quinta-feira, 16 de maio de 2024

O que podem os fracos?: relendo Lavoura arcaica


 

Transcorridos quase 50 anos desde a primeira publicação, Lavoura arcaica permanece um grande desafio de interpretação dentro da literatura brasileira. Volta e meia tiro-o da estante - até me arrisquei a fazer uma postagem sobre o livro há cerca de 15 anos -, mas nunca estou bem certo por onde vago a cada nova leitura. 

Ao terminar mais uma dias atrás, em meio aos esforços de compreensão da narrativa, houve a "infiltração" de minhas últimas ruminações sobre a atual conjuntura do país e do planeta (Paciência. É bem difícil desconsiderar o que se está vivenciando pessoalmente, ao percorrer uma obra de arte cuja matéria nos obriga a pensar nas vicissitudes da condição humana).

Falarei disso mais adiante. 

. . . . . . .

Em sua abrangente dissertação de mestrado ¹, Hugo Marcelo Fuzeti Abati escreveu:

"Lavoura arcaica vai ficar isolada em relação a outras obras literárias de seu tempo? O trânsito entre a prosa e a poesia, sua natureza híbrida (lirismo, narrativa, fluxo de consciência, romance, dramaturgia) não comportam classificações categóricas ou comparações, nesta escrita original e moderna que agrega virtuosamente recursos da literatura, da poesia, da filosofia e da retórica. No romance, a crítica observou um cruzamento de diversas questões, nenhuma delas constituindo 'o sentido' do texto, mas conjugando um tecido com vários vetores de significação [...]"

De fato, o livro não se assemelha a nada produzido em sua época (e nem nos anos seguintes). Não é propriamente prosa poética, ainda que seja uma narrativa cheia de poesia (o capítulo 16 é talvez o melhor exemplo disso); conferir-lhe um gênero textual - novela? romance? outra coisa? - não é tão simples (este blogueiro segue a classificação usual de romance). E enquanto se debruça sobre temas inegavelmente filosóficos, provoca a erupção de uma linguagem literária ao mesmo tempo arrojada e recuada no tempo.

Ainda segundo Abati, alguns leitores experimentam um " 'mal estar' que poderia advir da ausência de uma pacificação interior do protagonista ('o final feliz'), da dificuldade em conciliar interesses individuais e coletivos, retornar à unidade social e em restaurar a aliança com os indivíduos". Essa história trágica não redime nenhum de seus personagens. 

Em minhas primeiras leituras, a prosa de Raduan Nassar - que não permite "nenhum repouso, sem ceder jamais, sempre em brasa (...) elevando-se numa lamentação infinita de angústia de uma alma esquartejada" ² - impactou-me tremendamente, desviando-me de outros aspectos da narrativa. Tempos depois, o fundo filosófico do romance começou a ser melhor percebido, muito provavelmente porque, na época (entre 2012 e 2015), eu cursava a graduação em Filosofia. 

Hoje, porém, gostaria de seguir por outra senda.

. . . . . . . 

A crítica literária Leyla Perrone-Moisés afirma que Raduan Nassar se distinguiu dos(as) outros(as) ficcionistas de sua geração ao ter optado "por um engajamento político mais amplo do que o recurso aos temas de um momento histórico preciso. Um engajamento no combate aos abusos do poder, uma defesa da liberdade individual, numa forma de linguagem em que a arte não faz concessões à mensagem" (a citação está na dissertação de Hugo M. F. Abati, referenciada abaixo).

Lavoura arcaica veio a público em 1975, quando, sabemos, vigorava a ditadura militar no país. Durante os anos de chumbo, muitos(as) artistas decidiram atacar e denunciar o regime (a esse respeito, talvez o(a) eventual leitor(a) queira ler minha postagem sobre As meninas, de Lygia Fagundes Telles), sendo às vezes mais ou às vezes menos explícitos em seus trabalhos e tendo que lidar com a censura governamental. Creio que seria improcedente procurar no texto referências a esse período, mas, como observou Perrone-Moisés, há um engajamento político na narrativa elaborada por Nassar, ainda que não diretamente relacionado com o contexto histórico brasileiro da década de 1970.

Duas figuras posicionam-se antagonicamente em Lavoura arcaica: André, o filho, e Iohána, o pai. 

Enquanto o pai, chefe inflexível da família, faz sermões à mesa de jantar, pontificando sobre a disciplina, a retidão, a severidade, os valores herdados da tradição, o filho julga pertencer "a essa insólita confraria dos enjeitados, dos proibidos, dos recusados pelo afeto, dos sem-sossego, dos intranquilos, dos inquietos, dos que se contorcem, dos aleijões com cara de assassino que descendem de Caim" ³

Num polo, a ordem. No outro, o desejo de rompimento dessa mesma ordem.

O capítulo 25 é um dos momentos-chave do romance. No retorno do filho para a casa, ele e o pai dialogam. Contudo, não há ajustamento. É como declara André: "Admito que se pense ao contrário, mas ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos tardios, quando colhidos".

Mesmo não se tratando de um romance alegórico, em Lavoura arcaica, é cabível enxergar o pai como símbolo da lei, da norma, do mando e do controle, enquanto André representa a transgressão e a revolta (embora sem êxito). Suas perspectivas e pensamentos revelam-se inconciliáveis. Hugo M. F. Abati afirma que 

" [...] o ponto de vista paterno é generalizador, excludente e autoritário às mudanças e à individualidade. No topo da pirâmide ou na ponta da mesa, legitima-se verticalmente nos lugares daqueles que os repetem, em conformidade com as leis - o que permite a André pensar na questão das representações num âmbito social maior, no caso, a alienação e a ideologia dominante na boca dos dominados"

Creio que, ao fazer essa afirmação, o estudioso tinha em mente o seguinte trecho do diálogo entre André e Iohána:

" - E fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico, menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o alto, e assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam, acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo como se vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa pantomima atirada por seu cinismo.
- É muito estranho o que estou ouvindo.
- Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio do que o mérito, e não fui eu que semeei essa semente. 
- Não vejo como todas essas coisas se relacionam, vejo menos ainda por que te preocupam tanto. Que é que você quer dizer com tudo isso?
- Não quero dizer nada.
- Você está perturbado, meu filho.
- Não, pai, eu não estou perturbado.
- De quem você estava falando?
- De ninguém em particular; eu só estava pensando nos desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que não são supérfluos nos seus gemidos; era só neles que eu pensava".

Apesar de não ser um irrepreensível sábio - o pai acaba também não sendo, todavia -, o filho extrapola, em sua fala, a visão de sua situação particular, incluindo nela o pobre, o desprovido. Num primeiro momento, pode parecer algo desconexo e confuso, mas, como diz o personagem, "se há farelo nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro". Para meu propósito hoje, é importante notar que, mesmo sabendo da dificuldade (talvez, da impossibilidade) que é escapar do jugo, André sugere que ao menos "o prisioneiro não sirva de boa vontade na casa do carcereiro"

Nos últimos anos, cada vez que me deparo com os dados estarrecedores sobre concentração de renda e desigualdade social no Brasil e no mundo, fico me perguntando por que a insurreição e a fúria que tal estado de coisas, a meu ver, deveria provocar não se espalham pelas ruas com a frequência e a intensidade exigidas pelo atual cenário. Pelo contrário: os explorados são dóceis; veem-se encenações de felicidade da parte dos subjugados; e, pior, pobre aplaudindo rico, pequeno aplaudindo grande, baixo aplaudindo alto

Não sinto no ar qualquer vento revolucionário. As últimas três, quatro décadas, poderão ser chamadas no futuro de "a Era do Conformismo" (os últimos 10 anos, para mal dos meus pecados, serão talvez o período do "conformismo feliz"). Os poderosos nem precisam se dar ao trabalho de empregar todo o seu poder (mas sem dúvida o farão, se necessário): grande parte dos fracos não faz mais do que aprovar e exaltar os fortes.

Isso me adoece. Se predomina a triste avaliação de que não se pode alterar o estado do mundo, os fracos deveriam pelo menos nutrir e externar imensa repulsa pelos fortes.

________________

¹ ABATI, Hugo M. F. Da Lavoura arcaica: Fortuna crítica, análise e interpretação da obra de Raduan Nassar. 1999. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1999. Disponível em:<https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/24282> Acesso em: 01/05/2024. Gostaria de ter conhecido este estudo há mais tempo. Fornece um ótimo panorama do romance e das interpretações que suscitou.

² Juízo de Celia Minart, citado na dissertação de Hugo M. F. Abati

³ NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Todas as citações do romance citadas nesta postagem foram extraídas dessa edição.


BG de Hoje

Esta canção tem um negócio arrebatador e meio apoteótico que não sei definir, mas que eu adoro: Delilah, do FLORENCE + THE MACHINE

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Falou e disse...

"Alguém já disse que a única coisa que cresce indefinidamente é o câncer. E os urbanistas, aqueles que amam as cidades, que gostam de lamber os muros da cidade, devem ficar horrorizados quando digo que as cidades estão crescendo como um tumor no corpo da Terra. Como vamos curar a Terra com essa praga das cidades expandindo-se de maneira inconsequente e indiferente ao fato de estarem plasmando o corpo da Terra dessa matéria manipulada por nós, o asfalto, as lajes, o piso e todas essas coisas que querem nos isolar do corpo da Terra, como se estivéssemos produzindo um nojo da Terra, isolados da terra? Talvez seja por isso que alguns idiotas estão querendo arrumar um foguete e ir para Marte, estabelecer-se em Marte, porque o nojo da Terra já se desenvolveu a ponto de essas pessoas não suportarem mais a atmosfera terrestre e quererem viver em outro planeta. Vi uma planta de uma espécie de assentamento em Marte, uma coisa totalmente futurista , 'super-hiper', sugerida como um equipamento capaz de se autorregular com o clima. Obviamente caberão meia dúzia de pessoas, enquanto o resto morrerá em algum lugar por aqui onde a vida não vale nada, e que se dane o planeta Terra". *

 

* KRENAK, Ailton. Saiam desse pesadelo de concreto! In: Habitar o Antropoceno/ organizado por Gabriela Moulin, Renata Marquez, Roberto Andrés e Wellington Cançado. Belo Horizonte: BDMG Cultural/Cosmópolis, 2022. p. 216-217