quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Sobre best-sellers (6)

A escritora Adelaide Amorim, dos blogs O bem, o mal e a coluna do meio e Umbigo do Sonho (entre outros) encerra, com elegância, esta série de postagens. Não acrescentarei nada ao texto dela; preferi mantê-lo na íntegra e debater na seção de comentários.

" ' BEST-SELLERS ', NEM SEMPRE 'BEST READING'
Por Dade Amorim

'A lista dos mais vendidos tem de tudo. Mas quase nunca a maior parcela deles é a dos livros de melhor leitura.
A primeira razão para um livro vender muito, ao que parece, diz respeito a quem o escreve. O nome do autor pesa, quando ele é popular, famoso ou polêmico. Não é tudo - nesse campo, nada é definitivo e há sempre espaço para surpresas. Mas há uma tendência clara a vender mais quando na capa se lê um nome conhecido e bem divulgado nas mídias, seja lá por que for. Isso explica a preferência dos editores em geral por tais nomes. Dependendo da linha editorial, privilegia-se a popularidade ou a competência, contanto que reconhecida. Editoras sérias escolhem nomes de status nos meios literários, embora tenham em comum com as outras o interesse de mercado - o que não é de estranhar, já que se trata de empresas comerciais que, como é óbvio, vivem do lucro.

Mas além do autor, há outros fatores que favorecem a venda,. Livro não é artigo de primeira necessidade, e no Brasil talvez nem de segunda ou terceira. Num mercado meio bisonho, mesmo as características que podem tornar um livro atraente nem sempre funcionam. Sem falar dos didáticos e utilitários, dicionários e guias de uma coisa ou outra, os leitores variam. Há meninas loucas por obras tipo Gossip Girls; há gente fissurada em romances novelescos e/ou pronográficos; há rapazes ligados em esportes, preparação física e afins; há um público cada vez mais numeroso interessado em culinária, vinhos e coisas do gênero. Policiais bem falados costumam pegar, assim como as biografias de gente famosa - o interesse pela vida alheia não costuma falhar - e os chamados livros de fantasia, em que Harry Potter se mantém campeão absoluto. No universo dos livros infantis, o mercado anda meio florido, mas nem todos conseguem vender tanto quanto imaginavam.

Como todo mundo sabe, livros de autoajuda costumam bombar. Para seus autores, uma bênção dupla: depois de se firmarem entre o público específico, bem numeroso em termos relativos, eles podem arriscar obras menos típicas, já que seus nomes conseguiram alguma notoriedade e conquistaram preferências dentro dessa faixa de leitores - podendo também motivar parte de um público movido por curiosidade ou desinformação. Há quem entre numa livraria à procura de um presente e peça informações ao vendedor ou escolha o título da pilha mais em evidência. Mas o público que consome livros de autoajuda quase sempre - mesmo sem ter consciência disso - procura respostas para as suas dúvidas existenciais, fórmulas que os ajudem a viver melhor ou até souções mais focadas em uma dada situação. E como as psicoterapias ainda saem bem mais caras, por que não procurar se ajudar por esse meio? Dependendo do caso, pode até funcionar, menos ou mais precariamente, enfim.


O que menos parece mover o leitor brasileiro é o prazer de ler propriamente dito - ler pelo prazer da leitura em si. Por aí se explica a repercussão restrita da leitura de ficção ou de poesia de qualidade. A leitura pela leitura parece não ter sido ainda descoberta por grande parte dos brasileiros. Nesse particular, existem guetos que nem o poder aquisitivo nem o nível de escolaridade podem explicar. É questão de gosto, conhecimento do assunto, adquirido por contatos pessoais, formação escolar ou sensibilidade e criatividade inatas. Sem elitismo nem pretensão de situar o leitor bem formado num nível superior a quem quer que seja, é preciso frisar essa realidade. Não porque ela acrescente valor ou importância a quem aprecia e sabe escolher um bom texto, mas porque sua falta limita as possibilidades de satisfação genuína de muita gente, cuja vida certamente se beneficiaria mais da literatura de boa qualidade do que de livros de autoajuda e assemelhados.


Há muito a dizer sobre literatura. Há muito a divulgar, incentivar e praticar. Faltam informação e orientação ao leitor em geral, para que ele possa perceber tudo que um livro de qualidade literária apreciável poderia lhe oferecer em termos de enriquecimento pessoal - mesmo para a vida prática - e cultural. O quanto um livro de qualidade contribui para melhorar quem o lê com olhos de ver e palavras bem aproveitadas. O quanto esse tipo de leitura significa para a autoestima e a capacidade de entender a si mesmo, fruir a vida, os sentimentos, o relacionamento entre parceiros e amigos. Quem lê mais enriquece seu interior, sua personalidade, torna-se uma pessoa mais lúcida no meio deste mundo louco. Não é pouca coisa. Viver melhor é acima de tudo uma questão de ver mais longe e entender melhor as pessoas e o que acontece a nossa volta. E para conseguir isso a boa literatura é imbatível".

Desse modo, chegamos ao fim deste trabalho feito por variadas mentes, a muitas mãos e muitos teclados. Quero agradecer imensamente a meus amigos-blogueiros por sua inestimável colaboração. E, através deles, dirijo-me também a meus amigos fora da Internet, aos leitores eventuais deste blog, a quem chegou aqui por acaso, graças a um clique involuntário: para vocês, boas festas, muita alegria e, se possível, algum sentimento de esperança.

Este blog - e o responsável por ele - entram em recesso, retornando no dia 11/01/2010. Inté!

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Sobre best-sellers (5)

O professor Marcelo F. Carvalho, além de ser um generoso divulgador do trabalho de outros blogueiros, sempre lança ótimos questionamentos no seu Resumo da chuva.

Em relação ao tema desta série, Marcelo trata da moda e dos modismos:

"O que é a moda e onde isso nos leva? Bem, não é sobre a moda e seu pequeno-inútil universo que, por meio deste, dirijo-me. Mas debruçarei nela para responder à instigação do professor Halem.

Você usa uma calça jeans surrada (rasgada mesmo), camisa desbotada, com as costuras invertidas (puídas quase sempre) e aqueles tênis de lona que, no calor, produzem calos nos pés, apesar de existirem calçados altamente sofisticados e tecnologicamente confortáveis. Você coloca um boné de tela (daqueles que os caminhoneiros norte-americanos usam). Hoje em dia, estar com a barba por fazer dá aspecto de masculinidade e todos os modelos mostram os rostos impregnados de fiapos. Os cabelos? Bem, esses, nos homens, cresceram verticalmente, estilo black power anos 70 ou coqueiro.

Mas o que quero com toda essa descrição? Primeiramente dizer que se usarmos o que acabo de escrever, respeitando os escravos do modismo, gastaremos algo em torno de um salário mínimo (talvez dois!) e estaremos parecidos com os mendigos que cruzo diariamente pelas ruas da cidade. Qual é o nome da moda que usamos? Moda Mendigão! E devo admitir que uso vários desses itens descritos.

Pois assim são os best-sellers. Todos compram, devoram, dizem que adoram, mas, no fundo, não passam de um lixão. Raríssimas exceções, todo best-seller é puro lixo. Assim como as nossas calças jeans atuais".

Em conversas com adolescentes e jovens, costumo perceber que muitos deles não são assim tão refratários à leitura. Mas é possível notar que muitas de suas escolhas do que ler estão ligadas a dois fatores: 1) a projeção da publicação nas diversas mídias; 2) os títulos que são lidos pelos amigos e amigas são mais procurados do que aqueles recomendados por pais ou professores, por exemplo. Logicamente, não quero com esses bate-papos informais estabelecer uma opinião segura e fundamentada dos hábitos e formas de leitura dos adolescentes e jovens. Mas quero afirmar que a sociologia da leitura tem uma tarefa importante a fazer, no que se refere aos estudos das práticas de leitura nesse ambiente cultural globalizado em que estamos inseridos.

A esse respeito, Ruy Castro escreveu um pequeno artigo (ótimo!) cujo nome é, apropriadamente, Mega-sellers *. Segundo o articulista:

"O fenômeno se dá na área dos romances, poupando as biografias, as memórias e os livros de história, que, por enquanto, só têm de competir com best-sellers sobre cachorros".

Castro observa que essas publicações não são exclusividade dos norte-americanos mas precisam antes passar pelo mercado dos Estados Unidos para depois ocuparem as listas de mais vendidos de todo o mundo. Em qualquer lugar do planeta, são estes títulos que decoram as vitrines das livrarias. Quais as consequências disso? Castro responde parcialmente:

"Como os ' mega-sellers ' são maciçamente estrangeiros, teme-se que as editoras brasileiras desistam de apostar no humilde romance nacional - afinal, para que se arriscar a ter 3.000 livros encalhados quando se pode vender 600 mil? Pior ainda será se nossos romancistas tentarem se adaptar ao figurino australiano ou afegão para escrever, na esperança de que assim serão publicados e venderão livros".

Os livros da moda, mais do que movimentar milhões de dólares, colaboram com a nefanda uniformização da cultura escrita, esvaziando a arte de seu significado mais produndo, asfixiando a pluralidade dos modos de expressão literária e provocando a padronização dos gostos estéticos, tão prejudicial para a renovação das manifestações artísticas.

Na última postagem da série - e do ano - a contribuição especialíssima de Dade Amorim.

* CASTRO, Ruy. Mega-sellers. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. A2, 9 mar 2009 (Caderno Brasil)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Sobre best-sellers (4)

O jornalista (com "J" maiúsculo) Pirata Z, (agora também Z ninguém), do blog O lado Z, nos manda sua contribuição para o debate:

" como revisor ou copy desk, trabalhei muito tempo nas mais variadas editoras, das mais chulés às mais consolidadas, comercialmente, e confesso: não sei o porquê de um determinado livro tornar-se um melhor-vendido. há, no entanto, um ponto óbvio: essas editoras trabalham com pesquisas qualitativas (sic), para poderem apurar o que é que as gentes andam querendo ler. isso feito, das duas, uma: ou lhes cai às mãos uma obra que o autor, por sorte, ou por igual atenção ao que dizem as gentes, criou com elementos que correspondem aos anseios do público, e o resto fica a critério dos marqueteiros da editora, ou mesmo, e já testemunhei isso, as editoras encomendam uma obra assim a determinado autor, e o resto fica a critério dos marqueteiros da editora...

seja lá qual for o caso, mimético, o ser humano passa a repetir os "mantras" que os marqueteiros, com equacionados press releases, alardeiam nos mais diversos veículos midiáticos, e dá-se, então, o que chamam de ' propaganda boca a boca ', e o resto é história - e, claro, grana no caixa.

não creio que o melhor-vendido tenha seu sucesso vinculado ao acaso, pois isso me obrigaria a preterir a lógica em favor do absurdo, acreditando que, um dia, alguém, em algum lugar do planeta, se interessou pela história de um pirralho afegão chegado a soltar pipas, contou isso pra algumas pessoas de seu círculo de convívio, as quais fizeram o mesmo, a coisa rompeu fronteiras geográficas, ideológicas e humanas as mais diversas, e bum! nasceu mais um sucesso...

Chaplin dizia o seguinte: "Entender o mundo em que se vive. Eis o segredo do sucesso".

O mundo, não de hoje, tornou-se pateticamente óbvio - e viva o uniformizante neoliberalismo! - o que, acho, explica o sucesso desse tipo de negócio.

Tudo isso pra dizer o seguinte: o melhor-vendido é/sempre foi, para mim, um excelente negócio para todos os envolvidos. o autor, além de um bom tutu, ganha fama e prestígio; a editora consegue o que a lógica mercadológica impõe, que é um retorno inversamente proporcional ao bocadinho investido, e, por fim, o público ganha gotinhas do remédio que precisa para a angústia da vez, criada, sabemos, pelo universo mesmo que o "farmacêutico" representa...

final feliz é isso aí, né não?"

Pirata Z, de forma cristalina, evidencia o caráter - por favor, não nos esqueçamos disso - comercial da empreitada editorial.

Recentemente, li uma dissertação de mestrado* na qual a pesquisadora, entre outros pontos, analisa o papel das editoras com relação à formação de um público leitor. Discutindo a atuação de Giulio Einaudi (célebre editor italiano), Maria da Conceição Carvalho procura distinguir os diferentes projetos editoriais: a Editora-Sim e a Editora-Não.

"A ' Editora-Sim ', na visão crítica de Einaudi, ao invés de ir ao encontro do gosto do público. gosto tornado a priori pela indústria cultural, como já denunciava Adorno, introduz no panorama cultural as novas tendências de cada campo - literário, artístico, científico, histórico e social - e trabalha no sentido de fazer emergir os interesses mais profundos, mesmo que se vá contra a corrente. Desconsiderando o interesse epidérmico e as expressões mais superficiais e efêmeras do ' grande público ' a ' Editora-Sim ' se compromete, ao contrário, com a formação de um gosto duradouro. Por esta via forma-se também um público e, por que não, um mercado. A ' Editora-Sim ', pensa Eunaudi, é fruto de um projeto, de um critério orientador, de uma ideia clara daquilo que se deseja fazer desde o início. O que, entretanto, é bem diferente da ideia obsessiva de se ter um projeto, dentro do qual, por vezes, não cabe a realidade".

De modo geral, as grandes editoras (e usando a classificação de Einaudi) são sempre ' Editoras-Não '. Estão saturadas de "realidade", de pragmatismo (cito o Pirata Z: "viva o uniformizante neoliberalismo"), e por isso, proliferam os best-sellers...

* CARVALHO, Maria da Conceição. O mercado e o sonho: Lê e Miguilim. duas propostas de editoração do livro infantil e juvenil. 1993. 226 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação/ Informação Social) - Escola de Biblioteconomia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1993

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Sobre best-sellers (3)

Já disse que a Milena, do blog Nenhum Lugar, tem um dos textos mais adoráveis entre os blogs que costumo ler? Se não disse, fica dito agora. Sobre os best-sellers, ela foi econômica e instigante:

" 1. Best-sellers são os livros do gosto médio, das gentes que pensam que livros servem para entreter ou consolar.

Mas tenho vontade de dizer:

2.
Best-sellers são os livros que eu nunca li e que eu tenho a impressão de que todo mundo lê. Tipo: quem tem algum contato com a leitura e ainda não leu Crepúsculo? Só uma gente metida a besta como nós!!"

Estou propenso a concordar. Mas não sem antes problematizar um pouco. Só um pouquinho...

Na apresentação da edição brasileira de O visconde partido ao meio *, de Italo Calvino, há a reprodução de uma resposta dada pelo escritor italiano, durante uma entrevista com estudantes, trinta anos após a publicação do romance.

Calvino, observando que seu livro trata da incompletude característica dos seres humanos, afirma que "queria sobretudo escrever uma história divertida para divertir a mim mesmo, e possivelmente para divertir os outros".

Para Italo Calvino, o divertimento pode (e deve) fazer parte da obra literária:

"Creio que divertir seja uma função social, corresponde a minha moral: penso sempre no leitor que deve absorver todas estas páginas: é preciso que ele se divirta, é preciso que ele tenha também uma gratificação; esta é a minha moral: alguém comprou o livro, despendeu dinheiro, investe parte de seu tempo nele, deve divertir-se. Não sou só eu que penso assim; por exemplo, também um escritor muito atento aos conteúdos como Bertolt Brecht dizia que a primeira função social de uma obra teatral era o divertimento. Penso que o divertimento seja uma coisa séria".

Carlos Drummond de Andrade - outro dos heróis deste blog -,no "aviso" aos novos leitores que consta em sua Antologia poética **, enxerga a Literatura com olhos diferentes:

"Acho que a literatura, tal como as artes plásticas e a música, é uma das grandes consolações da vida, e um dos modos de elevação do ser humano sobre a precariedade da sua condição".

Como se nota, Calvino não vê incompatibilidade entre Literatura e entretenimento, nem Drummond, entre esta e a sua "função" consoladora. Como leitor de ambos, sempre encontro agradáveis formas de passar o tempo com o romancista italiano e, em momentos de angústia - e são vários! - sinto-me reconciliado comigo mesmo lendo o poeta brasileiro.

Milena, doutora em Teoria da Literatura, ao falar sobre "os livros que servem para entreter e consolar", não se referia, obviamente, a obras como as produzidas pelos autores anteriomente citados. Livros podem entreter e consolar, mas, na condição de obras de arte (e é disso que fala Milena) não fazem (ou, pelo menos, não deveriam fazer) apenas isso.

A arte é - para usar uma expressão de Hannah Arendt - o aditamento de algo à existência. Esse algo pode ser, no caso da Literatura, uma visão de mundo rara, ou uma nova forma de expressão linguística, ou um recurso inusitado, ligado a metalinguagem, enfim, algo que torne a obra literária singular em comparação com outras, para "fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero", como nos diz Manuel Bandeira ***. E os best-sellers não alcançam essa condição.

Há, porém, outro ponto fundamental na definição de Milena: o modo como os supostos conhecedores da "boa" Literatura lidam com os best-sellers. E, é preciso reconhecer, existe preconceito nessa relação.

Prefiro reler Crime e castigo ou Otelo, o mouro de Veneza várias vezes a ler qualquer coisa escrita por Stephenie Meyer; do mesmo modo, sou mais A chave do tamanho do que qualquer um dos Harry Potters (ainda que tenha lido todos). A questão, porém, não é essa.

Creio que as pessoas que atuam na promoção da leitura - mais diretamente, os professores e bibliotecários - precisam incluir, em seus planos de trabalho, o respeito aos gostos e preferências de leitura dos indivíduos com os quais convivem, por mais distintos que sejam dos nossos. Mas não se pode fechar os olhos para o poderoso esquema de marketing utilizado pela indústria editorial, para divulgar seus produtos e, assim, obter maiores fatias do mercado; isso deve ser criticado.

Iria falar também aqui de uma crônica de Ruy Castro, mas fica para a "conversa" com outro colaborador desta série. E, a propósito, na próxima postagem, debaterei com meu grande camarada Pirata Z (ou, como também está sendo conhecido, Z ninguém).


* CALVINO, Italo. O visconde partido ao meio. São Paulo: Companhia das Letras, 1996 (tradução de Nilson Moulin)
** ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 40 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998

*** BANDEIRA, Manuel. Nova poética. In: Estrela da vida inteira. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Sobre best-sellers (2)

O cidadão do mundo Roy Frenkiel, do blog Não leiam este blog, lá da Flórida envia a sua contribuição:

"Formado em comunicação de massas e leitor assíduo do New York Times, para mim um best-seller nada mais é do que a própria palavra indica: um dos livros de maior número de vendas em um dado período.

Um exemplo é mais ou menos o que encontramos no jornal de hoje, dia 19 de outubro de 2009: Dan Brown, autor do
Código Da Vinci, tem seu livro The lost symbol (O símbolo perdido) em primeiro lugar da lista do jornal. Outros livros similares, de puro entretenimento, vêm de autores e autoras como Charlaine Harris, Kathryn Sockett, Robert B. Parker e outros, mais ou menos com o mesmo estilo.

Um best-seller de ficção é o único que tem chances de obedecer a critérios mais artísticos da literatura, enquanto a maioria desses é de livros de autoajuda, política e biografias gerais. Em nenhum instante um best-seller se equivale, necessariamente, a um classic, ou clássico da literatura".

Há alguns aspectos óbvios ligados ao mercado editorial que são constantemente esquecidos pelo público em geral. Roy, oportunamente, nos lembra que a principal característica de um best-seller é seu desempenho nas vendas.

. . . . .

Neste trecho, faço um adendo: quero também lembrar algo frequentemente esquecido ou negligenciado, dependendo da "postura" do leitor em sua relação com a arte literária e suas preferências estéticas: livros, enquanto objetos - e ainda mais num mundo majoritariamente capitalista -, são mercadorias, produtos.

Gabriel Zaid * (de cujo livro já falei aqui) é incisivo:

"Nós gostaríamos de acreditar que cultura e comércio não têm nada que ver um com o outro: que a cultura circula e é adquirida por meios não comerciais próximos do culto e do oculto; que é como uma poção iniciatória dada aos escolhidos; que é algo adquirido gradualmente, sob o controle e com a garantia do Establishment".

Escamotear a dimensão comercial da circulação de bens culturais do campo editorial (para me expressar à la Bourdieu) é contribuir para a sacralização hipócrita dos livros. Mais uma vez, Gabriel Zaid:

"Note-se também a ambivalência ou duplicidade com a qual o sucesso (exotérico, externo, comercial) é desejado e temido nos círculos culturais, e a importância de ganhar o respeito de um pequeno grupo em detrimento do grande público. Ignorar esse público é, em última instância, a verdadeira negação da cultura: fracassar na comunicação, mas também salvar-se da perdição do comércio e do sucesso, uma garantia de pureza. O sucesso comercial pode ser contraproducente, provocando uma perda de credibilidade nos melhores círculos. Queremos que os livros sejam objetos democráticos, para ser lidos por todos, estar acessíveis em todos os lugares, mas também queremos que continuem sendo sagrados".
. . . . . .

Mas, ao estabelecer a comparação do tipo de publicação de que estamos tratando - os best-sellers - com outros produtos do campo editorial, Roy Frenkiel nos fornece grande ajuda para formular a seguinte pergunta: seria o best-seller um novo "gênero"?

Sandra Reimão ** considera que "a expressão best-seller, aplicada a livros e a literatura, comporta dois campos de significação, nem sempre coincidentes". Para a autora:

"A primeira significação da expressão, em sua acepção mais literal, diz respeito ao comportamento de vendas de um livro em um determinado mercado editorial. Best-sellers indica aqui os livros mais vendidos de um período em um local. Nesse sentido é uma expressão quantitativa e comparativa, e que diz respeito a vendas.
[...]
Ao lado da acepção ligada às vendas no mercado editorial, a expressão best-seller, quando aplicada à literatura de ficção, passou a designar também, por extensão, um tipo de texto - características internas, imanentes, de um tipo de narrativa ficcional.

Muitos autores, de tendências e pressupostos variados, buscaram elucidar quais seriam as características que fariam de um texto ficcional, um texto de literatura best-seller - também chamada de paraliteratura, literatura trivial, subliteratura, literatura de entretenimento, de massa ou de mercado".

Faço outra pergunta: existiriam marcas formais - elementos textuais verificáveis - que seriam índices seguros para determinar que um texto é potencialmente um best-seller, antes mesmo da sua circulação no circuito comercial (circuito este que envolve a atuação e interferência de diferentes agentes)?

Na próxima postagem, a participação da Milena.

* ZAID, Gabriel. Livros demais!: sobre ler, escrever e publicar. São Paulo: Summus, 2004 (tradução de Felipe Lindoso)
** REIMÃO, Sandra. Mercado editorial brasileiro: 1960-1990. São Paulo: Com-Arte/Fapesp, 1996

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Sobre best-sellers (1)


Iniciaria esta série de postagens de outra maneira. Mas uma ocorrência imprevista alterou o rumo e a forma do(s) textos(s).

No domingo, abro a caixa do correio e encontro um exemplar da revista Veja destinado a mim. Hoje em dia, a maioria das pessoas um pouquinho mais bem informadas deixou de levar a sério essa publicação, marcada, nos últimos anos, pelo jornalismo tendencioso e de qualidade, no mínimo, duvidosa.

Não solicitei nenhuma assinatura da revista. Acredito que, por ter sido consumidor de outros produtos do grupo Abril - Superinteressante Playboy, mais recentemente; a extinta Showbizz, anos atrás - , a empresa resolveu mandar-me uma cortesia, tentando recuperar o antigo cliente. Isso mostra o quanto está abalado o mercado da mídia impressa, já que eu devo ser apenas um dos milhares em todo o país a receber esses exemplares "amostra grátis". Tal estratégia tem um custo, obviamente. E não é pequeno, suponho.

O curioso é que a matéria de capa trata dos livros de autoajuda, uma das vertentes mais lucrativas da indústria editorial. Entre os chamados best-sellers, desde o final dos anos 1980, a autoajuda é responsável por alguns dos títulos mais rentáveis.

Para tratar de assunto tão controverso - os best-sellers e sua relação com os leitores - decidi convidar outros blogueiros, diletos companheiros e companheiras, para dividir com eles e elas as postagens que antecederão as férias do Sinistras Bibliotecas. O primeiro a contribuir será o jornalista Jens, do divertidíssimo blog A toca do Lobo.

Escreve ele:

"Defino best-seller como aquelas obras arrasa-quarteirão que dominam por meses as listas de livros mais vendidos e, na falta de ideia melhor, se constituem no presente ideal por ocasião do Natal.

Não sei dizer o que determina que um livro assuma a condição de best-seller, mas creio que uma das razões principais, acima da popularidade do autor, está um competente trabalho de mídia do editor. É o que explica, por exemplo, o surgimento de um Dan Brown, até recentemente, um desconhecido entre nós, e a febre literária que acomete legiões infanto-juvenis a cada lançamento da série Harry Potter. 

Também julgo que, para qualificar-se a este posto, a obra deve ter enredo cativante e uma linguagem acessível ao maior número de leitores possível, como 
O Alquimista, de Paulo Coelho (que, a propósito, não li) ou os livros de crônicas e histórias curtas de Luis Fernando Veríssimo. Há, claro, exceções, como prova O nome da rosa, de Umberto Eco. 

Não avalizo a ideia de que um 
best-seller seja necessariamente um obra superficial. Além do já citado livro de Eco, lembro de A fogueira das vaidades, de Tom Wolfe, uma leitura que muito me agradou".

Há bastante para se pensar a partir das afirmações feitas pelo Jens, mas gostaria de destacar dois pontos: as listas de livros mais vendidos e o papel dos editores.

Na matéria do já citado número da Veja *, as jornalistas Isabela Boscov e Silvia Rogar observam que "uma olhada na lista dos livros mais vendidos de VEJA revela que aqueles que os leitores entendem com fonte de inspiração estão espalhados por todas as categorias - a ficção, como o caso de A cabana, , a não-ficção, como Comer, rezar, amar e a autoajuda propriamente dita, como em O monge e o executivo".

De fato, na tradicional lista da VejaA cabana é o segundo mais vendido no segmento ficção (é superado por O símbolo perdido, de Dan Brown). NOTA: nessa lista pode-se ver que simplesmente cinco (!) livros de Stephenie Meyer estão entre os dez mais vendidos. Os outros postos são ocupados por Caim, de José Saramago e por dois livros de L. J. Smith, que seguem o filão de Crepúsculo Lua Nova. Na categoria não-ficçãoComer, rezar, amar lidera e, no caso de autoajuda e esoterismo, O monge e o executivo até hoje ocupa lugar no topo (é o segundo colocado).

Segundo a matéria da VejaA cabana, do canadense William Paul Young, vendeu 13 milhões de exemplares (1,4 milhão no Brasil); Comer, rezar, amar, da norte-americana Elizabeth Gilbert, vendeu 8 milhões de unidades (300.000 no país); e O monge e o executivo, do também norte-americano James Hunter, chegou a 6 milhões (2,5 milhões só por aqui).

Não quero, no momento, fazer juízos de valor sobre a qualidade dos livros de autoajuda, mas gostaria de inserir aqui uma opinião surpreendente do editor Luiz Schwarcz (Companhia das Letras), dada em uma esntrevista publicada em 1994, na revista Istoé **"Costumo dizer que todo bom livro é de autoajuda, só que uns têm uma pretensão mais totalitária sobre a vida das pessoas ou mais imediatista".

E por falar em editor, Jens chama atenção para algo importante: o surgimento de best-sellers depende muito mais da capacidade de efetuar um marketing bem-feito, por parte das casas editoriais, do que das supostas qualidades dos escritores. E é interessante que Jens cite Dan Brown e lembre Umberto Eco. Em entrevista recente na Folha de S. Paulo, Eco, de forma irônica, declarou que Brown era uma "cria" dele...

Há diversas outras questões ainda a serem discutidas. Permanceço no tema na próxima postagem, desta vez com a contribuição de Roy Frenkiel. Inté.

* Nas asas da autoajuda. Revista Veja, São Paulo, ano 42, n. 48, edição 2142, p. 140-147. dez. 2009

** O Brasil quer ler. Revista Isto é, São Paulo, edição 1309, p. 5-7, nov. 1994

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Memória, vivência e Literatura




Carolina Maria de Jesus, autora de um dos mais extraordinários livros de nossa Literatura* - verdadeiro ponto fora da curva - dizia que "a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos".

Em sua obra mais conhecida, podemos ler, com sua prosa característica, o seguinte trecho:

"Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradaveis me fornece os argumentos".

Quando Quarto de despejo veio a público, causou espanto. Como uma mulher pobre, com tão pouca escolaridade, produzira texto tão fora do comum? Logicamente, havia o talento. Mas havia também o olhar de dentro, de quem viveu tudo aquilo. A narradora ganhava autenticidade, respeito. Para falar da pobreza, tal como ela efetivamente existe, é preciso tê-la experimentado com intensidade, ora com amargura, ora com resistência.

Quarto de despejo merece uma análise mais aprofundada, que virá a seu tempo. Hoje, contudo, escrevo sobre Becos da memória**, de Conceição Evaristo que, na minha opinião, é tributário do livro de Carolina Maria de Jesus.

Falava em autenticidade da narradora. De onde ela emana? Da memória desta. Ainda que não seja declaradamente autobiográfico, no romance de Conceição Evaristo se lê:

"Hoje, a recordação daquele mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos pobres! Miseráveis talvez! Como a vida acontecia simples e como tudo era e é complicado!"

Mas há diferenças nos modos de narrar. Carolina Maria de Jesus não foi além do segundo ano primário e sua escrita revela esse fato. Conceição Evaristo, por sua vez, felizmente teve vida estudantil mais prolongada (e, anos após a elaboração desse livro, atingiria o pico da formação acadêmica). Escolaridade não é sinônimo de talento literário, sabe-se. Contudo, a experiência escolar fornece ao escritor maiores recursos textuais; Conceição Evaristo, para além de sua habilidade artística, soube utilizá-los. Observe-se, por exemplo, a descrição de um festival de futebol de várzea:

"Em volta do campo, fincavam-se bandeirinhas armadas em um varal de estacas de bambu. A garrafa de cachaça rolava de mão em mão, algumas cervejas também. Miúdos de porco eram sempre servidos. Muita gente criava porquinho no chiqueiro, no fundo do barraco. A bebida ficava sempre por conta daqueles que, no momento, tivessem mais. Donos de botequim e de bitaquinha sempre davam alguma. A criançada ganhava balas, pipocas e pirulitos. Os heróis ali muitas vezes ganhavam mulheres. Brigas, sempre, só de faca; tiro, às vezes, saía algum. Muito raro alguma morte. Se morte havia, o jogo, a bola não tinham culpa. Existiam outros motivos; quase sempre mulher".

São muitas personagens, cada qual com seu drama, sua dor, seu calor. Particularmente emocionante é a história da empregada doméstica Ditinha e seu filho menino-homem, Beto.

Becos da memória foi terminado no final dos anos 1980, mas só ganhou edição comercial quase vinte anos depois. Conceição Evaristo, acertadamente, observa, na apresentação do livro, que aquele tipo de favela, descrito no romance, não mais existe.

Contudo, indago: houve alguma modificação essencial na condição de vida, do ponto de vista econômico, para boa parte da população negra brasileira durante esse tempo?

A escritora defende a tese, adotada por outros também. de que a favela é, na verdade, uma "atualização" da antiga senzala. E ainda que as comunidades sejam bem distintas do que eram há alguns anos, certos fatos permanecem:

"Quando descíamos o morro, lá na praça, rapazes alegres, bem vestidos, brincavam, conversavam ao sol. Eram tidos como jovens contestadores, estudantes. Os filhos de Ana do Jacinto, jovens vagabundos, perturbadores, marginais".

Falar de um povo. De seu povo. Do nosso povo. Conceição Evaristo assume essa imensa responsabilidade. E o faz com dignidade, força e talento.

* JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2000.

** EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Pierre Bourdieu e Mano Brown


"Olha só aquele clube:
Que 'da hora'!
Olha o pretinho vendo tudo
do lado de fora".

Racionais MC's - Fim de semana no parque


No momento estou muito envolvido com a leitura de duas obras daquelas que nos fazem ter uma visão mais profunda e menos maniqueísta do Brasil, sem a intermediação edulcorada e vazia de nossa mídia televisiva.

Estou me referindo aos livros Cabeça de porco (Ed. Objetiva, 2005), do antropólogo Luiz Eduardo Soares, do rapper MV Bill e do empresário e produtor cultural Celso Athayde; e a Falcão: meninos do tráfico (Ed. Objetiva, 2006) - este último sem a participação de Soares.

Certamente escreverei alguma coisa sobre os trabalhos acima mencionados, tal é o efeito que ambos vêm provocando na minha percepção da realidade brasileira. Um exemplo desse efeito: só agora começo a entender plenamente a força dos comportamentos-símbolo, das vestimentas-símbolo, dos objetos-símbolo na formação de adolescentes e jovens do país. Pior: esses símbolos muitas vezes estão diretamente relacionados ao circuito que liga pobreza, violência, tráfico de drogas e outras modalidades de crime. Mas me permita entrar em outro assunto, sem, no entanto, romper inteiramente com o que venho falando.

. . . . . . .

No bairro onde moro não costumo ver pessoas praticando corrida. Para dizer a verdade, nunca vi nenhuma, nos mais de 30 anos que vivo lá. De vez em quando até percebo gente idosa fazendo "caminhadas", talvez por prescrição médica. Mas cooper ou jogging, nunca.

Essa constatação (bastante tola, reconheço) me veio de chofre, dia desses, quando escutava Fim de semana no parque, canção gravada pelos Racionais MC's (sampleando frases de outras de Jorge Ben (Jor) e que está no discaço Raio X Brasil (1993), do grupo paulistano.

A letra da música - um paralelo entre a vida dos ricaços de São Paulo e a dos moradores das regiões mais pobres da metrópole - leva o letrista, em seu início, a partir da visão "de uma caranga do ano/ toda equipada e um tiozinho guiando", que, "com seus filhos ao lado/ estão indo ao parque/ eufóricos", a pensar em sua própria comunidade: "a molecada lá da área como é que tá?".

Diante da diferença, Mano Brown registra:

"Eles também gostariam
de ter bicicleta
de ver seu pai fazendo cooper
tipo atleta.
Gostam de ir ao parque
e se divertir
E que alguém os ensinasse
a dirigir."

Detenho-me nestes versos: "de ver seu pai fazendo cooper/ tipo atleta". Volto ao começo de minha postagem. Fazer cooper ou jogging - ainda que se admita ser um comportamento saudável (para quem tem tempo disponível para fazê-lo, é bom que se diga) - é uma prática que não acontece nas periferias, nos bairros pobres. É, portanto, um hábito restrito a uma classe. E, mais significativo: é um hábito que simboliza essa classe.

E o que tem Pierre Bordieu a ver com tudo isso?

Meses atrás, citei o sociólogo francês aqui no blog e, pelo tema de hoje, sou levado a refletir sobre o peso que a dimensão simbólica da vida social tem em seu pensamento (não custa lembrar que um de seus livros mais famosos chama-se justamente O poder simbólico) e sobre um conceito fundamental em sua obra: o habitus de classe.

Uma de suas definições do conceito* é a seguinte:

"Sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos determinismos objetivos e de uma determinação do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende a produzir práticas e, por esta via, carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas".

E o que isso quer dizer em "linguagem de em dia-de-semana", como diria Guimarães Rosa?

Significa, "na batata", para nossa compreeensão momentânea, que as classes mais ricas, dominantes, incorporam comportamentos, práticas e hábitos (como, por exemplo, o cooper) para se fazerem imediata e indubitavelmente distintas das outras. Tudo isso, graças ao poderio econômico que possuem (as tais estruturas objetivas). Os comportamentos (as disposições) reforçam suas características de classe, ajustando confortavelmente seus membros dentro desta.

Mano Brown, provavelmente sem ter lido Pierre Bourdieu, em poucos versos, faz uma análise sociológica tão boa quanto a dele.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Nocautes (4)

FELIZ ANIVERSÁRIO - Clarice Lispector



Uma sensacional exposição das vísceras que compõem, intestinalmente, a Família. É assim - um tanto pernóstico, reconheço - que eu definiria o conto Feliz aniversário *, de Clarice Lispector.

Todas as vezes, ao falar dessa escritora, tomo o cuidado de alertar o leitor/ouvinte/interlocutor que estou longe, muito longe, de ser um "intérprete" confiável de sua obra. No jogo proposto por Clarice Lispector, a cada texto, perco-me e não me acho quase sempre (e, talvez, o lance seja esse mesmo...) Deixo a ressalva, dada a quantidade de fãs de Clarice Lispector dentro e (principalmente) fora da blogosfera.

Como acontece com todo grande escrito de Literatura, em Feliz aniversário, o que menos interessa é o enredo, a trama: o que interessa é a urdidura, a junção - às vezes, perfeita - entre matéria narrada, expressão linguística e sentido estético.

Assim sendo, eu gostaria de destacar dois trechos do conto. O primeiro:

"Tendo Zilda - a filha com quem a aniversariante morava - disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. 'Vim para não deixar de vir', dissera ela a Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês".

O título do conto pode gerar a expectativa de um texto alegre; porém, esta é logo pulverizada no primeiro parágrafo, No segundo, acima citado, pode-se "ver" a ausência de desejo festivo: ninguém dançará nessa casa. Reuniões de família, ainda que ocorram sob o pretexto de um aniversário, são, no fundo, ultrajantes, ofensivas.

O segundo:

"- Me dá um copo de vinho! disse.O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão. - Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosamente a neta roliça e baixinha. - Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho, Dorothy! ordenou. 
Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E olhavam impassíveis".

É a velha matriarca saindo do imobilismo e da decrepitude de seus 89 anos para lançar no rosto daquela família, covarde e hipócrita - aliás, assim são todas as famílias que se "orgulham" do que são - ,seu ressentimento, seu rancor. Mas há espaço para o humor na narrativa: "Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão".

Na próxima semana, interrupção desta série de postagens, com a retomada de outras.

* LISPECTOR, Clarice. Laços de família. 27 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994

. . . . . . . . .

NADA A VER

Olho para o rosto - de cabelo pintado - do senador Edison Lobão (PMDB-MA), atualmente Ministro de Minas e Energia, e me pergunto: o que é que esse cara entende de geração, transmissão e armazenamento de energia elétrica (ou de qualquer outra)?

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Nocautes (3)

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS - Lima Barreto



Antes de mais nada, quero dizer que considero Lima Barreto - um dos "heróis" deste blog - muito mais romancista que contista. Sem entrar em detalhes, não consigo apreciar suas histórias curtas ainda que as leia com frequência. Uma das exceções é O homem que sabia javanês *.

Até aí, nada de mais. A maioria das antologias do tipo "os melhores contos..." inclui essa narrativa do escritor carioca. Seria quase "natural" que eu a destacasse. Só que a pergunta a ser feita é: por que se costuma considerar esse texto fora-de-série? Humildemente - vá lá, nem tão humildemente assim - vou tentar responder.

O homem que sabia javanês é notável, sobretudo, por sua engenhosa organização (apesar de ser muito simples) e por sua "brasilidade".

Como se sabe, o conto se estrutura a partir de uma relaxada conversa entre dois amigos, Castelo e Castro, tomando cerveja numa confeitaria. Dessa forma, Lima Barreto não precisara preocupar-se com aquela linguagem rebuscada e tão artificial que ainda caracterizava a Literatura Brasileira do período e que era admirada pelos críticos da época, a maioria deles bastante dura com o escritor. A narrativa ganhou em leveza e velocidade. As observações de Castro são poucas ao longo do relato de Castelo mas permitem ao narrador "retocar" os trechos que por ventura estivessem desalinhados.

Além disso, O homem que sabia javanês é brasileiríssimo. Aqui, permita-me uma digressão.

Está claro, pelo menos para mim, que um bom texto de Literatura Brasileira não precisa falar do Brasil e de suas características "sócio-político-econômico-culturais" todo o tempo. Aliás, nas vezes em que o nacionalismo patriótico ou o engajamento denuncista sufocaram a arte os resultados foram terríveis. Por outro lado, sempre se pode argumentar que há certos elementos presentes em alguns de nossos melhores textos que não se encontram naqueles provenientes de outras nacionalidades. Esses elementos são difíceis de precisar e indicar porque não se resumem a aspectos lexicais e/ou idiomáticos. No conto de que estamos falando, logo em seu início, podemos ler o seguinte trecho:

" - Cansa-se; mas não é disso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático".

Lima Barreto conhecia bem "este Brasil imbecil e burocrático". Um Brasil marcado pelas relações clientelistas, do arrivismo sem escrúpulos, o país do "jeitinho", o país da malandragem, da ausência de critérios justos para a promoção no serviço público, dos títulos acadêmicos e saberes formalizados sem relevância social e/ou utilidade pública.

Sem cair de cabeça em nenhuma dessas mazelas, o conto, todavia, fala de todas.

A boa Literatura de um país serve também para que seus leitores se reconheçam. E eu me reconheço em Lima Barreto.

* BARRETO, Lima. Contos reunidos. Rio de Janeiro: Garnier, 1990

VALE A PENA

Vale a pena conferir a edição voltada para o público infanto-juvenil de O homem que sabia javanês, realizada pela Cosac & Naif. A elegância da publicação e as ilustrações de Odilon Moraes valorizam - e muito - o texto excepcional de Lima Barreto.

. . . . . . . . . .




E embora saiba que o assunto já foi muito debatido na Internet e na mídia em geral - o incidente envolvendo uma aluna da Uniban, agredida por uma multidão animalesca de estudantes da instituição - ainda não li melhor análise do que a de Contardo Calligaris publicada na Folha de S. Paulo do dia 05/11/2009 com o título A turba da Uniban.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Nocautes (2)

SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA - João Guimarães Rosa

Ao falar do universo ficcional de Dalton Trevisan, observei que suas personagens eram, na totalidade, seres insignificantes, enredados nas pequenas tragédias e comédias da vida (e isso não é um defeito). No livro Primeiras estórias *, de João Guimarães Rosa - do qual proveio o conto Sorôco, sua mãe, sua filha - estamos também diante de criaturas sem importância. As diferenças são grandes, porém.

A primeira, mais óbvia, diz respeito à linguagem e à forma de narrar. Trevisan usa (e abusa) dos lugares-comuns e da repetição de situações-clichês. E o faz propositalmente - daí sua habilidade - como a nos mostrar que não há escapatória - nem sequer através da escrita - de nossa pequenez e boçalidade intrínsecas. Guimarães Rosa, bem ao contrário, é um renovador do idioma, alguém que inventou um modo completamente inédito de dizer as coisas literariamente. Além do mais, há sempre algo de épico, heroico ou transcendente em suas narrativas.

A segunda diferença entre o escritor paranaense e o mineiro está nos modos distintos como ambos veem a "desimportância" de suas personagens. Trevisan não as faz brilhar; a opacidade delas se instala até nos nomes que lhes são dados, repetidos com frequência em mais de um conto. Rosa, por sua vez, apesar de incluir mendigos, malucos, trabalhadores de enxada e crianças pobres em seus textos, trata-os com nobreza.

Sorôco, sua mãe, sua filha é das mais tocantes narrativas que conheço. Fala de muitas coisas, mas sobretudo da afeição e da dificuldade que temos em externalizar esse sentimento tão maravilhoso. Para tanto, o narrador lança mão de uma desatinada cantiga de duas mulheres loucas - fantasticamente definida assim por Guimarães Rosa:

"[...] aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois".

Em determinado ponto, o narrador nos diz que "foi um caso sem comparação". Eu diria, agora, que é um texto sem comparação.

* ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Nocautes (1)

ROUPINHA DE MARINHEIRO - Dalton Trevisan



Muito me interessa o "mundinho" de Dalton Trevisan: pequenos canalhas, historietas de amor dignas de letras de boleros cafonas, situações cômicas e trágicas envolvendo pobres-diabos, uma sordidez suburbana que acaba sendo a de nós todos, num domingo à tarde, depois da macarronada. "Mundinho" que nos é apresentado, vapt-vupt, em três ou quatro páginas. Às vezes, duas.

Poderia escrever sobre dezenas de ótimos contos do escritor paranaense. Escolho Roupinha de marinheiro, do livro Abismo de rosas *, por ser o melhor, entre aqueles que estão no primeiro livro desse autor lido por mim, muitos anos atrás.

A narrativa se organiza em torno de um evento banal: um velório. Mas visto pelos olhos de um menino. Tudo é descrito com eficiente economia:

"Vizinhos na calçada, coroas no corredor e, ali na sala, o primeiro defunto. Nunca mais esqueceu o cheiro: flor murcha, vela derretida, cigarro apagado. No canto o espelho oval coberto de pano preto. Nos grandes castiçais quatro velas acesas".


Preocupações e pensamentos típicos de criança: Como será estar morto? O defunto nunca mais poderia beijar a noiva com sua boca torta, nem comer mais broinha de fubá mimoso. Uma mosca entra no nariz do defunto: "Para onde foi? Será que ela sai? E se João espirrasse?"

No entanto, a torpeza das relações familiares está ali, presente, nas lembranças da avó severa. Nem tudo é desagradável, porém:

"Quando vovó morreu, a tia Zezé consolou o menino, aninhado no seu roliço braço nu, o peitinho estalando a blusa de cambraia - ai, que bom se vovó morresse todo dia".


É como eu disse. Muito me interessa esse "mundinho" de Dalton Trevisan

Guimarães Rosa na próxima postagem.

___________
* TREVISAN, Dalton. Abismo de rosas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976


terça-feira, 27 de outubro de 2009

Nocautes - Introdução

Não consigo descartar a maioria dos livros que tenho, alguns bastante antigos, outros em edições de qualidade inferior. Mantenho-os nas estantes como um atestado de gratidão eterna. Por exemplo, o manual de teoria literária de Hênio Tavares *. Foi usado por minhas irmãs e hoje integra minha modestíssima coleção. Vou até ele em busca de um conceito para o termo conto. Encontro este:

"CONTO - É uma narrativa de menor brevidade. É como o chamou Lúcia Miguel Pereira no seu livro Machado de Assis, - ' o caso ' em contraposição ao romance, que é ' a vida '. Diz a segura ensaísta: ' o romance é a vida, o conto é o caso, a anedota ' ".

No Pequeno dicionário de termos literários **, de João José de Melo Franco (publicado 25 anos atrás), pode-se ler que:

"Na modernidade o conto se aproximou de um tema que depende de uma surpresa ligada ao cotidiano. Em geral é de pequeno tamanho, nunca se aproximando na extensão à novela e ao romance. Do ponto de vista dramático o conto é univalente: possui um só drama, um só conflito, uma história, uma unidade dramática, uma ação".

Mas também possuo livros mais recentes, ora essa! Lançado no ano passado, o Dicionário de gêneros textuais ***, de Sérgio Roberto Costa, além de chamar atenção para o tamanho do conto em relação a outras modalidades de narrativa, afirma que essa "característica de síntese" decorre de "suas origens socioculturais e circunstâncias pragmáticas". Para Costa, "socioculturalmente [...] o conto literário tem sua origem na cultura oral, enquanto o romance é regido pela cultura da escrita/leitura".

Por sua vez, Nadia Battella Gotlib (Teoria do conto****), refletindo sobre a passagem do conto oral para o escrito, observa que

" [...] esta voz que fala ou escreve só se afirma enquanto contista quando existe um resultado de ordem estética, ou seja, quando consegue construir um conto que ressalte os seus próprios valores enquanto conto, nesta que já é, a esta altura, a arte do conto, do conto literário. Por isso, nem todo contador de estórias é um contista".

Nesse pequeno livro de Gotlib, encontra-se também reproduzida a famosa - e maravilhosa - distinção feita por Julio Cortázar:

"Nesse combate que se trava entre um texto apaixonante e o leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto que o conto deve ganhar por knock-out".

Péssimo leitor de contos, sempre preferi os romances. De todo modo, arrisco-me a escrever um pouco sobre os dez melhores contos brasileiros que já encontrei, as dez narrativas curtas que me nocauteiam sempre.

Perceber-se-á, imediatamente, ao olhar a lista abaixo, que a maioria integra as antologias mais populares do gênero. Não importa, prossigo mesmo assim...

Os dez nocautes:

1) Roupinha de marinheiro - Dalton Trevisan
2) Sorôco, sua mãe, sua filha - João Guimarães Rosa
3) O homem que sabia javanês - Lima Barreto
4) Feliz aniversário - Clarice Lispector
5) O cobrador - Rubem Fonseca
6) Pequenas distrações - Gregório Bacic
7) Onde andam os didangos? - José J. Veiga
8) O colocador de pronomes - Monteiro Lobato
9) Missa do Galo - Machado de Assis
10) A confissão de Leontina - Lygia Fagundes Telles

(OBSERVAÇÃO: Não se trata de um ranking)

Começo com Dalton Trevisan, na sexta-feira.

* TAVARES, Hênio. Teoria literária. 7 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981

** MELO FRANCO, João José de. Pequeno dicionário de termos literários. São Paulo: Três, 1984

*** COSTA, Sérgio Ribeiro. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008

**** GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 3 ed. São Paulo: Ática, 1987


P. S
. Iria escrever sobre o livro A religação dos saberes, organizado por Edgar Morin, mas perdi a vontade. Fica pra outra.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Algumas notas sobre educação (4)



Se, como foi dito anteriormente, o método pelo qual se aprende é o do acaso e os "explicadores" - os professores existentes hoje e sempre - pouco interferem nesse aprendizado, o que resta aos profissionais do ensino?

Antes de tentar responder a essa dificílima pergunta, cabe salientar que O mestre ignorante *, livro sobre o qual estamos falando, não pretende ser um "guia" para novos professores "criativos" e "inovadores". É, antes de tudo, um alerta, um aviso para que não acreditemos piamente (mesmo com o coração cheio de "boas intenções") na neutralidade ou no "progressismo" dos sistemas educacionais. Jacques Rancière nos mostra que Jacotot, o pedagogo "louco", ainda no século XIX, prevenira: "a distância que a escola e a sociedade pedagogizada pretendem reduzir é aquela de que vivem e que não cessam de reproduzir".

Voltemos à pergunta do início, porém e vejamos como Rancière responderia a ela:

"O homem - e a criança, em particular - pode ter necessidade de um mestre, quando sua vontade não é suficientemente forte para colocá-la e mantê-la em seu caminho. Mas a sujeição é puramente de vontade a vontade. Ela se torna embrutecedora quando liga uma inteligência a uma outra inteligência. No ato de ensinar e de aprender, há duas vontades e duas inteligências. Chamar-se-á embrutecimento à sua coincidência [...] Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma, ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade".

Rancière (e Jacotot) falam sempre da vontade e de sua importância para o aprendizado. Juntos eles afirmam que "o homem é uma vontade servida por uma inteligência". Ao apontar o "segredo" do Ensino Universal, Jacques Rancière escreve:

"É também esse o segredo daqueles que são chamados gênios: o trabalho incessante para dobrar o corpo aos hábitos necessários, para ordenar à inteligência novas ideias, novas maneiras de exprimi-las; para refazer intencionalmente o que o acaso produziu e transformar circunstâncias infelizes em boas ocasiões de sucesso".

Ou seja, uma inteligência emancipada nunca é preguiçosa. Achou o último adjetivo ridículo ou fora de lugar? Mas é o próprio filósofo francês que fala a respeito de preguiça!:

"Em suma, por mais que isso incomode aos gênios, o modo mais frequente de exercício da inteligência é a repetição. E a repetição é enfadonha. O primeiro vício é a preguiça. É mais fácil se ausentar, ver pela metade, dizer o que não se vê, dizer o que se acredita ver. Assim se formam frases de ausência, os logo que não traduzem qualquer aventura do espírito. ' Eu não posso ' é o exemplo dessas frases de ausência.

E o que tudo isso tem a ver com nossa atual "crise" do ensino, particularmente público? Arrisco algumas respostas. Provisórias e insuficientes - não estou bem certo da verdade delas.

1) Nossos estudantes, dentro de uma instituição escolar que não tem para eles nenhuma serventia, valor ou significado, estão longe, muito longe de demonstrar essa vontade preconizada em O mestre ignorante.

2)
Nossos professores, dentro de uma instituição escolar que não os reconhece como seu "insumo" mais valioso, não estão em condições de emancipar nenhuma inteligência.

3) Nossas sociedades, cada vez mais dissimuladas em suas relações com a instituição escolar, têm outros interesses muito mais pragmáticos do que emancipar inteligências. Como escreve Rancière, "jamais um partido, um governo, um exército, uma escola ou uma instituição emancipará uma única pessoa".


* RANCIÉRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002 [ tradução de Lilian do Valle ]

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Algumas notas sobre educação (3)


Em O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual *, como dissemos anteriormente, o filósofo Jacques Rancière realiza acurada reflexão - a partir da história do pedagogo Joseph Jacotot - sobre as instituições escolares, suas práticas e pressupostos pedagógicos e ideológicos.

Rancière ouve na "voz solitária" de Jacotot uma "dissonância inaudita", que nos dá "a consciência dos paradoxos que fornecem sentido" ao ato de ensinar.

Jacotot deu a seu "projeto" educacional (na falta de melhor termo) o nome de Ensino Universal. Ele está baseado na seginte convicção: existe uma igualdade de inteligências a ser comprovada. Rancière observa:

"No alvorecer da marcha triunfal do progresso para a instrução do povo, Jacotot fez ouvir essa declaração estarrecedora: esse progresso e essa instrução são a eternização da desigualdade. Os amigos da igualdade não têm que instruir o povo, para aproximá-lo da igualdade, eles têm que emancipar as inteligências, têm que obrigar a quem quer que seja a verificar a igualdade das inteligências".

Uma situação fortuita levou a essa tomada de posição. Tendo alunos dos Países Baixos que desconheciam o francês por completo (do mesmo modo, nada sabia ele do holandês), Jacotot recomenda então a leitura de uma edição bilingue do Telêmaco. Seria um modo de aprender o francês por meio da tradução. Passado algum tempo, foi solicitado aos estudantes que escrevessem, em francês, suas impressões sobre o livro. E o resultado foi extraordinário. Eles conseguiram se expressar muito bem no idioma até então desconhecido e o qual não havia sido previamente ensinado.

Jacotot enxergou a brecha significativa que existe num dos mais sólidos pilares dos sistemas de ensino: a necessidade de explicações. E aceitou a grande força do acaso no aprendizado dos indivíduos.

Para reforçar sua nova "descoberta", o pedagogo francês vai investigar o que acontece na aquisição do idioma materno.

"No rendimento desigual das diversas aprendizagens intelectuais, o que todos os filhos dos homens aprendem melhor é o que nenhum mestre lhes pode explicar - a língua materna. Fala-se a eles, e fala-se em torno deles. Eles escutam e retêm, imitam e repetem, erram e se corrigem, acertam por acaso e recomeçam por método, e, em idade muito tenra para que os explicadores possam realizar sua instrução, são capazes, quase todos - qualquer que seja seu sexo, condição social e cor de pele - de compreender e falar a língua de seus pais".

Esse "método do acaso", para "funcionar", precisa fazer coincidir a vontade de aprender com uma inteligência desejosa de se emancipar.

"Este é, no entanto, o salto mais difícil. Quando necessário, todos praticam esse método, mas ninguém está pronto a reconhecê-lo, ninguém quer enfrentar a revolução intelectual que ele implica. O círculo social, a ordem das coisas, proíbe que ele seja reconhecido pelo que é: o verdadeiro método pelo qual cada um aprende e pelo qual cada um descobre a medida de sua capacidade", escreve Jaques Rancière.

Continuo na próxima postagem.

* RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002 [ tradução de Lílian do Valle ]

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Algumas notas sobre educação (2)



Na postagem anterior, eu afirmara que os próprios atos de educar e aprender estavam na berlinda, atingindo, portanto a essência da profissão docente.

Para melhor compreender a possível "crise" atual do ensino, vou lançar mão de um livro que conheci este ano e de cuja leitura saí bastante perturbado. Trata-se de O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual, do filósofo francês (nascido na Argélia) Jacques Rancière (Editora Autêntica, 2002).

Confesso que tive receio a princípio. Antes da leitura, parecia-me tratar-se de mais uma dessas publicações iconoclastas destinadas a "reinventar a roda" no campo educacional. A Educação, a cada quinze ou vinte anos, desde o início do século passado, sofre um abalroamento de modas pedagógicas, sem que se perceba qualquer mudança significativa na sua qualidade.

De fato, o livro de Rancière exige um novo posicionamento por parte do leitor em relação às suas crenças a respeito do que seja ensinar e do que seja aprender. Sendo direto: é um livro difícil, apesar das suas 140 e poucas páginas. Mas fascinante.

A partir das experiências de Joseph Jacotot, um pedagogo francês do século XIX - considerado "extravagante" até por seus contemporâneos - o autor adverte:

"Não se trata de uma questão de método, no sentido de formas particulares de aprendizagem, trata-se de uma questão propriamente filosófica: saber se o ato mesmo de receber a palavra do mestre - a palavra do outro - é um testemunho de igualdade ou de desigualdade. É um questão política: saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser ' reduzida ', ou uma igualdade a ser verificada
".

Sem negar a origem marxista de seu pensamento, no passado, o filósofo francês - com uma lucidez admirável - critica a ingênua (ou, contraditoriamente, maquiavélica) ideia de que a Escola detém "o poder fantasmático de realizar a igualdade social ou, ao menos, de reduzir a ' fratura social ' ".

Com a palavra, Jacques Rancière:

"
[Nossas sociedades] se representam como sociedades homogêneas, em que o ritmo vivo e comum da multiplicação das mercadorias e das trocas anulou as velhas divisões de classes e fez com que todos participassem das mesmas fruições e liberdades. Não mais proletários, apenas recém chegados que ainda não entraram no ritmo da modernidade, ou atrasados que, ao contrário, não souberam se adaptar às acelerações desse ritmo. A sociedade se representa, assim, como uma vasta escola que tem seus selvagens a civilizar e seus alunos em dificuldade a recuperar. Nestas condições, a instrução escolar é cada vez mais encarregada da tarefa fantasmática de superar a distância entre a igualdade de condições proclamada e a desigualdade existente, cada vez mais instada a reduzir as desigualdades tidas como residuais. Mas a tarefa última desse sobre-investimento pedagógico é, finalmente, legitimar a visão oligárquica de uma sociedade-escola em que o governo não é mais do que a autoridade dos melhores da turma".

A "lição pessimista" de Joseph Jacotot - a partir da análise de Jacques Rancière - tem algo a dizer sobre tudo isso. Este livro incômodo será o tema das próximas atualizações.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Algumas notas sobre educação (1)


Em 2003, o professor português António Nóvoa, que trabalha na Universidade de Lisboa, produziu, a partir de uma palestra feita no Rio de Janeiro, um pequeno - e extraordinário - texto chamado Cúmplices ou reféns* (publicado na revista Nova Escola, mas pode ser encontrado aqui).

O artigo discute o atual papel das professoras e dos professores. Seriam elas e eles cúmplices ou reféns da preocupante situação do ensino contemporâneo? Nem uma coisa nem outra, diz Nóvoa: "Apenas pessoas. E profissionais. Dimensões que, no caso dos professores, estão irremediavelmente juntas". Mais: para António Nóvoa, vivemos num período em que há "a existência de escolas sem sociedade". E acrescenta:

"Estamos diante de uma ruptura do pacto histórico que permitiu a consolidação e a expansão dos sistemas educativos. Esse pacto, uma das grandes marcas civilizacionais do século 20, fundou-se numa lógica pública, de integração de todas as crianças na escola e de construção de uma cidadania nacional. Sua contestação deriva de nossa incapacidade para responder à multiplicidade de presenças (raciais, étnicas, culturais) que nela habitam. É preciso reconhecer que, hoje, há muitos alunos para os quais a escola não tem sentido, que são provenientes de 'comunidades' que não se veem no projeto escolar e que são indiferentes ao percurso escolar de seus filhos. Estamos perante uma realidade nova, sem paralelo na história".

E o que a irresponsabilidade da sociedade para com a escola causa às professoras e aos professores, atrizes e atores destacados do complexo drama chamado educação?

Ela "projeta sobre os professores um excesso de expectativas e missões".

"Eles são criticados pelas mais diversas (e contraditórias) razões. Mas, ao mesmo tempo, a sociedade exige que resolvam todos os problemas das crianças e dos jovens. Para além do conhecimento e da cultura, espera-se que ajudem a restaurar os valores, a impor aos jovens as regras da vida social, a combater a violência, a evitar as drogas, a resolver as questões da sexualidade etc. Os professores podem muito. Mas não podem tudo."

Já se foi o tempo em que eu acreditava na ação "redentora""progressista", do trabalho docente. Anos e anos de serviço na Educação Básica (pública) mostraram-me - sem ilusões e sem as distorções da crença ideológica - que há graves fraturas sociais e culturais sobre as quais as escolas (e suas professoras e seus professores) têm pouca (ou nenhuma) possibilidade de intervenção.

O que fazer , então? Cruzar os braços? (em nome da saúde das educadoras e dos educadores, isso até seria recomendável...).

Nóvoa, contudo, tem uma sugestão:

"Defendo a necessidade de uma afirmação pública dos professores como 'comunidade profissional'. No passado eles tiveram voz ativa nos debates educativos e grande parte de sua formação fez-se no interior de projetos e de movimentos pedagógicos. Hoje há silêncio. Os professores estão numa atitude excessivamente defensiva".

Ainda que eu não veja razão para abandonar essa "atitude defensiva", pura e simplesmente - os ataques vêm de todos os lados: do usuário do serviço público, da mídia, até do empregador (no caso, o Estado) - preciso reconhecer a necessidade da afirmação profissional.

Entretanto, são os próprios atos de ensinar e aprender que julgo estarem hoje na berlinda, atingindo, portanto, a essência da profissão.

Volto ao tema na próxima postagem.
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* NÓVOA, António. Cúmplices ou reféns? Nova Escola, São Paulo, Ano XVIII, n. 162, p. 14-15, mai. 2003