segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Pré-condições para o exercício da Literatura



" É isso aí. A liberdade intelectual depende de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual [...] Foi por isso que coloquei tanta ênfase no dinheiro e num quarto próprio".


Virginia Woolf - Um teto todo seu

 
Em 1929, foi publicado o ensaio Um teto todo seu* (A room of one's own, no original), de Virginia Woolf. Resultado de duas conferências pronunciadas em estabelecimentos de ensino para mulheres, na Inglaterra, o texto versaria sobre a relação entre estas e a ficção. A escritora, achando que não conseguirá cumprir o primeiro dever de um conferencista - "estender-lhes, após uma hora de exposição, uma pepita de verdade para que a guardem entre as páginas de seus cadernos de notas e para sempre a conservem sobre o consolo da lareira" - defende a seguinte opinião no ensaio:

"a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu se pretende mesmo escrever ficção; e isso, como vocês irão ver, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção".

O ensaio incide, principalmente, sobre os elementos (materiais, históricos, filosóficos e psicológicos) imprescindíveis, na visão da escritora, para que as mulheres possam realizar trabalhos literários. Em dado momento, ela se pergunta: "Por que os homens bebiam vinho e as mulheres, água? Por que um sexo era tão próspero e o outro, tão pobre? Que efeito tinha a pobreza na ficção? Quais as condições necessárias para a criação de obras de arte?"

. . . . . .

No capítulo II, a ensaísta nos informa que herdara quinhentas libras anuais de uma tia que viveu na Índia. Soube dessa notícia na mesma noite em que foi aprovado, na Inglaterra, o direito de voto às mulheres. Com franqueza, escreve:

"Dos dois - o voto e o dinheiro - o dinheiro, devo admitir, pareceu-me infinitamente mais importante. Antes disso, eu ganhara a vida mendigando trabalhos esporádicos nos jornais, fazendo reportagens sobre um espetáculo de burros aqui ou um casamento ali : ganhara algumas libras endereçando envelopes, lendo para senhoras idosas, fazendo flores artificiais, ensinando o alfabeto a crianças pequenas num jardim de infância. Tais eram as principais ocupações abertas às mulheres antes de 1918".


A renda fixa promoveu uma "mudança de ânimo", pois ao cessarem "o esforço e o trabalho árduo", cessaram também "o ódio e a amargura". E assim, pode-se dedicar tempo à Literatura...

Mais à frente, no capítulo VI, Virgínia Woolf acrescenta à sua argumentação longo excerto escrito pelo professor Arthur Quiller-Couch, do qual destaco o seguinte trecho (tenha em mente que ele fala mirando a Inglaterra de seu tempo):

"É certo - por mais desonroso que seja para nós como nação - que, por alguma falta de nossa comunidade, o poeta pobre não tem hoje em dia, nem teve nos últimos duzentos anos, a mínima chance. Creiam-me - e passei uns bons dez anos observando umas trezentas e vinte escolas primárias -, podemos tagarelar sobre a democracia, mas, na verdade, uma criança pobre na Inglaterra tem pouco mais esperança do que tinha o filho de um escravo ateniense de emancipar-se até a liberdade intelectual de que nascem os grandes textos".


Por trás de um bom livro ficcional (penso, por exemplo, em Rumo ao farol, da própria Virgínia Woolf) há, evidentemente, o intelecto (e também o talento) de sua autora. Esse intelecto, contudo, para atingir toda a sua potencialidade, depende de condições bem objetivas, que podem ser mensuradas e quantificadas. Sem olhares cor-de-rosa: a Literatura, como tudo na existência, não escapa aos condicionamentos materiais.
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* WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985 [tradução de Vera Ribeiro]

BG de Hoje

Há determinados grupos que entram para a história da música pop na categoria das lendas. É o caso dos YARDBIRDS. Afinal, quantas bandas de rock podem dizer que, entre seus membros, estiveram três dos maiores guitarristas do gênero: Eric Clapton, Jimmy Page e Jeff Beck? (o último está no vídeo abaixo, tocando na canção Heart full of soul).

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O que significará editar livros no século XXI? (2)

(tirinha de Adão Iturrusgarai, publicada na Folha de S. Paulo)

André Schiffrin, editor sobre o qual falei na postagem anterior, em entrevista publicada no mês passado*, considera que os e-books, por enquanto, se restringem aos best-sellers, principalmente nos EUA. Mesmo assim, Schiffrin acredita que

"os e-books causam duas situações que a longo prazo serão desastrosas : destroem as livrarias, porque as pessoas compram pela internet, e são vendidos pelo mesmo preço que os paperbacks [reedições em formato econômico], que são a única maneira que as editoras têm para manter a venda de títulos antigos. O fato é que a Amazon não cria obras. Ela vende o que os outros fazem, mas jogando os preços para baixo. Isso, é claro, não é um modelo que possa ser bem sucedido. Se as editoras quebrarem, de onde sairão os livros?"

O que destacar nessa declaração?

De fato, os e-books (e mesmo a oferta de títulos impressos via web) afetarão - como já afetam - o comércio de textos nos seus pontos de venda mais tradicionais, as livrarias. Resta saber se as lojas e os livreiros conseguirão adaptar-se a tempo, para não serem engolidos pela comodidade dada ao consumidor por essas novas formas de adquirir livros. Quanto ao impacto da concorrência direta de uma grande companhia como a Amazon, penso que as editoras "de papel" não têm tanta razão para se preocuparem, pelo menos por ora.

Sobre este último aspecto acima mencionado, gostaria de chamar a atenção do(a) leitor(a) para o que escreve o ensaísta e crítico cultural mexicano Gabriel Zaid.

Num trabalho que não me canso de recomendar (Livros demais!: sobre ler, escrever e publicar**), Zaid não têm receio de afirmar que

"As pessoas envolvidas com o livro (autores e leitores, editores e livreiros, bibliotecários e professores) têm a mania de sentir pena de si mesmas, e uma tendência para se queixar mesmo quando tudo vai bem".

Essas pessoas, de acordo com o ensaísta, "veem como falha o que na verdade é uma benção", porque, diferentemente de jornais, cinema ou televisão, o negócio do livro "é viável em pequena escala". Isso "encoraja a proliferação de títulos e editoras, o florescimento de iniciativas várias e díspares e uma abundância de riqueza cultural". Se pensarmos, acrescento eu, que uma empresa do porte da Amazon, por exemplo, seguindo procedimentos mercadológicos de âmbito global - daí sua aposta em best-sellers - não lançará livros necessários, mas que teriam venda modesta, há ainda espaço para editoras menores.

É possível que Gabriel Zaid esteja sendo otimista além da conta, mas ele parte do princípio de que

"quando a população de um país cresce e este se torna mais rico e mais bem-educado, são publicados, paradoxalmente, mais títulos com vendas menores : aumenta a variedade de especialidades e de interesses, e fica mais fácil atrair alguns milhares de leitores interessados em algo muito específico. Cresce o número de títulos viáveis para a publicação em edições de poucos milhares de exemplares".

Caberia, então, às editoras "de papel" organizarem-se melhor em meio a esse universo de leitores com interesses múltiplos.

Pergunta antipática : ao lado do avanço econômico verificado em alguns países ditos emergentes, como o Brasil, há um avanço correspondente na área educacional para favorecer esse ambiente de pluralidade editorial descrito por Zaid?

Deixarei o questionamento em aberto. Volto no fim da semana, falando de um ensaio da escritora britânica Virginia Woolf.

* "Disney não pagou nada ao plagiar", diz Schiffrin. Folha de S. Paulo, São Paulo, 9 out. 2011, Caderno Ilustríssima, p. 4-5

** ZAID, Gabriel. Livros demais!: sobre ler, escrever e publicar. São Paulo, Summus, 2004 [tradução de Felipe Lindoso]

BG de Hoje

O termo paperback, empregado por André Schiffrin e citado acima, fez-me lembrar imediatamente da canção Paperback writer, uma das minha preferidas no vasto repertório dos BEATLES. No vídeo abaixo, o quarteto tocando-a numa apresentação no Japão.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O que significará editar livros no século XXI? (1)


No mês passado, li na revista Carta Capital* que a empresa Amazon comprou, tanto para a impressão quanto para o formato eletrônico, os direitos de publicação do livro For a song and a hundred songs, do escritor dissidente chinês Liao Yiwu. Segundo a reportagem, o contrato "é um passo importante para a editora interna da Amazon, que até agora só tinha assinado com autores do estilo autoajuda [...] ou de suspense [...]".

Ainda segundo Carta Capital

"ao atrair autores do calibre de Liao, a Amazon ameaça controlar todas as etapas da publicação de um best seller premium, do desenho do layout à publicação, distribuição e promoção dos títulos, deixando os editores tradicionais com cada vez menos espaço no mundo da literatura digital".

A Folha de S. Paulo**, reproduzindo matéria do New York Times, repercute situação similar: "a Amazon.com mostrou aos leitores que eles não precisam de livrarias físicas. Agora incentiva os escritores a descartar as editoras". E de acordo com Dennis Loy, representando os editores tradicionais, estes "estão apavorados e não sabem o que fazer".

Pela primeira vez, no início deste ano, as vendas dos livros digitais ultrapassaram as dos livros impressos, nos EUA. O mesmo cenário ainda não se verifica na Europa e noutras regiões do planeta, mas a pergunta, penso eu, não é inútil: o que significará editar livros no século XXI?

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Discordando da frase "livro é um produto como outro qualquer", Paulo Roberto Pires promove boa reflexão sobre o mercado editorial atual, ao fazer resenha*** da obra O dinheiro e as palavras, do experiente editor franco-americano André Schiffrin.

O resenhista diz que, segundo Schiffrin,

 "editar livros hoje [...] é atividade essencialmente parecida com o que era no século 19: no fundo das histórias e cifras de vampiros virginais, anjos apaixonados ou labradores amorosos, está o trabalho artesanal de escritores, editores e artistas gráficos. A mudança crucial acontece, lembra ele, quando o ramo deixa de ser visto como ofício para se transformar em mais um negócio ' de mídia ' - com investidores à espera de lucros pelo menos três vezes maiores do que o padrão".

Visão excessivamente idealizada e voluntarista? Talvez. Volto a André Schiffrin na próxima postagem, ao discutir uma entrevista dada por ele. Também falarei, na conclusão do assunto, de um trabalho de que gosto muito : Livros demais!, do mexicano Gabriel Zaid.

* Best sellers de qualidade, Carta Capital, São Paulo, ano 17, n. 668, p. 80-81. 19 out. 2011 [matéria assinada por Felipe Marra Mendonça]


** Amazon exclui editoras e negocia com escritores, Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 out 2011, Caderno Mercado, p. 6

** Os editores no divã. Folha de S. Paulo, São Paulo, 9 out 2011, Caderno Ilustríssima. p. 4-5 [matéria assinada por Paulo Roberto Pires]


BG de Hoje

Para mim, a mais perfeita canção pop já gravada é Superstition, de Stevie Wonder. Mas já falei dela aqui nesta seção. Então, vamos à segunda melhor: No quarter, fantástica viagem sonora a cargo da mítica banda inglesa LED ZEPPELIN - link para o vídeo.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A morte


Assistindo à TV, na madrugada, acabei vendo, numa "zapeada" de canais,  um comercial idiota da Igreja Universal do Reino de Deus.

Ao invés dos "pastores" apelarem para o primitivismo das pessoas, melhor seria se divulgassem este belíssimo poema de Manuel Bandeira*, antes de vociferarem suas crenças simplórias.

PREPARAÇÃO PARA A MORTE

A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

* BANDEIRA, Manuel. Preparação para a morte. In: _______________. Estrela da vida inteira. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993


BG de Hoje

O MOTÖRHEAD sempre teve a humildade de tocar (e gravar) canções de outras bandas tão boas quanto eles. Um exemplo está nesta versão (originalmente gravada pelo AC/DC), It's a long way (to the top if you wanna rock'n'roll)


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O livro, em sua materialidade



Pessoas de meu convívio costumam achar engraçado ou mesmo se espantam com o fato de eu ainda encomendar e comprar CD's e livros nas (antigamente) chamadas "casas do ramo".

Tenho coleções modestas, é verdade, mas que muito me satisfazem e às quais vou adicionando novos exemplares, pacientemente, no intuito de aumentá-las. Foi assim que me habituei a obter esses produtos culturais. Pode até ser um comportamento antiquado e conservador, ainda mais em tempos de "livre acesso". Prefiro continuar assim, entretanto.

Outro dia, refletindo sobre essa necessidade de experimentar a posse dos objetos que valorizo, acabei também pensando sobre os prognósticos recorrentes em torno do "fim do livro". E decidi reler um texto no qual o autor se posiciona de forma contrária ao coro dos "biblioclastas".

No ensaio intitulado Do fim da cultura ao fim do livro*, Sérgio Paulo Rouanet faz a seguinte pergunta:

"Seria, realmente, a crise do livro que tanto preocupa nossos intelectuais ou [é] algo que se encontra por detrás dessa crise, a crise da cultura da qual a crise do livro seria, senão um epifenômeno, pelo menos um sintoma?"

Para ele, previsões sobre o futuro do livro - sejam elas pessimistas ou não - deveriam estar ligadas ao "destino da cultura para cuja formação ele [o livro] constitui o veículo mais prestigioso".

O ensaio discute aspectos cruciais envolvendo a suposta diferença entre Cultura e Civilização ; o embate cultura de massa X "alta cultura" (termo que Rouanet emprega sem as aspas) ; a globalização e o lugar do multiculturalismo, entre outros assuntos. Recomendo vivamente a leitura integral do artigo. Para os objetivos desta postagem, porém, destacarei estas passagens:

"Todos nós, intelectuais, vivemos dos livros e para os livros".
"Como se isso não bastasse, somos incorrigíveis fetichistas, fascinados pelos livros enquanto objetos, e não somente enquanto depositários de ideias e informações".
"Sim, somos filhos da ' galáxia de Gutenberg ' e não poderíamos aceitar facilmente a passagem para outra galáxia [...] Que seria de nós, se a Internet matasse o livro?

E, por fim, diretamente ligada à citação anterior: "Levado às últimas consequências, esse comportamento é, certamente, irracional".

Sérgio Paulo Rouanet acerta ao perceber um componente irracionalista na inaceitação da mudança de suporte - mudança essa que não é a ameaça real à cultura livresca. E acerta também ao alertar para o lado "fetichista" existente no hábito de colecionar livros. Não obstante, minha lista de encomendas só faz aumentar...

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No conto Bibliomania**, de Gustave Flaubert,  é realçado um outro aspecto - sem dúvida mais sinistro - relacionado à valorização dos livros apenas em sua dimensão material, no momento de formar e manter uma coleção.

Li essa história recentemente, mas ouvi falar dela há um certo tempo, no blog Nenhum lugar, de Milena Magalhães. Naquela ocasião, Milena observou que "possuir livros, constituir uma biblioteca, tem muito a ver com aquilo que Caetano Veloso chama de 'amor tátil'. É um fetiche, uma assombração, uma obsessão, escravidão até". E ao final, ela pergunta se algum leitor, ao menos uma vez, não esteve no lugar do personagem central do conto.

Escrito por um Flaubert ainda adolescente, Bibliomania apresenta-nos Giacomo, livreiro de Barcelona, "um desses seres satânicos e bizarros, tais como os que Hoffmann desenterrava em seus sonhos". Quando se dava bem num leilão de obras raras, contudo, voltava para casa animado ; "pegava o livro querido, acalentando-o com os olhos, olhava-o e amava-o como um avarento, o seu tesouro, um pai, sua filha, um rei, sua coroa".

Essa paixão de Giacomo o conduzirá a um estado doentio e mórbido; não se interessava pelo conteúdo dos objetos que possuía. Mal sabendo ler,

"Ele amava um livro porque era um livro : amava seu cheiro, seu formato, seu título. O que ele amava no manuscrito era sua velha data ilegível, as letras góticas, bizarras e estranhas, as pesadas dourações que carregavam os desenhos ; eram páginas cobertas de poeira, poeira da qual ele aspirava, com delícia, o perfume doce e suave. Era aquela bela palavra finis, rodeada de dois cupidos sobre um laço; apoiando-se numa fonte gravada num túmulo ou repousando numa cesta entre as rosas, as maçãs douradas e os buquês azuis".

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Os livros, em sua materialidade, são, às vezes, objetos fascinantes e encantadores e esse é um fator importante - mas não determinante, na maioria dos casos - para que alguém se disponha a colecioná-los. Mas esse mesmo fator pode também - e com mais frequência do que se imagina - inspirar, inclusive no plano da realidade, figuras como o sombrio livreiro de Barcelona descrito ficcionalmente por Flaubert.

* ROUANET, Sérgio Paulo. Do fim da cultura ao fim do livro. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003, p. 57-77

** FLAUBERT, Gustav. Bibliomania. In: ____________. Gothica: contos juvenis de Gustave Flaubert. São Paulo: Berlendis e Vertecchia, 2006 [tradução de Raquel de Almeida Prado e organizado por Bruno Berlendis de Carvalho]

P.S. Só depois de terminar o texto desta postagem é que fui ler interessantíssima matéria na Folha de S. Paulo (Caderno Tec - 02 nov. 2011) falando sobre herança digital; ou seja, segundo a reportagem, "os bens que só existem on-line, guardados nos servidores, via internet", como vídeos, livros, músicas, fotos, e-mails e documentos. Pelo visto, não se deixa de colecionar com o advento da web...

BG de Hoje

A letra desta canção representa bem minha vidinha medíocre ; o vídeo que a acompanha lembra o assunto discutido na postagem: NINE INCH NAILS, Every day is exactly the same (link para o vídeo)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O jogo de Cortázar (2)


"Do sim ao não, quantos haverá? Tudo é escrita, ou seja, fábula. [...] A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, literatura, pintura, escultura, agricultura, psicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas".

Julio Cortázar - O jogo da amarelinha

Uma indicação valiosa de Rachel Nunes levou-me à leitura do ótimo ensaio Cânone literário e valor estético : notas sobre um debate de nosso tempo*, de Idelber Avelar (disponível aqui). Por questão de espaço, não vou discuti-lo por ora (mas certamente, voltarei a esse texto em outras oportunidades).

Para meu interesse momentâneo, gostaria de destacar duas passagens do ensaio. Ao falar do "caráter contingente" dos valores estéticos no campo da Literatura, Avelar observa que, "nos últimos trinta anos, nota-se uma acentuadíssima queda no capital cultural de um escritor que chegou a ser considerado um dos maiores do continente", referindo-se a Julio Cortázar.

E acrescenta:

"Uma determinada conjunção de fatores estéticos e políticos criou as condições para uma leitura celebratória de Cortázar nos anos 1960. A obra não parece ter renovado sua legibilidade depois daquele contexto (o que não quer dizer, evidentemente, que não possa vir a fazê-lo num momento futuro)".

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Provavelmente o último período da história recente em que a Política teve mais importância do que a Economia, a década de 1960 também foi um período caracterizado por produções literárias contestadoras da tradição narrativa ficcional (o livro de Cortázar foi publicado em 1963).

Cabe verificar se este é o caso da obra que estamos discutindo.

A leitura não linear para qual o livro convida o leitor ; o denso fluxo de raciocínios de Horacio Oliveira lançados "a seco" em cada página ; capítulos como o de nº 68 - em que se reproduz cena com as expressões inventadas entre a Maga e Oliveira - ou as linhas "morellianas" ; tudo isso, somado a outros elementos, está realmente distante do que se costuma encontrar no gênero romanesco. Penso, contudo, que não basta uma proposta de vanguarda para gerar boa prosa literária.

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Há um trecho no capítulo 4 que julgo necessário destacar (e peço desculpas ao(à) leitor(a) pois não era isso o que eu havia prometido na penúltima postagem).

Entre todos os integrantes do "Clube da Serpente" de Paris, a Maga (Lucía) não estava "impregnada" da intelectualidade característica dos outros membros - característica também dos amigos argentinos com os quais o protagonista conviverá na volta ao seu país natal.

Chamada até mesmo de burra, a Maga, no entanto, tinha sua própria maneira de interagir com o mundo:

" ' Fecha os olhos e acerta o alvo ', pensou Oliveira. ' Exatamente o sistema Zen de disparar o arco. Mas acerta no alvo simplesmente por não saber que esse é o sistema. Eu, em contrapartida... Toc toc. E a vida continua' ".

Será que os apreciadores de Literatura, os estudiosos, os literatos - e os intelectuais, por extensão - são (ou pior, tornar-se-ão) necessariamente tão chatos quanto o(s) narrador(es) de O jogo da amarelinha?

* AVELAR, Idelber. Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate de nosso tempo. Revista Brasileira de Literatura Comparada, São Paulo, vol. 15, p.113-150, 2009. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/revista/2009/15/83/download> Acesso em 25 out. 2011

** CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. 11 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 [tradução de Fernando de Castro Ferro]

BG de Hoje

Virou moda nos últimos 15, 16 anos regravar canções compostas por ERASMO CARLOS (algumas destas, resultado da parceria famosa com Roberto) ou, pelo menos, elogiar o trabalho do compositor/cantor carioca. Não sou fã do artista, mas gosto de algumas sacadas bem humoradas em seu trabalho, como, por exemplo, Mesmo que seja eu (do disco Amar pra viver ou morrer de amor, de 1982 - link para vídeo), que alcançou bastante sucesso também na voz de Marina Lima.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Premiações, livros e leitura: algumas questões



Voltarei a escrever sobre O jogo da amarelinha na próxima semana; outro assunto acabou "impondo-se" ao blogueiro.

Antes de mais nada, gostaria de deixar claro que sou plenamente favorável ao estabelecimento, fomento e criação de prêmios para produções culturais, técnico-científicas e artísticas, não me importando muito se o concedente da recompensa é o Estado ou uma entidade privada.

Ainda assim, o anúncio de alguns vencedores do Jabuti 2011 (confira todos, de acordo com a categoria, clicando aqui) levou-me a pensar sobre qual seria a função ideal para um prêmio como esse. Mas antes de falar disso, vale a pena dar uma rápida explicação a respeito da organização e do regulamento do concurso.

É a Câmara Brasileira do Livro (CBL), associação que reúne as maiores empresas editoriais do país, a responsável pelo prêmio Jabuti, criado no final dos anos 1950. Segundo o regulamento (clique aqui), o júri é composto por "profissionais habilitados, indicados pelos associados da Câmara" e escolhido através de sorteio, por uma comissão montada pela própria CBL. Cada obra inscrita é analisada "por uma equipe de três jurados especialistas em cada categoria". O regulamento estipula formas de impedir que autores, editoras e obras sejam favorecidos por vínculos diretos com a Comissão Organizadora ou com o corpo de jurados. Ao todo, o prêmio Jabuti contempla 29 categorias, indo além de publicações puramente literárias.

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Para mim, é inteiramente legítimo que a CBL realize uma premiação voltada para obras editadas por seus associados. E não duvido de que há estratégias de marketing ligadas ao fortalecimento de certas marcas e a aposta em determinados nomes para "puxarem" vendas futuras, e que, no somatório geral, tudo isso acabe condicionando a escolha dos títulos vencedores no concurso. Nada de absurdo nesse procedimento (até porque o valor em dinheiro do prêmio - R$ 3.000 por categoria - é relativamente baixo).

Gostaria, entretanto, de destacar uma passagem lida no site da entidade:

"Polêmicas à parte, o fato é que o Jabuti tornou-se um ' patrimônio nacional '.     ' Com obstinação e argúcia, à maneira do seu inspirador, o Prêmio Jabuti avançou sem esmorecer, ganhou agilidade e encarou uma longa jornada. Avançou, ganhou densidade e respeito, conquistou o reconhecimento de todos os que, no Brasil, produzem informação, conhecimento e arte, de todos os que escrevem, publicam e leem livros. Tornou-se, ele próprio, um personagem vivo da cultura brasileira contemporânea ', destaca a editora e ex-presidente da CBL, Rosely Boschini. Na maior festa do livro no Brasil, ganhar ou não o Prêmio, já não faz diferença. O importante é participar".

De fato, hoje o Jabuti é altamente prestigioso ; mais do que isso, ele orienta e sugere leituras.

Por ano, no país, publicam-se milhares de títulos. É praticamente impossível, para qualquer leitor, tomar conhecimento de todos eles, ainda que superficialmente. Por isso, certas agências têm papel importante na filtragem daquilo que é dado a ler. Considero esse papel, mesmo com toda a controvérsia que o cerca, fundamental, sobretudo num tempo histórico em que há tanta circulação de dados e nos sentimos, às vezes (ou frequentemente, em alguns casos), desorientados nesse torvelinho informacional.

Dessa forma, acho que o prêmio Jabuti poderia conferir a autores e autoras menos badalados, mas artisticamente relevantes, a chance de terem suas obras divulgadas para um público maior, menos especializado.

Sem me atrever a discutir os vencedores de todas as categorias (sobre as quais - a maioria - não tenho conhecimento algum) e ficando apenas no setor Literatura, penso que, ao premiar Ferreira Gullar (na Poesia, com o livro Em alguma parte alguma), Dalton Trevisan (no Conto/Crônica, com o livro Desgracida) ou Marina Colasanti (no Juvenil, com o livro Antes de virar gigante e outras histórias), por exemplo, a CBL apenas consagra aqueles que já não precisam mais de consagração.

Não estou questionando a qualidade do trabalho desses artistas (até porque ainda nem li as obras mencionadas). Meu ponto de argumentação vai em outra direção : não se está perdendo a oportunidade de ampliar o repertório do público leitor ao laurear esses nomes, conhecidíssimos, e não outros?


BG de Hoje

"Eu choro tanto, me escondo e não digo/ viro um farrapo, tento suicídio/ Com caco de telha, com caco de vidro". Refrão forte, nessa maravilhosa composição de LUIZ MELODIA, (Farrapo humano). OBS: Esta versão reggae (a original é um rock), com participação do Skank - banda de que não gosto - ficou muito boa, acho eu.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O jogo de Cortázar (1)


Foi o Existencialismo que me levou a ler, pela primeira vez, O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar. Isso foi há quase 20 anos.

Entre as disposições filosóficas cuja pretensão é refletir, sem recorrer à metafísica, sobre noções e valores (muito) caros à humanidade - ética e moral, liberdade e autonomia, a definição de realidade, entre outros -, o pensamento existencialista, a despeito de sua  "impopularidade" pós-1960, é o que mais me interessava quando adolescente (e continua interessando, agora que já não sou jovem).

Por isso, li com avidez, ao longo do tempo, algumas obras ficcionais engendradas a partir dessa disposição. Isso se aplica, certamente, a romances de declarada "filiação" existencialista: por exemplo, O estrangeiro, A peste e A queda, de Camus ; A idade da razão, Sursis e A náusea, de Sartre (autores, é bom acrescentar, com posições distintas entre si). Também se aplica, penso eu, aos romances, diríamos, apenas "simpatizantes" àquele movimento filosófico, como o livro publicado em 1963 pelo escritor argentino e que será o assunto desta e da próxima postagem.

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Sendo franco, aquela primeira leitura do texto de Cortázar não me agradou. A postura blasé, característica da maioria dos personagens, principalmente do protagonista Horacio Oliveira e dos outros membros d ' "O Clube", acabou irritando, por seu acúmulo. Isso sem falar nas centenas de citações em francês - idioma que até hoje não compreendo - e que o tradutor manteve (poderiam ser traduzidas em notas de rodapé, não?). Há ainda a imensa profusão de referências à pintores, poetas, romancistas, músicos, etc. dos quais nada conhecia. NOTA: E esse é sem dúvida um dos desafios propostos pel' O jogo da amarelinha: o leitor ideal inscrito nesta obra é um leitor bastante intelectualizado.

A segunda leitura deste romance*, há alguns meses, foi motivada justamente pelo livro que discuti aqui, dias atrás (A vida: modo de usar, de Georges Perec). Os dois trabalhos têm em comum a proposta lúdica e a possibilidade da leitura aleatória, "desrespeitando" o ordenamento tradicional das estruturas romanescas. O livro de Perec, entretanto, levando em conta apenas o aspecto da inovação formal, interessa-me muito mais.

N'O jogo da amarelinha estamos no terreno das narrativas que prescindem de enredo: quase não há o plano da ação pois este é suplantado inteiramente pelo plano do discurso. Seja nas habitações, ruas e estabelecimentos comerciais de Paris; seja nos apartamentos, no circo ou no manicômio - os últimos em solo argentino -, Horacio e todos os que gravitam a seu redor falam - e em demasia - mais do que atuam; algo, aliás, nada em desacordo com um livro no qual são as ideias e os duelos verbais entre esses personagens que devem ser salientados.

E, talvez, o maior mérito do livro de Julio Cortázar se encontre no questionamento radical a que submete a construção da ficção literária. Em quase todo o romance, implicitamente, circula a pergunta: o que é necessário para uma narrativa ser considerada Literatura e não outra coisa?

Na próxima semana, três excertos do romance serão discutidos.

* CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. 11 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 [tradução de Fernando de Castro Ferro]

BG de Hoje

Há nesta canção, me parece, uma urgência e uma angústia bastante estudadas por parte da cantora alemã (de ascendência nigeriana) AYO. Nada contra, muito pelo contrário. Adoro Down on my knees justamente por isso.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A vida: modo de usar (2)


Georges Perec levou cerca de nove anos para concluir A vida: modo de usar*. É um livro feito com o cuidado do artífice, do artesão. Não à toa, o construtor dos quebra-cabeças, Gaspard Winckler, personagem essencial da trama, impõe-se no romance por sua paciência e a imensa habilidade de artesão. Por outro lado, à medida que se vai lendo, começa a se desenhar, para o leitor, um projeto perceptível por trás de tudo o que está naquelas páginas. E a esse respeito, vale a pena ler o capítulo XXVI (2ª Parte), quando o protagonista Bartlebooth estabelece os "três princípios diretivos" de seu plano pessoal. Mais uma vez, personagem e autor se tocam.

Mas A vida: modo de usar não "funcionaria" se o jogo proposto deixasse de convidar o leitor a participar. Porém, como apreender todo o romance (ou romances, com está no subtítulo da obra)? Sucedem-se descrições/enumerações extensas e altamente meticulosas dando conta, por exemplo, de receitas culinárias, catálogos para venda de produtos, cardápios de jantares e outras festividades, bem como quadros, obras de arte e livros criados por autores inexistentes (ao mesmo tempo em que se fala de pessoas cuja existência pode ser comprovada no plano da realidade). O livro reproduz, inclusive graficamente, fragmento de jornal, cartão de visita, cartaz de espetáculo, nota de falecimento, página de palavras-cruzadas, etc.

Há ainda dezenas de personagens cujas histórias ocorreram num intervalo de tempo bastante amplo e em lugares variados do mundo (embora o prédio situado no meio da rua Simon-Crubellier seja o centro espacial da(s) narrativa(s)). O leitor precisa parar para respirar!

Li o livro duas vezes seguidas. Na primeira, linearmente, segui a ordem numérica sem salto algum ; na segunda, optei por escolher os capítulos por meio dos personagens ou locais do prédio destacados em cada um deles, fazendo ordenamentos de leitura provisórios. Mas certamente é possível "movimentar-se" pela obra de outras maneiras.

Na postagem publicada em 04/10/11, observei que o livro guarda semelhança com as enciclopédias. E isso pode ser comprovado tanto pela abundância de "informação"** a circular pelo texto, quanto pelos índices remissivos e referências cronológicas disponíveis na seção de anexos de A vida: modo de usar.

Durante minha leitura suspeitei de que um livro assim só poderia ser o resultado do trabalho de um escritor que foi também um leitor inveterado. E estava certo: no Pós-escrito, Perec lista os autores dos quais extraiu algo para compor sua(s) narrativa(s): Borges, Calvino, García Márquez, Thomas Mann, Nabokov, Rabelais, Kafka, Flaubert, Jules Verne e mais 20 outros.

. . . . . . 

Não gostaria de encerrar essa primeira discussão sobre A vida: modo de usar (certamente voltarei a escrever sobre esse livro) sem apresentar ao(à) leitor(a) pelo menos um pouco da criatividade e da elegância da escrita de Georges Perec. Para isso escolhi o capítulo LX (3ª Parte), no qual se conhecem as ocupações do personagem Cinoc.

Ao chegar ao edifício, a concierge teve dificuldade para saber dizer corretamente o nome do novo morador. Consultou outros e lhe foram apresentadas algumas soluções de pronúncia que o narrador expõe de modo didático (e irônico). O próprio nomeado não fazia questão disso.

Cinoc "exercia um curioso ofício. Como ele próprio se dizia, era um ' matador de palavras ': trabalhava na atualização dos dicionários Larousse", eliminando os vocábulos e significados fora de uso.

Escreve Perec:

"Quando se aposentou, em 1965, após cinquenta e três anos de escrupulosos serviços, fizera desaparecer centenas e milhares de ferramentas, de técnicas, de costumes, de crenças, de ditos, de pratos, de jogos, de apelidos, de pesos e medidas; riscara do mapa dezenas de ilhas, centenas de cidades e rios, milhares de capitais de cantões; devolvera ao anonimato taxionômico centenas de espécies de vacas, pássaros, insetos e serpentes, de peixes um tanto especiais, variedades de conchas, plantas não de todo semelhantes, tipos particulares de legumes e de frutos; fizera desaparecer na noite dos tempos coortes de geógrafos, missionários, entomologistas, de Pais da Igreja, homens de letras, generais, Deuses e Demônios".

Na próxima semana, começo a escrever sobre O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar.

* PEREC, Georges. A vida: modo de usar. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 [tradução de Ivo Barroso]

** Por se tratar de uma obra obra ficcional, o conceito de informação precisa ser aqui um pouco alargado. O livro apresenta certa quantidade de dados factuais, mas a maior parte da matéria narrada se baseia em situações inventadas, inclusive a partir de lugares e pessoas existentes no plano da realidade.

BG de Hoje

Essa canção me lembra uma época em que meu corpo conseguia resistir a noites e noites de bebedeira e quase sem dormir. Não sinto saudade daquele período, embora fosse melhor do que hoje: MEGADETH, A secret place.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Meu problema com as artes plásticas (e com o conceito de arte em geral)



Deveria hoje dar prosseguimento à discussão do livro de Georges Perec mencionado na postagem anterior. Mas a leitura de uma matéria da revista Carta Capital na semana passada (Relato de um naufrágio*) mudou o planejamento.

A jornalista Leneide Duarte-Plon destacou alguns pontos de uma publicação lançada pelo ensaísta e crítico de arte francês Jean Clair. No livro L'hiver de la culture (O inverno da cultura), Clair não esconde sua aversão pelas obras e artistas inseridos no que chamamos "arte contemporânea" (para ele, esta expressão deveria sempre vir entre aspas). Na matéria, lê-se declaração pejada de reacionarismo e preconceito por parte do crítico francês:

"Em nome da democratização da arte, para observar Leonardo, Ticiano, Rembrandt, Velázquez ou Vermeer, deve-se exigir menos respeito e reverência do que os requeridos antigamente para entrar em um recinto de orações? (questionamento surgido ao descrever um visitante no Museu do Louvre "que veste short, a cueca aparecendo e uma camiseta sem mangas na qual se vê um peito peludo, cheirando a suor").

A arte "performática" e de "instalações" é atacada com dureza e a lucrativa atuação de um grupo seleto de artistas plásticos que adota práticas típicas do sistema financeiro não é deixada de lado na crítica de Jean Clair, que pergunta: "o que se pode ensinar hoje numa escola de belas artes a não ser dicas, não mais o savoir-faire de um métier, mas o saber vender de um mercado?"

A visão do ensaísta é altamente pessimista. Para ele, só se salvariam a música e a dança. E por quê?

"A razão é que há nessas disciplinas, e a palavra aí volta a ter sentido, um métier, um domínio do corpo longamente aprendido, uma técnica singular, ensinada e transmitida ano após ano. Ora, não há mais métier ou maestria nas artes plásticas".

A matéria termina com a observação de que o panorama da "arte contemporânea", segundo Clair, "sinaliza uma crise de civilização, iniciada no movimento surrealista". Na frase-resumo do crítico francês, "a arte contemporânea é o relato de um naufrágio e um desaparecimento".

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Antes de mais nada devo esclarecer que nada entendo de artes plásticas. Fiquei pensando, contudo, numa das afirmativas do crítico Jean Clair: "não há mais métier ou maestria nas artes plásticas". E arrisco dizer: está deixando de existir também nas outras manifestações artísticas.

Vejo algumas obras de arte contemporânea. E sendo franco: quase nunca consigo separar a criatividade da empulhação. Ignorância de minha parte? É provável. Mas penso ser também - e suponho que algo parecido aconteça com o(a) leitor(a) - reflexo de um estado de coisas que exige outra explicação.

Acredito na educação estética. Duvido que alguém nasça com um "gene de reconhecimento da beleza artística", cuja "ação orgânica" se dissemina, naturalmente, quando seu portador é submetido a uma sinfonia de Beethoven ou a um texto de Balzac. Arte, seja a de matriz mais popular ou a mais erudita, implica aprendizado, tanto por parte de quem faz, quanto por parte de quem apenas aprecia. Não obstante o prazer que possa proporcionar, há uma "dimensão laboriosa" do fazer/fruir artístico que não deveria ser negligenciada. Não é ocioso lembrar que arte e artífice têm o mesmo radical linguístico.

Assim sendo, como limitado espectador/fruidor de arte (em constante aprendizado, acrescento), só consigo apreciar aquilo que me parece indicar essa "dimensão laboriosa" acima referida.

É o que consigo, por exemplo, ver nos belíssimos (e famosos) quadros reproduzidos nesta postagem: o primeiro, O Retrato de Louis-François Bertin, de Jean Ingres (1780-1867), e o segundo, O Triunfo de Baco ou Os Ébrios, de Diego Velázquez (1599-1660). Essas obras exsudam estudo, trabalho, domínio e criação de técnicas. Hoje em dia, entretanto, dentro de minha pouca ilustração, deparo-me com as exibições cada vez mais cínicas - nem por isso pouco rentáveis e potencializadas pelos meios de comunicação - do pintor que não sabe pintar, do ator que não sabe interpretar, do músico que não sabe tocar, do dançarino que não sabe dançar, do escritor que não sabe escrever.

Na próxima postagem, volto ao livro A vida: modo de usar.

* Relato de um naufrágio. Carta Capital, São Paulo, Ano XVII, nº 666, 5 out. 2011, p. 78-81


BG de Hoje

Direto ao ponto: MATANZA, Eu não gosto de ninguém.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

"A vida: modo de usar" (1)



"Podemos deduzir daí algo que é, sem dúvida, a verdade última do puzzle: apesar das aparências, não se trata de um jogo solitário - todo gesto que faz o armador de puzzles, o construtor já o fez antes dele; toda peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda a hesitação, toda intuição, toda esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro".

Georges Perec - A vida: modo de usar

 
 
É muito raro - sendo quase impraticável - que se leiam os verbetes de uma enciclopédia como se estes fizessem parte de um mesmo romance; como se compusessem uma única narrativa na qual se destacasse uma única diretriz; como se esses pequenos artigos contassem uma história integral, não fragmentária (embora a ambição das enciclopédias seja a de cobrir a totalidade do que existe para se conhecer). Não tenho notícia de nenhum leitor que diante de uma reunião de verbetes proceda do mesmo modo quando incitado a lidar com um texto literário.

O que dizer então de uma obra ficcional escrita de forma tão condensada e minuciosa quanto pode ser a maioria das enciclopédias?

A vida: modo de usar*, do francês Georges Perec, foi chamado de "hiper-romance" por Italo Calvino, que o considerava "o último verdadeiro acontecimento na história" desse gênero de Literatura. Nas Seis propostas para o próximo milênio**, ao tratar da Multiplicidade, Calvino afirma que "o puzzle dá ao romance o tema do enredo e o modelo formal". A ação se desenrola sobretudo num prédio residencial de Paris e o narrador entra em cada apartamento para nos contar, com descrições detalhistas ao máximo, o ambiente e os fatos relacionados a cada um de seus moradores. E não consigo deixar de pensar no duro trabalho a cargo do tradutor dessa obra...

Italo Calvino - que foi amigo pessoal de Perec - informa que A vida: modo de usar dispõe a matéria narrada como num jogo de xadrez e o escritor francês utiliza-se do "movimento do cavalo segundo uma certa ordem que lhe permite ocupar sucessivamente todas as casas" [ou seja, as divisões do prédio residencial]. Ainda segundo ele, o autor seguiu procedimentos matemáticos para combinar os diversos temas nas dezenas de mini-histórias entrecruzadas no livro. E acrescenta:

"Para escapar à arbitrariedade da existência, Perec, como seu protagonista, tem necessidade de se impor regras rigorosas (mesmo se essas regras forem por sua vez arbitrárias). Mas o milagre é que essa poética que se poderia dizer artificiosa e mecânica dá como resultado uma liberdade e uma riqueza inventiva inesgotáveis".

Esse protagonista, o milionário inglês Percival Bartlebooth, decide aprender, por dez anos, a pintar aquarelas com o artista  Serge Valène para colocar em prática um "plano de vida" inusitado. Contará também com os serviços de um habilidoso construtor de brinquedos e outros objetos, Gaspard Winckler. Os três são moradores do mesmo edifício. A contribuição de Winckler para o plano de Bartlebooth consiste na fabricação de 500 quebra-cabeças de 750 peças cada um, que deveriam ser criados de forma imaginosa, em nada semelhantes aos de corte industrial típicos daqueles vendidos em estabelecimentos comerciais comuns.

O milionário inglês tentará montar os quebra-cabeças durante muito tempo. E o leitor de A vida: modo de usar, por sua vez, tentará jogar com o que Georges Perec deixa à vista em relação à(s) narrativa(s) que compõe(m) seu livro. Por isso, o narrador registra no Preâmbulo (e o mesmo texto reaparecerá mais à frente, no capítulo XLIV - 2ª Parte ):

"A arte do puzzle começa com os puzzles de madeira cortados à mão, quando a pessoa que os fabrica se propõe apresentar a si mesma todas as questões que o jogador deverá resolver ; quando, em vez de deixar o acaso enredar as pistas, decide interferir pessoalmente para criar a astúcia, o ardil, a ilusão ; de maneira premeditada, todos os elementos que figuram na imagem a ser reconstruída [...] servirão de partida para uma informação enganadora ; o espaço organizado, coerente, estruturado, significativo, do quadro será cortado não apenas em elementos inertes, amorfos, pobres de significado e informações, mas também em elementos falsificados, portadores de informações falsas [...]".

Na próxima semana, volto a escrever sobre esse livro impressionante.
___________
* PEREC, Georges. A vida: modo de usar. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 [tradução de Ivo Barroso]

** CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 [tradução de Ivo Barroso]

BG de Hoje

Detesto bossa-nova. Não consigo achar a menor graça naquilo (e, apenas nesse caso, não lamento minha ignorância). A bossa-nova é vista como uma manifestação musical sofisticada e João Gilberto (que eu acho um saco), gênio da cultura brasileira. Por isso, considero sensacional esta sátira rasgada feita pelo LÍNGUA DE TRAPO: Cagar é bom.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Por que mentimos quando se fala em leitura literária?




Em meu antigo blog, certa vez publiquei um texto cujo título era Nunca li Marcel Proust . Naquela ocasião eu disse (não com essas palavras) que a obra do francês (e de outros escritores e escritoras) era uma espécie de fantasma a atormentar os que se declaravam apreciadores de Literatura (este blogueiro, por exemplo). Como é possível alguém que afirme gostar da arte literária - pior, dizer-se um estudioso - sem ter lido Proust, James Joyce ou Thomas Mann? Isso só para citar alguns das dezenas e dezenas de autores e autoras dos quais só conheço o renome (se bem que já comecei - e interrompi - duas vezes A montanha mágica, de Mann...).

Esses fantasmas rondam-me o tempo todo, fazendo-me olhar assombrado para a imensidão do que ignoro, num campo do conhecimento ao qual me dedico diligentemente. Dedicação com um poderoso componente de frustração, é necessário acrescentar, pois há um número gigantesco de páginas de boa Literatura ainda a serem lidas e nem em sonho conseguirei me apropriar sequer de uma quantidade ínfima. Essa é uma das razões por que quase não me interesso pela produção contemporânea, seja em prosa ou poesia (exceção aos livros voltados para o público infantil e juvenil). Tenho uma árdua "batalha" - perdida já de antemão, é verdade - a ser travada com o passado. Mas isso é assunto para outra postagem. Permita-me narrar um breve episódio ocorrido há uns 20 anos.

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Estávamos num bar próximo à escola municipal em que eu cursava o ensino médio noturno. Matávamos aula e conversávamos sobre temas variados, entre uma cerveja e outra. Surgiu o assunto "leitura" e um colega, de apelido Lobão, comentou que estava adorando O Alquimista, de Paulo Coelho. Aquilo nos espantou, não pelo título mencionado ou por seu autor, mas porque o Lobão não "dava pinta" de ser leitor de nada, nem mesmo do caderno de esportes dos jornais. Dois dias depois, ele me confessou que dissera aquilo para não passar por menos inteligente do que os outros (ele não lera O Alquimista) e ocorreu-lhe falar do livro de Coelho pois este era o primeiro lugar, há meses e meses, na conhecida lista dos "mais vendidos" da revista Veja.

. . . . . .

Por que contamos mentiras sobre o que lemos e, principalmente, sobre o que não lemos? Durante anos menti descaradamente a respeito de Charles Dickens. Nunca li, até hoje, nenhum de seus textos - tirando o Conto de Natal, amplamente difundido - mas, se me perguntassem, afirmava conhecer bastante. Por que fazia isso? O (a) leitor(a) certamente já encontrou , em sua vida, pessoas que também mentiam sobre o que liam : uma ex-professora com carinha simpática, um colega de trabalho com um pouco mais de grana e que suportamos porque é ele que paga as bebidas ao final do expediente, aquele parente chato que vive dizendo que "a culpa é do governo" e não passa de um caga-regras ridículo. Talvez você mesmo(a) já tenha contado uma ou outra mentirinha desse tipo, não? Pense bem...

Eu arriscaria duas tentativas de explicação para esse impulso de mentir sobre o que (não) lemos:

1) Por mais que se conteste a tradição literária (e há muitas contestações bem formuladas, ao lado de outras que só se sustentam na estridência com que são expostas), é difícil negar o tremendo valor simbólico que a Literatura carrega dentro de nossa cultura (mesmo que as práticas efetivas de leitura não venham traduzindo isso). E são bem poucos os que aceitam "valer menos" na comparação com seus semelhantes. Logo, acabamos mentindo sobre os livros (não) lidos.

2) Essa é relacionada com a anterior. Muitas vezes, para que nos sintamos bem, precisamos que o outro esteja numa posição, figurada ou não, inferior à nossa. E um dos modos de subjugar alguém é aparentar maior conhecimento especializado, maior erudição ou mesmo só uma capacidade retórica mais elaborada do que aquele que queremos rebaixar. Assim, também mentimos sobre os livros (não) lidos.

BG de Hoje

Quem me conheceu pessoalmente, nos últimos anos, duvida de imediato quando falo que era um bom dançarino, em "priscas eras". Antes de me entregar ao álcool e ao sedentarismo, não fazia feio numa pista de dança. Uma das minhas músicas preferidas era Here we go (let's rock & roll), do C/C MUSIC FACTORY.



sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A Literatura serve pra quê?


Eis aí uma pergunta - a do título desta postagem - frequentemente feita e refeita, tanto por pessoas direta ou indiretamente interessadas na cultura livresca, quanto por aquelas que a desprezam (e não seria surpreendente constatar que as últimas fazem o questionamento com ainda mais assiduidade do que as primeiras).

Para que serve a leitura, por exemplo, de Orgulho e Preconceito? Ou de Moby Dick? Por que ler Angústia ou A paixão segundo G. H.? Não há atividades mais úteis, sobretudo no mundo contemporâneo - veloz,  multifacetado, instável - nas quais devemos focar (valendo-me de um insuportável verbo da moda) nossa atenção e precioso tempo?

De algum modo (depois de tanto esforço, espero que ao menos isto tenha ficado claro para o(a) leitor(a) habitual deste blog), o Besta Quadrada, desde sua criação, não faz outra coisa senão ressaltar a importância da leitura, sobretudo literária. Assim, creio sinceramente que a Literatura está longe de ser um apêndice inútil da vida em sociedade. Mas para responder a pergunta lá do início, prefiro convocar Umberto Eco*.

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Já havia discutido esse artigo, do qual gosto muito, em meu antigo blog. Decidi voltar a ele.

Publicado há dez anos, A literatura contra o efêmero (disponível aqui) é o registro por escrito de um pronunciamento que havia sido feito, meio de improviso, pelo escritor e semiólogo italiano. E começa com uma frase muito eloquente: "os grandes livros contribuíram para formar o mundo".

Eco acredita que "existem poderes imateriais cujo peso não se pode medir, mas que ainda assim pesam". Estes "não se restringem aos chamados valores espirituais, como os das doutrinas religiosas". Entre os poderes imateriais, ele incluiria

"o da tradição literária, isto é, do complexo de textos que a humanidade produziu e produz, não com fins práticos, mas 'gratia sui', por amor de si mesma, e que são lidos por prazer, elevação espiritual ou para ampliar os conhecimentos" (claro que as obras literárias estão geralmente ligadas a um suporte físico; não é disso que se trata, porém).

Pergunta o italiano:

"Mas para que serve esse bem imaterial, a literatura? Eu poderia responder, como já fiz noutras vezes, dizendo que ela é um bem que se consuma 'gratia sui' e que portanto não serve pra nada. Mas uma visão tão crua do prazer literário corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou às palavras cruzadas que, além do mais, também servem para alguma coisa, seja manter o corpo saudável, seja enriquecer o léxico".

Ele acredita que "a literatura tem na nossa vida individual e social" três funções: a Literatura exerce papel importantíssimo na manutenção e mesmo na renovação da língua de um país; os textos literários, no momento mesmo da leitura, obrigam "a um exercício de fidelidade e de respeito dentro da liberdade de interpretação"; a Literatura ensina o leitor a morrer. Quero me deter na última delas.

Umberto Eco, mesmo reconhecendo a liberdade interpretativa como uma das características essencias da leitura, não defende, entretanto, que seja "possível fazer qualquer coisa com uma obra literária" (posição com a qual concordo). Nesse sentido, as narrativas ficcionais são imodificáveis, sobretudo "as grandes histórias"  já inscritas na tradição, com suas tragédias e desencantos. Com a palavra, o pensador italiano:

"A função das narrativas imodificáveis é justamente essa: contrariando nosso desejo de mudar o destino, nos fazem experimentar a impossibilidade de mudá-lo. E assim, qualquer que seja a história que elas contem, contará também a nossa, e é por isso que as lemos e as amamos. Necessitamos de sua severa lição 'repressiva'. A narrativa hipertextual pode educar para o exercício da criatividade e da liberdade. Isso é bom, mas não é tudo. As histórias 'já feitas' nos ensinam também a morrer. Creio que essa educação para o fado e para a morte é uma das principais funções da literatura. Talvez existam outras, mas agora me escapam".

Para alguém como eu, que vive para ler e lê para viver, - isso é só uma frase de efeito( ruim, por sinal) - aprendo também a ler para morrer.
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ECO, Umberto. A literatura contra o efêmero. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 fev. 2001, Caderno Mais!, p. 12-14

BG de Hoje

Poucas bandas de metal extremamente pesado me interessaram tanto, até hoje, como o PANTERA. Uma canção como I'm broken, composta há mais de 15 anos, ainda soa com vitalidade em meus ouvidos.


terça-feira, 20 de setembro de 2011

Thomas Hobbes e a autoajuda (3)




"O que é coisa difícil [ler o gênero humano através da leitura de si mesmo], mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer ciência, mas ainda assim, depois de eu ter exposto claramente e de maneira ordenada minha própria leitura, o trabalho que a outros caberá será apenas verificar se não encontram o mesmo em si próprios. Pois esta espécie de doutrina não admite  outra demonstração".

Thomas Hobbes - Leviatã 

Para o filósofo Renato Janine Ribeiro*,

"O homem hobbesiano não é então um homo oeconomicus, porque seu maior interesse não está em produzir riquezas, nem mesmo em pilhá-las. O mais importante para ele é ter os sinais de honra, entre os quais se inclui a própria riqueza (mais como meio, do que como fim em si). Quer dizer que o homem vive basicamente de imaginação. Ele imagina ter um poder, imagina ser respeitado - ou ofendido - pelos semelhantes, imagina o que o outro vai fazer. Da imaginação - e neste ponto Hobbes concorda com muitos pensadores dos séculos XVII e XVIII - decorrem perigos, porque o homem se põe a fantasiar o que é irreal. O estado de natureza é uma condição de guerra, porque cada um se imagina (com razão ou sem) poderoso, perseguido, traído".

O que é o estado de natureza? É o modo de existência fora do controle do Estado; este último, para Thomas Hobbes, deveria ser representado por um único indivíduo (ou grupo de indivíduos), dotado de poderes absolutos sobre os demais, já que os súditos submetem suas vontades e desejos ao arbítrio desse "Leviatã", criado pelo pacto feito entre eles, objetivando fugir da insegurança que caracteriza o estado de natureza.

Renato Janine Ribeiro observa que Hobbes considerava a imaginação perigosa. Por quê? "Todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante - eu não sei o que o outro deseja, e por isso tenho que fazer uma suposição de qual será a atitude mais prudente, mais razoável", lembra-nos Ribeiro. Conjeturamos, tentamos fazer previsões (erradas, muitas vezes), imaginamos como serão as reações do outro.

E qual o papel do "individualismo metodológico" empregado por Hobbes para formular suas conclusões, levando em conta o modo como atua a imaginação?

Como se sabe, Leviatã** é dividido em quatro partes. Na primeira delas, ("Do homem"), o pensador inglês "gasta" 16 capítulos para apresentar sua concepção da natureza humana***. É a partir dela que o filósofo defenderá a necessidade de concentrar todo o poder nas mãos de uma pessoa (ou grupo de pessoas), sem recorrer ao argumento da designação divina, presente nos arrazoados de outros defensores do Absolutismo no mesmo período.

Sendo todos os seres humanos iguais (possuidores de "um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que cessa apenas com a morte"), somente a força e o temor impostos por um poder absoluto podem impedir a mútua aniquilação.

O pensador inglês não coleta dados junto a amostras populacionais (esse modus faciendi, hoje trivial no meio científico, estava longe das  práticas de trabalho dos eruditos do século XVII), nem dispõe, obviamente, dos recursos da Psicologia, que só se estabeleceria como ciência centenas de anos depois. Thomas Hobbes fundou seu método observando apenas suas próprias reações, sensações, sentimentos, vontades e desejos e o que tudo isso pode provocar na imaginação. Depois, deduziu que o mesmo acontece com cada um dos outros seres humanos, uma vez que todos são iguais.

É pouco para escrever um tratado sobre o surgimento do Estado? Sim. Não obstante, tornou-se um clássico.

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Como já registrei anteriormente nesta série, o veredicto da História foi implacável com as ideias políticas de Thomas Hobbes. Portanto, uma interpretação perfeitamente adequada do Leviatã é a que enxerga no livro uma expressão da antipolítica, porque baseado no princípio do medo - um dos sentimentos típicos do império  da incivilidade - e na incapacidade de coexistência dos diversos interesses individuais/grupais dentro da mesma sociedade. Nesse sentido, Hobbes constrói seu pensamento sobre uma aposta na torpeza humana e (também) por isso sua obra é considerada maldita.

Para meu "uso", entretanto, prefiro observar que o Leviatã ensinou-me a procurar ser sempre autocrítico; a não me iludir com os "sucessos", "acertos" ou "conquistas" que por ventura venham a fazer parte de minha vida; preparou-me para desconfiar dos argumentos "bem-intencionados" dos outros (e dos meus próprios). E numa época em que muitos fazem questão de se exibir probos, responsáveis e sensíveis, principalmente por meio do que tentam projetar através de seus perfis na web - nas mídias sociais, todos são engajados, apoiam causas virtuosas (ainda mais quando adequadas às suas ideologias), têm consciência ecológica, são anjos de tolerância, artistas da palavra e do grafismo, ajudam velhinhas a atravessar as ruas, etc. - um livro como o de Hobbes alerta-me para que não acredite muito nessas máscaras "que se estão pegando à cara", se me permite essa adaptação do conhecido verso de Álvaro de Campos/ Fernando Pessoa.
__________
* RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco C. Clássicos da política, 1. 13 ed. São Paulo: Ática: 2001, p. 51-77

** HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva]

*** Na Segunda parte do Leviatã ("Do Estado") é que se encontra o detalhamento da visão política de Thomas Hobbes. A Terceira ("Do Estado Cristão") e a Quarta ("Do Reino das Trevas") podem interessar ao(à) leitor(a) pois demonstram a posição crítica (e negativa) que o filósofo manifestava em relação à Igreja.


BG de Hoje

Canção revigorante, (eu acho, pelo menos): PATTI SMITHDancing Barefoot


quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Thomas Hobbes e a autoajuda (2)



"Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro".


Thomas Hobbes - Leviatã

Antes de falar do principal livro publicado pelo filósofo inglês Thomas Hobbes (Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil)*, pensei que talvez possa interessar ao (à) leitor(a) o "percurso" que me levou a ele.

Quando era estudante do Ensino Médio (na época, simplesmente 2º Grau) ganhei um exemplar da coleção Os pensadores que continha esse texto na íntegra. Ele me foi dado por um ex-professor, junto com outros títulos usados (mas muito bem conservados), alguns dos quais ainda hoje mantenho comigo. Li o texto naquela oportunidade e, como era de se esperar, não entendi quase nada. Mas andava com ele pra cima e pra baixo, "fazendo charme de intelectual". Fiquei também um pouco decepcionado porque não é no Leviatã que se encontra a mais famosa frase de Hobbes - "o homem é o lobo do homem" - que eu conhecia graças ao currículo escolar e à canção do Caetano Veloso (a frase está no livro Sobre o cidadão).

Mas mesmo sem ter compreendido a obra naquela primeira leitura, uma forte certeza se formou em mim: o pensador inglês fez questão de impregnar seu texto com um ceticismo amargo. Eu já enxergava a existência humana de modo extremamente pessimista, no fim da adolescência, e o Leviatã não destoava dessa concepção que nunca me abandonou, mesmo agora na madureza. Após a primeira leitura, o livro ficou hibernando em minha estante cheia de espaços vazios.

No final dos anos 1990, no pouco tempo em que frequentei o curso de Ciências Sociais, fui aluno de um ótimo professor de Política no 2º período. Mitre (era esse seu sobrenome) resolveu que seu plano de aula ia ser estruturado a partir do estudo de autores clássicos da filosofia política: Maquiavel, Locke, Montesquieu, Rousseau e, claro, Hobbes. Foi minha segunda leitura do Leviatã, mais rica e aprofundada. E de lá pra cá nunca mais parei de lê-lo.

A essa altura o(a) leitor(a) já não tem dúvidas de que este é um dos meus livros prediletos.

. . . . . .

Os sistemas políticos foram progressivamente, ao longo da História, rejeitando as ideias de Thomas Hobbes - poder altamente centralizado e rígido controle/censura sobre o pensamento e sobre o direito e a expressão individuais. O Absolutismo teve curta duração (pelo menos no Ocidente) e boa parte dos Estados apostou na democracia liberal e no regime republicano, com a tradicional divisão dos Três Poderes.

Ainda assim, há algo no pensamento hobbesiano aplicável à análise política da atualidade; agora, porém, não mais no âmbito da nação e sim nas relações internacionais. Atentemos para este trecho do Leviatã (cap. XXI, parte II, Da liberdade dos súditos)

"Porque tal como entre homens sem senhor existe uma guerra perpétua de cada homem contra seu vizinho, sem que haja herança a transmitir ao filho nem a esperar do pai, nem propriedade de bens e de terras, nem segurança, mas uma plena e absoluta liberdade de cada indivíduo; assim também, nos Estados que não dependem uns dos outros, cada Estado (não cada indivíduo) tem absoluta liberdade de fazer tudo o que considerar (isto é, aquilo que o homem ou assembleia que os representa considerar) mais favorável a seus interesses. Além disso, vivem numa condição de guerra perpétua, e sempre na iminência da batalha, com as fronteiras em armas e canhões apontados contra seus vizinhos a toda a volta".

Hobbes transfere seu "individualismo metodológico" para a análise dos conflitos internacionais. E se pensarmos um pouco, não se trata de uma observação destituída de sentido. Basta lembrar da impotência da ONU e outros organismos mundiais para coibir a violência de seus membros, principalmente aqueles com maior poderio militar...

Entretanto, não tratarei desse tema (não sou tão pretensioso a ponto de discutir política internacional). Quero, isso sim, voltar ao termo individualismo metodológico. Pois foi com essa ferramenta simples que Hobbes construiu seu conjunto de reflexões. Seguindo o preceito do Nosce te ipsum (conhece-te a ti mesmo), o filósofo inglês procurou mostrar que o estado natural dos seres humanos é caracterizado pela "guerra de todos os homens contra todos os homens" (e não a convivência pacífica e harmoniosa), tornando a vida "solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta".

Na próxima semana, tentarei explicar como o individualismo metodológico manifesta-se na obra de Hobbes e se esta pode mesmo funcionar como "autoajuda".
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HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva] (Coleção Os pensadores)


BG de Hoje


RAGE AGAINST THE MACHINE conseguiu arranjar ótimas soluções para a (sempre) difícil juntura entre o rock pesado e a música mais "funkeada". Uma dessas soluções pode ser ouvida em Take The Power Back (do primeiro disco da banda norte-americana).