Atropelando todo mundo
Antonio Prata
As pessoas se preocupam muito com as sacolas plásticas e as garrafas pet, que boiarão por rios e mares através dos séculos, levando às gerações vindouras mensagens instigantes como "Lugar de gente feliz" e "Contém Fenilalanina", mas se esquecem de outra praga, potencialmente mais longeva e perigosa, que estamos produzindo e espalhando por aí como nunca antes: as opiniões. É opinião por e-mail, Facebook, Twitter, blog, TV, rádio, jornais e revistas. É opinião sobre o futuro da Líbia e o passado da Dilma, remédio pra regime e a legalização da maconha, o ministério de Cristo e os implantes de silicone.
É muito bom, claro, que o debate tenha sido democratizado por todas as revoluções culturais e políticas ocorridas de Gutemberg a Zuckerberg. No Facebook, a Dona Shirley, do 82, não é diferente de Bill Gates, e por mais que Gaddafi mandasse o exército pras ruas, não conseguiria colocar no Twitter um único caractere além dos 140 concedidos a você, a mim e ao bispo de Botucatu.
O problema é que, se por um lado estamos livres para opinar, por outro acabamos atados a uma competição mundial por audiência. Hoje, cada ser humano conectado à rede é uma miniempresa de comunicação de si mesmo, atrás de atenção. O que pode nos levar a encarar as opiniões não como o que elas são, pontas de icebergs que revelam nossas visões de mundo, muitas vezes sem graça e parecidas com as da maioria das pessoas, mas como commodities a serem oferecidas ao mercado.
Atrás dos sinais imediatos de reverberação - retuítes, comentários no blog, polegares erguidos no Facebook ou mesmo e-mails desaforados à redação - , muita gente parece não refletir sobre o que pensa deste ou daquele assunto, mas calcular: qual a opinião mais cool, ou polêmica, ou bizarra, ou engraçada, para oferecer na bolsa mundial de ideias? Pior pro mundo, pois quando estamos dispostos a abraçar qualquer ponto de vista, o resultado inevitável é o cinismo - essa aridez existencial, rio sufocado por sacos plásticos e garrafas pet.
Tal niilismo de salão, embora seja mero jogo para a plateia, apresenta-se como pensamento crítico, uma defesa da liberdade individual contra as amarras da moral e do Estado, mas nada tem de corajoso.
Se o Ibope nos redime de qualquer ofensa, se "falem mal, mas falem de mim" é uma máxima aceita sem discussão, chocar a burguesia não é uma afronta, mas caminho para o sucesso. Além do mais, não estamos na Hungria, nem na Inglaterra de Orwell, em 1984, em que o indivíduo é sufocado pelo Grande Irmão, mas no Brasil, este Velho Oeste onde, ainda hoje, qualquer um com alguns milhares de reais no bolso ou com um cargo eletivo está livre das amarras da moral e do Estado.
Ser politicamente incorreto na Dinamarca talvez seja corajoso. Aqui, é só chover no molhado. Em última instância, quem topa atirar em qualquer coisa que se mova só pra conseguir uma opinião de impacto não é muito diferente de um cara disposto a acelerar seu carro e fazer strike em dezenas de ciclistas que impedem sua passagem, só porque acha um saco esse negócio de ciclista. Isso sim que é niilismo! É ou não é?
(Essa crônica foi publicada no jornal Folha de S. Paulo, caderno Cotidiano,
no dia 2 de março de 2011, p. C2)