e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge em seguida, disfarçado em escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma". 
Conviver com outros é fingir. É isso o que Erasmo quer dizer com "comédia". Sabemos que sem dissimulação e hipocrisia não existiria vida civilizada. É o preço a se pagar. E para "aparecer na comédia do mundo", ou seja, para não ser ignorado pelos outros, o melhor alvitre, como diz o pensador lá na epígrafe deste texto, é não procurar qualquer meio de diferenciação individual: trata-se de "dissimular intencionalmente com seus semelhantes ou correr ingenuamente o risco de se enganar com eles".

Todos estamos carecas de saber que as mídias sociais (sobretudo Facebook e Instagram) servem para edulcorar a imagem de muita gente. Uma olhada mais atenta ou o simples contato face-a-face são suficientes para desmontar o embuste. Há também, claro, quem não seja tão falso. Mas isso não melhora o quadro geral, pelo menos do meu ponto de vista.

Recentemente, contrariei uma decisão tomada ano passado de não reatar contato no Facebook com gente que conheci noutras fases de minha vida: ex-colegas de escola, ex-colegas de trabalho, parentes, companheiros de esbórnia da juventude, etc. Entretanto, a quantidade de autoajuda barata, anti-intelectualismo, endosso a discursos de ódio e intolerância, proselitismo religioso, compartilhamento de notícias falsas e analfabetismo político encontrados na maioria dos perfis fizeram com que me arrependesse completamente de voltar a "rever" essas pessoas. Não estou disposto, pelos menos nesse caso, a "dissimular intencionalmente com [meus] semelhantes". Então voltei ao estágio anterior, desfazendo os contatos.

Narro essa situação pessoal porque ela ajuda a concluir o texto desta postagem. No trecho mais famoso do Elogio da Loucura, lê-se:

"Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos tratando com loucos. Por conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda opor obstáculo à torrente da multidão, só lhe posso dar um conselho: que, a exemplo de Timão, se retire para um deserto, a fim de aí gozar à vontade dos frutos de sua sabedoria".

Ir contra a corrente - e a corrente, quase sempre, é um fluxo de ignorância deliberada - é tarefa ingrata, árdua. Inútil talvez, já que, como disse lá no início, a burrice sempre vence. Combatê-la é quase como que se retirar para o deserto, pois acabamos sendo isolados - ao mesmo tempo em que nos isolamos - da "torrente da multidão", formada pelas pessoas estúpidas. Eu me pergunto quantas dessas pessoas incrivelmente burras vivendo no planeta conseguiriam deixar de lado sua estultice, pelo menos por uns poucos momentos, para ler um livro como o Elogio da Loucura. Mas pensando bem, isso não serviria para nada. Porque dificilmente essas pessoas realizariam a autocrítica ali sugerida. Ah, e certamente um grande número desses indivíduos participa do Facebook, já que a corporação criada por Mark Zuckerberg chegou aos 2 bilhões de usuários. Assim sendo, é possível dizer que, caso fosse publicado hoje - e talvez, para aumentar a ironia, sob a forma de "textões" dentro dessa mídia social -. um livro como Elogio da Loucura não ganharia muitos likes, pois expõe "a comédia do mundo" da qual a maioria de nós não quer nem saber.

Na próxima postagem, escreverei sobre duas narrativas do livro Felicidade demais, da escritora canadense Alice Munro.
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¹ DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Ed. 34, 2001 [Tradução e notas de Paulo Bezerra]

² ERASMO DE ROTTERDAM. Elogio da Loucura. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [Tradução e notas de Paulo M. Oliveira] (Col. Os pensadores)


BG de Hoje

Minha adolescência foi uma bosta, do início ao fim. Mas apenas no término dessa fase desgraçada é que a canção A vida não presta, gravada pelo LEO JAIME, fez todo o sentido pra mim.