terça-feira, 29 de agosto de 2017

Racismo: uma longa, longa história (II)


Antes de entrarmos propriamente na parte principal desta postagem - um apanhado do livro Racismo e Sociedade ¹, do etnólogo cubano ² Carlos Moore - , gostaria de falar de três assuntos diretamente relacionados com a nossa discussão.

1) Suponho que a essa altura todo mundo já tenha assistido ao depoimento emocionante, feito de improviso, pela professora aposentada Diva Guimarães, durante uma das mesas de debate da última edição da FLIP (Feira Literária de Paraty). edição esta que homenageava Lima Barreto (caso não tenha assistido, clique aqui). O choro, sincero, do ator Lázaro Ramos (um dos debatedores) ilustra bem o que aqueles pouco mais de 12 minutos de fala representaram. Eventos como a FLIP, organizados e demandados pela parcela intelectualizada da sociedade, são majoritariamente frequentados por pessoas brancas, geralmente detentoras de níveis mais altos de escolaridade, dado que as boas oportunidades educacionais no país são perversamente restritas. Mais: a escola pública brasileira de educação básica, a única opção das famílias pobres (e não custa lembrar, os negros são a imensa maioria entre os mais pobres), é um flagelo há décadas - e ninguém se importa com isso. Mesmo os defensores de políticas universalistas como forma de frear o racismo têm que admitir: o caso da escola pública brasileira demonstra a perpetuação da exclusão e do imobilismo social. Voltemos ao depoimento de Diva Guimarães, porém. A fala dela, irrompendo inesperada e corajosamente num lugar onde só brancos costumam se expressar, ajuda a mostrar, na real, como é iníqua a estrutura da nossa sociedade. Ah, mas claro que a principal corporação de mídia daqui, com seu oportunismo e canalhice característicos, tratou de explorar o assunto enquanto este ainda estava "quente". Publicou um perfil da professora aposentada em seu jornal impresso e na edição online e convidou-a para ir ao programa de Fátima Bernardes, sem nenhum tipo de aprofundamento na problemática do racismo, porém, preferindo o batido esquema das "histórias de superação". Na velocidade com que as notícias e os assuntos são substituídos, o depoimento de Diva Guimarães logo será esquecido. Espero, contudo, que ele tenha encorajado outras pessoas a aproveitarem eventos e espaços coletivos - como a FLIP - para expor as várias faces do racismo brasileiro. Além do mais, a manifestação da professora também ajuda a exemplificar uma observação feita por Carlos Moore na entrevista concedida à Eliane Brum e publicada no jornal El País há dois anos (disponível aqui, mencionada também na postagem anterior). Afirmando que o Brasil segue um modelo de apartheid ibérico - baseado não em leis explícitas, mas no consentimento - , Moore diz: "Os negros [aqui no Brasil] sabem onde estão os espaços dos brancos. Os brancos sabem onde estão os espaços negros. E até onde os negros devem ir. Todo mundo sabe qual é o seu lugar, e o lugar do branco é sempre dominante. Mas, agora, pela primeira vez na história desse país, a hora do questionamento chegou".

2) O atual recrudescimento do nazismo, monstruosidade que muitas pessoas pensavam estar devidamente sepultada no aterro sanitário da História, prova o quanto o racismo é real. Revela também que a questão vai muito além de esforços no campo educacional - afinal, a população mundial nunca foi tão escolarizada e nunca teve tanto acesso à informação e ao conhecimento organizado quanto neste estágio atual da evolução humana. Como observa Carlos Moore, no último capítulo de Racismo e Sociedade, estamos acostumados a pensar que o racismo é apenas resultado de determinados preceitos ideológicos e, portanto, poderia ser neutralizado por argumentação racional e exortação de condutas éticas (ou seja, ações realizadas no âmbito da educação). Essa crença, segundo Moore, "era reconfortante, na medida em que implicava que estávamos no controle da situação". Porém, como ele procura demonstrar em seu livro, o racismo foi construído historicamente, ao longo de centenas, milhares de anos, e não ideologicamente, num período recente, o que faz com que esse fenômeno "se encontre na raiz dos desarranjos sociais extremos vivenciados em praticamente todos os países do mundo, tornando-o a última fronteira do ódio no planeta".

3) Dentro da história de nossa espécie, o racismo teve no tráfico e escravização de seres humanos de pele negra (um empreendimento comercial de larga escala e parte essencial do processo de acumulação de riqueza que possibilitou o capitalismo moderno) uma de suas formas mais explícitas e abjetas. Além disso, muitas nações (notadamente nas Américas) foram constituídas sobre bases escravocratas, gerando consequências até hoje. Numa entrevista ao jornal Extra Classe (cuja leitura considero imprescindível), o sociólogo e cientista político Jessé Souza é certeiro ao afirmar que:

"No caso de uma sociedade na qual a escravidão tem papel determinante [como o Brasil], uma parte dessa sociedade considera que os escravos não são gente, não os considera humanos, não se identifica com o sofrimento de pessoas que já define como sendo de outra espécie, subgente, como algo a ser explorado a preço vil. É o que fundamenta uma sociedade de senhores e escravos. Como nunca vimos a escravidão como nossa fonte, nossa semente, nossa real questão, falamos dela, mas  não fazemos a crítica aprofundada [...] E o passado sobre o qual não há reflexão está condenado a se repetir. De outras formas, mas se repete. No Brasil, a forma como mais se repetiu foi a do ódio aos pobres. Não há da parte da classe média uma identificação. Existe aí uma certa burrice porque, quando você qualifica os mais pobres, eles consomem mais, eles produzem mais. Tivemos um exemplo de que isso funciona no passado recente, de uma expansão de mercado que não havia sido feita antes. Mas aí vem a necessidade de distinção, de humilhar, de parte da sociedade precisar se sentir superior. Somos um Estado no qual existem políticas formais deste ódio aos pobres. A matança dos pobres, as chacinas, verdadeiros absurdos, uma parte expressiva da classe média aplaude. O que isso mostra? Um ódio típico de regimes escravocratas".

Essa necessidade de distinção tem muito a ver, por exemplo, com o horror de muitos dos tais "cidadãos de bem" com as cotas raciais no ensino superior. "A universidade", lembra o sociólogo, "é a base do privilégio da classe média: o acesso exclusivo às fontes de conhecimento prestigioso, que resultará na formação de juízes, professores universitários, economistas, advogados. Os pobres [e sabemos que pobreza tem cor no Brasil, acrescenta o blogueiro] estavam entrando nesse caminho. As pessoas se incomodarem com a diminuição desta distância é algo escravocrata entre nós". Jessé Souza também observa que a escravidão brasileira condenou "classes inteiras a uma vida sem direitos e sem dignidade", mas, ao invés de ser amplamente debatido, discutido, "o tema é romantizado em novelas e tal. Ora, deixamos de chamar favelas de favelas e passamos a chamar de comunidades. Não enfrentamos as questões efetivas. Isso faz com que se criem sempre mecanismos superficiais que não mudam a situação em definitivo".

Tendo esses três assuntos em mente, passemos ao livro de Carlos Moore.

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Racismo e Sociedade ancora-se em três linhas argumentativas principais:

a) O fenótipo (que, em poucas palavras, pode ser definido como a concentração de melanina e os traços morfológicos dos indivíduos: textura do cabelo, formato do nariz e lábios, etc. ³) desempenha, desde tempos remotos, papel fundamental na aproximação e camaradagem - mas também no distanciamento e na hostilidade - entre grupos humanos. Durante confrontos e guerras longínquas na história, visando a posse de territórios ou recursos naturais, as diferenças fenotípicas forneceram o meio para distinguir inimigos. Incrementa-se esse argumento, no livro, sobretudo quando é discutida a obra do historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop. Escreve Moore: "Com o desenrolar do tempo, as realidades fenotípicas - convertidas em realidades de 'raças' mediante a construção social - podem converter-se numa relação de inimizade ou de proximidade entre indivíduos e coletividades. Diop enquadra o racismo, assim, em uma dimensão específica de pensamento-comportamento que denomina de 'invariante cultural'. Portanto, ele descarta a ideia, ainda prevalecente, de que o racismo se tenha originado na contemporaneidade ou como um fenômeno acidental".

b) A capacidade bélica e o uso planejado da violência são mais determinantes na história humana do que muitos intelectuais gostariam de admitir. Como observa Moore, não sem ironia, "o chamado 'milagre grego' teria muito a ver com emprego sistemático da violência brutal e exterminadora, e não simplesmente com a suposta superioridade intelectual racionalista do mundo ocidental". E mais: a maior eficácia marcial e as ações violentas metódicas e fulminantes são parte essencial da expansão europeia pelo mundo e contribuíram decisivamente para o subdesenvolvimento de outras regiões do planeta - inclusive e principalmente a África. Não se trata aqui de fazer dos europeus os arquivilões da humanidade, mas de reconhecer que a sua suposta ilustração e genialidade, para se estabelecer, dependeu - e muito - do emprego da violência e da ação predatória contra outros contingentes populacionais.

c) O racismo claramente beneficia determinados grupos humanos e prejudica e coloca em posição subalterna outros. Trata-se de um sistema, erigido ao longo de séculos, que vai além de condutas e posturas individuais, embora estas o reforcem. Com a palavra, Carlos Moore:

"[...] Pois, em nenhum momento, se deve esquecer que, desde que o conhecemos do seu início, o racismo surgiu e se desenvolveu em torno da luta pela posse e a preservação monopolista dos recursos vitais da sociedade. Na Antiguidade, esses recursos eram território (terra, água, rios e montanhas) e bens (rebanhos, cidades...). Seguidamente, esses recursos foram a própria força de trabalho alheio (escravos), a produção alheia (produtos agrícolas ou manufaturados) e as riquezas do meio ambiente e subsolo alheios (minerais, sal, especiarias, madeiras, marfim...).

Nas sociedades atuais, os recursos vitais se definem em grande medida em termos de acesso: à educação, aos serviços públicos, aos serviços sociais, ao poder político, ao capital de financiamento, às oportunidades de emprego, às estruturas de lazer, e até ao direito de ser tratado equitativamente pelos tribunais de justiça e as forças incumbidas da manutenção da paz. O racismo veda o acesso a tudo isso, limitando para alguns, segundo seu fenótipo, as vantagens, benefícios e liberdades que a sociedade outorga livremente a outros, também em função de seu fenótipo.

A função básica do racismo é de blindar os privilégios do segmento hegemônico da sociedade, cuja dominância se expressa por meio de um continuum de características fenotípicas, ao tempo que fragiliza, fraciona e torna impotente o segmento subalternizado. A estigmatização da diferença com o fim de 'tirar proveito' (privilégios, vantagens e direitos) da situação assim criada é o próprio fundamento do racismo. Esse nunca poderia separar-se do conjunto dos processos sistêmicos que ele regula e sobre os quais preside tanto em nível nacional quanto internacional.

Na contemporaneidade, o racismo está arraigado em todas as instâncias de funcionamento do mundo, tanto na econômica, como na política, na cultural e na militar [...]"

Há diversos outros pontos que eu poderia destacar no livro - bem como alguns a serem criticados. Talvez o faça noutras oportunidades. Acredito, contudo, que o apresentado nestas duas últimas postagens é suficiente para dar ao(à) eventual leitor(a) uma noção do conteúdo de Racismo e Sociedade.

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Antes de encerrar, gostaria de expor um posicionamento pessoal que julgo importante não ocultar.

Acho errôneo usar o termo racista para designar indivíduos islamofóbicos.

É claro que a intolerância religiosa e o ódio a outros indivíduos por causa da fé que adotam são das coisas mais graves do mundo. Entretanto, usar o termo racismo para se referir a esse problema, a meu ver, não ajuda a lidar melhor com ele; além disso, pulveriza o significado essencial que o termo expressa.  Mais uma vez, recorrerei a Carlos Moore. "A confusão entre racismo e preconceitos", escreve ele, "é evidente. Ora, os preconceitos não são necessariamente manifestações de racismo. Pelo contrário: é o racismo que gera os piores e mais violentos preconceitos. Dentre eles, o mais profundo e abrangente é a noção de inferioridade e superioridade racial inata entre os seres humanos". E acrescenta: "Com efeito, preconceitos e racismo não são realidades que se subsumem".

Racismo - e isso deveria ser óbvio - tem a ver com raça, um conceito que se modificou ao longo do tempo, mas que, na maioria dos casos (e habitualmente uso o termo com este sentido) refere-se às diferenças fenotípicas (pigmentação da pele, tipo de cabelo, traços faciais, etc.) apresentadas pelos diversos grupos humanos.

Portanto, é um equívoco, na minha opinião, colocar o islã na mesma categoria de raça. Penso que o que está por trás dessa falsa equivalência, em muitas ocasiões, é a tentativa de silenciar as críticas à religião - e criticar uma religião, com argumentos (o que sempre procuro fazer), não é o mesmo que querer calar seus praticantes à força, persegui-los ou agredi-los. Isso é intolerância religiosa, fanatismo, algo que não pratico, nem promovo.  Sou crítico a todas as religiões - sobretudo ao cristianismo. E continuarei a sê-lo.

Vou dizer de novo: é falsa a equivalência entre religião e raça. Religião não é raça. A crítica às religiões não é racismo.

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¹ MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007 (Esse livro saiu em 2ª edição ampliada, pela Nandyala Editora, em 2012)

² Filho de jamaicanos, Moore nasceu e cresceu em Cuba; por isso estou designando-o como cubano. Porém, ainda muito jovem, migrou para os EUA e já viveu em diferentes países desde então. Convém ouvir o que o próprio autor tem a dizer, ele que atualmente mora no Brasil:
"A referência da minha vida é muito maior que Cuba, muito maior que o Brasil, muito maior do que qualquer país. Não há um só país que possa concentrar a referência do que é a minha vida, do que é a minha identidade"
E acrescenta:
"O fato de ter sido proscrito de Cuba por 34 anos me fez compreender que a nacionalidade é um jogo, é uma brincadeira".
Essas declarações estão na entrevista de Carlos Moore que citei na postagem. Recomendo vivamente ao(à) eventual leitor(a) essa entrevista, pois ela permite conhecer um pouco da extraordinária trajetória do estudioso, além de apresentar algumas de sua opiniões acerca do racismo contemporâneo, no Brasil e no mundo.

³ Aqui, uma outra definição, mais ampla, de fenótipo:
"A aparência visível ou mensurável de um organismo quanto a um ou mais traços, o fenótipo é o que se vê, a aparência ou o comportamento de um organismo em contraste ao genótipo ou constituição genética elementar. Todas as pessoas de olhos castanhos, por exemplo, têm o mesmo fenótipo quanto à cor do olho. Do mesmo modo, o comportamento de uma espécie particular de ratos, quando confrontada com uma série de obstáculos em um labirinto, é um comportamento fenotípico. A aparência externa dos humanos quanto à cor da pele, tipo de cabelo, estrutura óssea, etc. é mais bem identificada como variação fenotípica; um modo relativamente livre de conceitos culturais para designar as diferenças em oposição à palavra raça, cujo sentido varia de um período histórico e cultural para outro". (CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Summus, 2000. p. 217)

BG de Hoje

Em outras oportunidades já comentei aqui nesta seção do blog que o heavy metal (meu tipo de som predileto) é dominado por artistas brancos - como ocorre, aliás, com o rock num todo, a despeito da origem negra do gênero, ligada ao blues. Problema algum nisso, a não ser, claro, quando alguns artistas flertam com a intolerância e o racismo (sim, estou falando de você, Phil Anselmo!). A respeito do lado imbecil e babaca do rock pesado, sugiro a leitura deste texto, O heavy metal não é apenas racista - é intolerante no geral.

Voltando ao assunto, porém. Quando músicos negros decidem tocar heavy metal ou hardcore isso sempre chama atenção, quando não pela raridade. Como no caso do BODY COUNT, cujo frontman,  Ice T., é hoje em dia mais conhecido, talvez, pelo seu trabalho como ator (muita gente nova não sabe que ele começou a carreira como rapper). Colecionando controvérsias ao longo do tempo (e qualquer dia desses faço uma postagem só sobre isso), a banda de Los Angeles lançou este ano o disco Bloodlust, do qual destaco a faixa Black Hoodie.