Devo admitir que não sou um habitual leitor de contos - sempre preferi os romances. A predileção nada tem a ver com aquele papo furado sobre o conto ser uma modalidade textual "inferior" (se comparado ao romance). Apenas creio faltar-me a agudeza de percepção que a narrativa curta requer.
Essa disparatada crença (um tanto difundida, contudo) na "inferioridade" do conto enquanto gênero literário remete-me a uma passagem de um dos textos que compõem o esplêndido livro Felicidade demais¹, da escritora canadense Alice Munro. A personagem central da narrativa em questão, Joyce, comprara um livro chamado Como havemos de viver, da jovem escritora Christie O'Dell. Apesar de adquiri-lo por causa de um (até ali) vago interesse pela autora, Joyce não tem certeza ainda se lerá de fato o volume, pois estava em meio a "duas boas biografias que com certeza fazem mais o seu estilo [...]". Outro fator também contribui para sua indecisão:
Essa disparatada crença (um tanto difundida, contudo) na "inferioridade" do conto enquanto gênero literário remete-me a uma passagem de um dos textos que compõem o esplêndido livro Felicidade demais¹, da escritora canadense Alice Munro. A personagem central da narrativa em questão, Joyce, comprara um livro chamado Como havemos de viver, da jovem escritora Christie O'Dell. Apesar de adquiri-lo por causa de um (até ali) vago interesse pela autora, Joyce não tem certeza ainda se lerá de fato o volume, pois estava em meio a "duas boas biografias que com certeza fazem mais o seu estilo [...]". Outro fator também contribui para sua indecisão:
"Como havemos de viver é uma reunião de contos. Não um romance. Só isso já é uma decepção. Parece diminuir a autoridade do livro, fazendo com que a autora pareça alguém pendurado nos portões da Literatura, mais do que seguramente estabelecido lá dentro"
Essa avaliação mordaz do status dos contistas ocorre no plano narrativo-ficcional, mas, naturalmente, atende a uma intenção clara de Munro, na sua condição real de escritora de contos: debicar da crença mencionada há pouco. Para evitar mal-entendidos, porém, é oportuno esclarecer que o humor não é um elemento presente nos dez textos reunidos em Felicidade demais, inclusive em Ficção, do qual estamos falando. E isso não implica nenhum desabono. Pelo contrário.
Ficção é dividido em duas partes. Na primeira, a protagonista, jovem, é professora de música numa pequena cidade do Canadá e casada com Jon, a quem conhecera no colégio. Joyce acredita ser feliz e os primeiros parágrafos do conto descrevem sua frívola satisfação em verificar a repetição de certas sensações e gestos - o marido, carpinteiro, virando-se para cumprimentá-la enquanto ela manobra o carro na volta para casa, por exemplo. Mas, antes que Joyce se dê conta, esse arranjo se desfaz: nas palavras da narradora, "uma calamidade trivial".
Na segunda parte, a protagonista, agora madura, mora em Vancouver, é violoncelista profissional e casada com Matt, um professor universitário mais velho do que ela. Nessa altura da vida, "é uma mulher seca de olhar ansioso com um cabelo que parece um esfregão cinza-chumbo e uma discreta inclinação que pode ter nascido de tanto abraçar seu grande instrumento, ou simplesmente do costume de ser uma ouvinte prestativa e uma interlocutora solícita". Na festa de 60 anos de Matt, vê Christie O'Dell pela primeira vez e a impressão não é das melhores: "tipo de garota cuja missão na vida, pensou, era deixar os outros incomodados". Entretanto, ao topar com o rosto da escritora iniciante num cartaz promocional de livraria, tem a impressão de ser um semblante familiar, o que a reconecta inesperadamente com seu passado em Rough River, a cidadezinha onde fora professora de música, principalmente após a leitura de um dos contos do livro de O'Dell.
Gosto particularmente dessa história por aludir a algo em que sempre pensei muito: os investimentos afetivos infrutíferos (e eles são muitos) feitos ao longo de nossas vidas. Julga-se ter um relacionamento inabalável com alguém - seja amoroso, seja uma amizade - e, de súbito, percebe-se que aquilo carecia de profundidade e era menos sólido do que a princípio parecia. Mas o conto merece ser destacado, acima de tudo, por tematizar o ato de se converter memórias e experiências pessoais de vida em relatos ficcionais (um expediente corriqueiro dos escritores). E isso tem significações bem diferentes para quem escreve (portanto, sendo parte de um ofício, de um trabalho) e para quem lê (ainda mais quando essas memórias e experiências, com toda a sua carga emocional, lhe dizem respeito).
É impressionante também a habilidade de Alice Munro em realizar alterações no tempo das narrativas, transitando entre o passado e o presente dos personagens - e isso é bastante difícil de se fazer na prosa curta -, sem submeter o leitor a "solavancos" indesejáveis durante o fluxo de leitura. Essa característica da autora canadense foi ressaltada pelo escritor britânico Julian Barnes. Ele diz, numa breve matéria publicada pela revista New Yorker:
Ficção é dividido em duas partes. Na primeira, a protagonista, jovem, é professora de música numa pequena cidade do Canadá e casada com Jon, a quem conhecera no colégio. Joyce acredita ser feliz e os primeiros parágrafos do conto descrevem sua frívola satisfação em verificar a repetição de certas sensações e gestos - o marido, carpinteiro, virando-se para cumprimentá-la enquanto ela manobra o carro na volta para casa, por exemplo. Mas, antes que Joyce se dê conta, esse arranjo se desfaz: nas palavras da narradora, "uma calamidade trivial".
Na segunda parte, a protagonista, agora madura, mora em Vancouver, é violoncelista profissional e casada com Matt, um professor universitário mais velho do que ela. Nessa altura da vida, "é uma mulher seca de olhar ansioso com um cabelo que parece um esfregão cinza-chumbo e uma discreta inclinação que pode ter nascido de tanto abraçar seu grande instrumento, ou simplesmente do costume de ser uma ouvinte prestativa e uma interlocutora solícita". Na festa de 60 anos de Matt, vê Christie O'Dell pela primeira vez e a impressão não é das melhores: "tipo de garota cuja missão na vida, pensou, era deixar os outros incomodados". Entretanto, ao topar com o rosto da escritora iniciante num cartaz promocional de livraria, tem a impressão de ser um semblante familiar, o que a reconecta inesperadamente com seu passado em Rough River, a cidadezinha onde fora professora de música, principalmente após a leitura de um dos contos do livro de O'Dell.
Gosto particularmente dessa história por aludir a algo em que sempre pensei muito: os investimentos afetivos infrutíferos (e eles são muitos) feitos ao longo de nossas vidas. Julga-se ter um relacionamento inabalável com alguém - seja amoroso, seja uma amizade - e, de súbito, percebe-se que aquilo carecia de profundidade e era menos sólido do que a princípio parecia. Mas o conto merece ser destacado, acima de tudo, por tematizar o ato de se converter memórias e experiências pessoais de vida em relatos ficcionais (um expediente corriqueiro dos escritores). E isso tem significações bem diferentes para quem escreve (portanto, sendo parte de um ofício, de um trabalho) e para quem lê (ainda mais quando essas memórias e experiências, com toda a sua carga emocional, lhe dizem respeito).
É impressionante também a habilidade de Alice Munro em realizar alterações no tempo das narrativas, transitando entre o passado e o presente dos personagens - e isso é bastante difícil de se fazer na prosa curta -, sem submeter o leitor a "solavancos" indesejáveis durante o fluxo de leitura. Essa característica da autora canadense foi ressaltada pelo escritor britânico Julian Barnes. Ele diz, numa breve matéria publicada pela revista New Yorker:
"Alice Munro can move characters through time in a way that no other writer can. You are not aware that time is passing, only that it has passed—in this, the reader resembles the characters, who also find that time has passed and that their lives have been changed, without their quite understanding how, when, and why. This rare ability partly explains why her short stories have the density and reach of other people’s novels" ².
Barnes tem razão também ao mencionar a densidade das narrativas dessa contista. Exemplos não faltariam. Num conto como Buracos-profundos, a transformação de um garoto curioso e inteligente em um asceta místico, paralelamente à mudança (menos radical, mas também expressiva) ocorrida com a mãe dele, poderia ser desdobrada num romance extenso, mas é narrada em apenas 25 páginas. A preferência por situar suas histórias em cidadezinhas no interior de seu país também exerce uma função importante no trabalho da escritora. Christopher Tayler, numa resenha sobre Felicidade demais para o jornal The Guardian, observou que:
De fato, a prosa de Munro é clara, precisa e sem afetação. E o "sutil sentido gótico" mencionado acima por Tayler, é também um grande atrativo, sobretudo em histórias como Wenlock Edge e Brincadeira de criança. Destaquemos esta última.
Mais uma vez as transições entre passado e presente acontecem, magistralmente. O conto segue aquela linha das histórias envolvendo pactos celebrados na infância, muitas vezes com resultados sinistros. A narradora, Marlene, conhecera num acampamento de verão uma outra menina, cujo nome - Charlene - e alguma semelhança física fizeram com que outros as tomassem como gêmeas. A identificação e a amizade entre as duas desenvolveram-se rapidamente, com Charlene tendo grande ascendência sobre a narradora. Peço atenção do(a) eventual leitor(a) para a seguinte passagem:
A dificuldade para construir amizades na idade madura decorre, sem dúvida, do que aconteceu a Verna, uma menina com certa deficiência mental não especificada na narrativa mas a quem Marlene temia e "odiava como algumas pessoas odeiam cobras ou taturanas ou ratos ou lesmas. Sem nenhum motivo razoável. Nem por qualquer dano que ela pudesse causar mas pelo modo como ela era capaz de mexer com as minhas vísceras e me deixar enjoada com a vida".
Brincadeira de criança é meu texto preferido em Felicidade demais.
Fiquei com vontade também de escrever um pouco sobre o conto que dá nome a este livro de Alice Munro. Mas, por ser uma narrativa bastante distinta em relação às demais e construída de um modo bem peculiar, falarei dela, mais demoradamente, noutra oportunidade
"Munro's localism isn't antiquarian or defensive. Small-town Canada, it turns out, is an ideal place to observe the mysteries of sex and selfhood, of personal formation and deformation. But localism has also insulated her writing from windy notions of universality, giving it a sense of history and a network of social gradations and prohibitions to work with, as well as an understated Gothic turn. Rural or puritanical suspicions of pretension, which often oppress her characters, have left their impress on her writing style, too. Her prose is clean, precise and unmannered; her stories are attentive to emotion but sometimes almost witheringly unsentimental. She's also a storyteller rather than a maker of atmospheric vignettes, not afraid to shift chronology around or have dramatic things happen".
De fato, a prosa de Munro é clara, precisa e sem afetação. E o "sutil sentido gótico" mencionado acima por Tayler, é também um grande atrativo, sobretudo em histórias como Wenlock Edge e Brincadeira de criança. Destaquemos esta última.
Mais uma vez as transições entre passado e presente acontecem, magistralmente. O conto segue aquela linha das histórias envolvendo pactos celebrados na infância, muitas vezes com resultados sinistros. A narradora, Marlene, conhecera num acampamento de verão uma outra menina, cujo nome - Charlene - e alguma semelhança física fizeram com que outros as tomassem como gêmeas. A identificação e a amizade entre as duas desenvolveram-se rapidamente, com Charlene tendo grande ascendência sobre a narradora. Peço atenção do(a) eventual leitor(a) para a seguinte passagem:
"Adultas fazem a mesma coisa que Charlene e eu fazíamos. Não digo contar as verrugas das costas e comparar o tamanho do dedos do pé, talvez. Mas quando se conhecem e simplesmente simpatizam uma com a outra sentem necessidade de estabelecer quais são as informações relevantes, os grandes acontecimentos públicos ou secretos, e depois vão preenchendo as lacunas entre eles. Quando sentem esse calor e essa avidez é totalmente impossível ficarem entediadas uma da outra. Darão risada de qualquer detalhe ou bobagem que estão contando, ou com a revelação de um egoísmo assombroso, uma frustração, crueldades, puras maldades.
É preciso que haja uma grande confiança, é claro, mas essa confiança pode acontecer subitamente, de uma vez só.
Foi o que observei. Deve ter começado naqueles longos períodos sentados em volta da fogueira mexendo o mingau ou coisa que o valha enquanto os homens estavam na mata sem poder falar porque espantaria os animais selvagens. (Estudei antropologia, mas sou uma antropóloga relapsa.) Observei mas nunca tomei parte nessas trocas femininas. Não para valer. Algumas vezes fingi porque me pareceu necessário, mas a mulher com quem eu devia fazer amizade sempre percebia meu fingimento e ficava confusa e desconfiada".
A dificuldade para construir amizades na idade madura decorre, sem dúvida, do que aconteceu a Verna, uma menina com certa deficiência mental não especificada na narrativa mas a quem Marlene temia e "odiava como algumas pessoas odeiam cobras ou taturanas ou ratos ou lesmas. Sem nenhum motivo razoável. Nem por qualquer dano que ela pudesse causar mas pelo modo como ela era capaz de mexer com as minhas vísceras e me deixar enjoada com a vida".
Brincadeira de criança é meu texto preferido em Felicidade demais.
Fiquei com vontade também de escrever um pouco sobre o conto que dá nome a este livro de Alice Munro. Mas, por ser uma narrativa bastante distinta em relação às demais e construída de um modo bem peculiar, falarei dela, mais demoradamente, noutra oportunidade
Christopher Tayler, na resenha que citei anteriormente - e aproveitando também a avaliação zombeteira dos contistas feita por Alice Munro mencionada lá no início da postagem -, afirmou que "far from hanging on to the gates of literature, her stories create a prowerfull illusion of bringing their readers up against unmediated life [...]" ("bem longe de estarem penduradas nos portões da literatura, suas histórias criam uma poderosa ilusão de educar seus leitores em oposição a vida direta").
É um bom jeito de definir o sortilégio da escrita de Alice Munro.
É um bom jeito de definir o sortilégio da escrita de Alice Munro.
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¹ MUNRO, Alice. Felicidade demais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [Tradução de Alexandre Barbosa de Souza]
² [tradução aproximada]: "Alice Munro pode mover os personagens através do tempo de um jeito que nenhum outro escritor consegue. Você não está consciente de que o tempo está passando, somente que ele passou - nisso, o leitor assemelha-se aos personagens, que também descobrem que o tempo passou e que suas vidas mudaram, sem entender bem como, quando e por quê. Essa rara habilidade explica parcialmente por que seus contos tem a densidade e o alcance dos romances de outas pessoas".
³ [tradução aproximada]: "O localismo de Munro não é antiquado ou defensivo. Acontece que o Canadá das pequenas cidades é um lugar ideal para observar os mistérios do sexo e da individualidade, ou a formação e a deformação pessoal. Mas o localismo também protegeu sua escrita das prolixas noções de universalidade, dando a ela um senso de história e um cruzamento de gradações sociais e proibições com que trabalhar. bem como um sutil sentido gótico. Suspeições rurais ou puritanas de pretensão, que frequentemente oprimem seus personagens, deixaram sua impressão na escrita dela também. Sua prosa é limpa, precisa e sem afetação; suas histórias estão atentas à emoção, mas algumas vezes quase derrisoriamente desapaixonadas. Ela é também uma contadora de histórias ao invés de uma criadora de cenários atmosféricos, sem receio de alterar a cronologia ou fazer coisas dramáticas acontecerem".
BG de Hoje
Em 1998 o METALLICA lançou um CD duplo não muito bem recebido pelos fãs, mas do qual eu pessoalmente gosto muito - Garage Inc. O álbum é todo composto de covers. No disco II, há gravações mais amadoras ou menos trabalhadas em estúdio, como Stone Cold Crazy, do Queen, ou a sensacional Crash Course In Brain Surgery, de um obscuro grupo chamado Budgie (nesta última, o baixista ainda era o falecido Cliff Burton). No disco I, Whiskey In The Jar (originalmente gravada pelo Thin Lizzy) chegou a tocar nas rádios e a versão para Turn The Page, do cantor country Bob Seger, teve seu (dramático) clipe bastante exibido pela MTV na época. Mas as melhores covers, na minha opinião, foram It's Electric (originalmente gravada pelo Diamond Head) e Astronomy (do BLUE OYSTER CULT). Arrisco dizer que a versão do Metallica é melhor. Coloco as duas no BG e faça você a comparação.