segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Caetano Veloso, 75 anos


No último dia 7 de agosto, Caetano Veloso completou 75 anos. É uma idade considerável. Faz pensar. E lembrar.

A primeira música de sua autoria que eu ouvi é uma das que mais detesto até hoje: Atrás do trio elétrico.

Era criança, devia ter uns seis ou sete anos de idade. Uma de minhas irmãs escutava um disco. Tinha uma vaga ideia do que eram os trios elétricos. Achei a canção barulhenta e meio irritante.

A segunda foi Um índio. O rádio estava ligado. Pareceu-me estranha, tomei ojeriza. Ainda era criança (mas continuo não gostando agora, que estou velho).

Foi então que ouvi Canto do povo de um lugar. Alguém, mais uma vez, colocara um disco pra tocar, só não me recordo agora quem. Considerei-a linda naquele instante; hoje não me comove tanto. Mas naquela época, há mais de trinta e tantos anos, foi essa canção que me ligou à música do artista baiano.

E desde então as coisas mudaram.

Você que está lendo isso pode estar se perguntando: mas vem cá: precisa mesmo, em pleno 2017, escrever sobre esse cara, comentar sua obra, discutir sua atuação como figura pública?

Sim. E sabe por quê? Porque os gênios são inesgotáveis e falar de pessoas assim torna-se algo compulsivo, viciante para alguns, como este blogueiro.

Gênio?!? Você deve estar brincando! - outra pessoa, por acaso lendo este texto, acaba de falar para si mesma. Caetano Veloso - prossegue ela - já disse um sem-número de bobagens; já fez um caminhão de asneiras! Não passa de um "pseudointelectual de miolo mole" - o falecido ensaísta e crítico literário José Guilherme Merquior chamou-o assim certa vez, décadas atrás. E claro que há quem o detone, sem dó nem piedade, também hoje em dia, como o ex-editor da extinta (e saudosa) revista Bizz, André Forastieri (Quem ainda se importa com Caetano Veloso?)

Insisto, contudo. Gênio.

Um dia desses estava ouvindo Fora da ordem, faixa do disco Circuladô, lançado em 1991. Difícil não sentir o frescor - e o vigor - dessa canção, conservados mesmo após tanto tempo. Essa observação, penso eu, é válida também para Eu sou neguinha (que faz parte de um álbum lançado em 1987). E não estou me referindo às letras, assunto pra daqui a pouco. Falo da composição musical mesmo, das harmonias, do som... Peraí, não posso esquecer de Vaca Profana, minha Nossa Senhora dos Talentos Infindáveis!

E quanto àquelas, digamos, mais "datadas"?

Penso, por exemplo, em Tropicália. A meu ver, é uma canção monumental, ainda mais quando se considera aquele arranjo do Rogério Duprat. E foi gravada há 50 anos! Penso também no álbum Transa, gravado em Londres, durante o exílio do artista no início da década de 1970 (um de meus irmãos mais velhos, hoje falecido, adorava esse disco), um trabalho marcante, forte, independentemente da época em que foi produzido.

A propósito, peço a aquiescência do(a) eventual leitor(a) para uma digressão.


Entre os muitos males causados pela indústria musical ficou o detestável hábito, impregnado em muita gente, de colocar prazo de validade na produção artística. Muita gente (sobretudo adolescentes) acredita que, se uma canção ficou "velha", deve ser imediatamente substituída pelo hit do momento ou pelo experimento-indie-que-só-eu-e-outros-iluminados-como-eu-conhecem. Pra essas pessoas, escutar e gostar de coisa "velha" é ruim, ponto. Só um adendo: outro dia, ouvindo rádio por acaso, soube que a faixa Royals, da cantora neozelandesa Lorde, já é "jurássica" - e foi lançada em 2013! Essa ânsia infantil pós-moderna pelo eterno presente, enfraquecendo a capacidade das pessoas de manter uma perspectiva histórica (e, portanto, crítica, criteriosa) sobre os eventos, fatos e fenômenos, produz essa cretinice do "prazo de validade" aplicado à música a que me referi. Também explica outra estupidez: a inaptidão para ler livros que não sejam os best-sellers da hora. Falarei disso, porém, noutra ocasião.

Que me perdoe a babação de ovo aquele(a) que estiver lendo esta postagem, mas não consigo imaginar a cultura e a arte brasileiras da segunda metade do século passado sem a presença de Caetano Veloso. E é espantoso que um artista dessa envergadura seja tão acessível - tanto em relação ao seu trabalho, quanto em relação à comunicação com a coletividade e a mídia. Ele nunca fez o tipo recluso, cheio de não-me-toques, muito pelo contrário: faz questão de participar do debate público (algumas vezes com declarações infelizes e provocando polêmicas desnecessárias, tenho que admitir, porém). Mostras dessa comunicabilidade que acabei de mencionar podem ser vistas em espaços como o saudoso programa Chico & Caetano, em 1986, o blog Obra em progresso, na década passada, e a coluna assinada no jornal O Globo, entre 2010 e 2014. Agora, em 2017, por exemplo, concedeu entrevista para vários veículos, falando sobre todos os temas inquiridos (como na que foi publicada pela Folha de S. Paulo, quase toda voltada para suas opiniões sobre o atual cenário político do Brasil). 

E falando em entrevistas,  na conversa com o jornal El País, ao comentar o prêmio Nobel de Literatura concedido a Bob Dylan, Veloso fez a seguinte observação, em tom de brincadeira, como notou o repórter Carlos Galilea: "Há um atraso por parte da organização do Prêmio Nobel sobre a questão de alta e baixa cultura. É algo dos anos 1960 que eles estão resolvendo agora porque são o Nobel e não podiam fazê-lo mais rápido".

Como disse aqui no blog recentemente, o Nobel concedido a Dylan no ano passado pela Academia Sueca é o maior reconhecimento de que letras de canções populares muitas vezes são autênticas e valiosas criações literárias. E qualquer pessoa que compreenda minimamente de que matéria é feita a Literatura não teria dificuldade para incluir Caetano Veloso entre os maiores poetas brasileiros de todos os tempos. Arrisco dizer que ele não teve tanta projeção internacional (ainda que desfrute de alguma) apenas porque canta em português, mesmo sendo fluente em inglês e espanhol. Há, claro, composições suas em inglês e, principalmente nos últimos 20 anos, o artista tem gravado muitas canções em espanhol. Entretanto, a essência de sua obra está em português - e para nosso orgulho, claro! É pena, contudo, que a língua portuguesa não figure entre os mais prestigiados idiomas da história recente (para constatar isso, basta mencionar que, até hoje, só um autor lusófono - José Saramago, em 1998 - levou o Nobel de Literatura).

Vamos aproveitar, então, para falar um pouco de poesia. Noutra entrevista feita este ano (dessa vez para o site Tenho mais discos que amigos!), Caetano Veloso disse o seguinte, para responder a uma pergunta sobre O Quereres, uma de suas mais belas composições:

"Acho que a forma de poesia, com versos de dez sílabas, tem tradição em cantares nordestinos e está arraigada no subconsciente de qualquer brasileiro. As palavras ditas são atraentes, e mesmo antes de a gente entender o que está sendo dito em cada frase a gente se interessa por 'revólver', 'dinheiro', 'paixão'. A fórmula 'Onde queres… sou…' cria interesse no ouvinte. O resto é com o ritmo dos versos, a melodia, os sons – e o que as pessoas que vão atrás do que é dito que se segue cada frase até o fim. Quando conheci Maria Gadú, ela me mostrou que tinha, em sua casa, a letra de O Quereres escrita numa porta interna. Agora ela tem parte dessa letra tatuada numa das pernas".
Essa canção, por sinal. foi regravada para a abertura de uma telenovela recente da corporação de mídia dominante - estranha associação (ou talvez nem tanto) entre o apuro e a bobagem.

Outro exemplo inconteste, penso eu, do talento poético de Veloso é Luz do Sol. Não sei se já escrevi sobre isso aqui no blog, mas uma vez essa música me rendeu uma aula muito boa (algo bastante raro), quando eu era professor de Língua Portuguesa da rede estadual aqui de Minas Gerais (qualquer dia desses conto essa história).

Ainda pretendo dedicar uma série de postagens aqui no Besta Quadrada voltadas exclusivamente para a poética de Caetano Veloso. A ver.

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Antes de terminar, duas notas:

1) Não poderia deixar de mencionar, para ser honesto, o lamentável episódio da proibição de biografias não-autorizadas, que era defendida pela associação Procure saber, formada por um grupo de artistas, entre estes, Caetano Veloso (o texto de André Forastieri citado acima, ainda que não me agrade sua feição e não concorde com grande parte de seu conteúdo, acerta ao enfatizar esse caso). Embora o artista afirme hoje que houve histeria por parte da imprensa e da opinião pública, Veloso não tinha razão, já que adotou uma postura censora e antidemocrática. Por falar nisso, uma biografia sua, lançada este ano, desagradou-o bastante, pois foi considerada mal escrita.

2) Às vezes, Caetano Veloso, atuando apenas como intérprete, faz escolhas terríveis. É o caso, por exemplo, da dispensável (e pavorosa) versão feita por ele para Come As You Are, do Nirvana. Todo mundo saiu perdendo nessa: Caetano, a fantástica banda de Aberdeen e os ouvintes.

Na próxima postagem, escreverei sobre Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam.

BG de Hoje

O BG, claro, tinha que ser uma música de CAETANO VELOSO. Preferencialmente, das que mais gosto, Porém, qual escolher? São tantas. Milagres do PovoGema e Diferentemente já estiveram nessa seção; portanto, posso deixá-las de lado por enquanto. Mas e quanto a O Quereres, Gente, Fora da ordem, London London, Luz do sol, Eu sou neguinhaTrem das coresDom de iludir, Um comunistaPecado original... Acabei optando por Como dois e dois, canção nunca gravada, em estúdio, por Veloso. Gosto da sua levada lenta, do seu ar bluesy. A primeira vez que ouvi essa composição foi na voz de Roberto Carlos, naquele disco dele de 1971 (incluí essa versão também porque acho muito boa).