quinta-feira, 29 de abril de 2010

Responsabilidade social das empresas: isso existe?

 
 
Interrompo a série de postagens sobre "era virtual" por causa da leitura de um pequeno texto cujo teor contribuiu (e muito) para considerável aumento no meu crônico pessimismo.

Ontem, o jornal Folha de S. Paulo publicou o artigo Em defesa da Fundação Abrinq *, assinado por Jorge Broide, Miriam Debieux Rosa e Maria Ignês Bierrenbach e que foi subscrito por mais outras 27 pessoas. 

O artigo comunica o desacordo dos que subscrevem o texto com "a forma atual de governança e a equivocada visão de gestão do presidente do conselho de administração [da Fundação Abrinq], respaldadas pela maioria desse conselho". Por isso, "após inúmeras tentativas", todo o grupo discordante concluiu "que se torna inviável a nossa participação nessas instâncias [o conselho de administração e o conselho consultivo da mesma entidade ]".

Quem está lendo essa postagem pode se perguntar, com toda razão: "E daí, o que é que eu tenho com isso?" Um resposta simples e justa seria: nada. Mas a situação mencionada no artigo revela um aspecto de nossas elites econômicas e empresariais que, acredito, vale a pena ser discutido.

Antes, se me permite, uma breve rememoração pessoal.

Há exatos dez anos [então ano 2000], participei de um Curso de Formação de Mediadores de Leitura, dentro do Projeto Biblioteca Viva, da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança. Uma ocasião especial. Durante apenas uma semana, perfazendo 40 horas, professores, agentes comunitários, educadores sociais, psicoterapeutas e outros trabalhadores (nem todos eram servidores públicos) - mais ou menos 35 pessoas, no total - reuniram-se na sede da Secretaria Municipal de Educação/BH para trabalhar e pensar em torno de objetos singulares: livros infantojuvenis.

Lembro-me dos monitores: Amanda, moça paulistana, muito prestativa e de voz doce; Ilan, divertidíssimo rapaz israelense, que saiu de seu país para trabalhar com jovens infratores na famigerada Ex-FEBEM.

Sem exagero: aquele curso mudou a minha vida. Foi tão importante quanto o tempo que despendi nos bancos universitários. A partir do Biblioteca Viva, aprendi a valorizar uma atividade tão antiga e nobre, não obstante sua simplicidade: contar histórias. Tornei-me um estudioso de Literatura Infantil e Infantojuvenil. E me convenci de que, a despeito de toda a podridão existente, mesmo um pequeno esforço contra a barbárie não é fútil.

Volto ao artigo citado. Os autores destacam que os princípios da entidade, quando da sua fundação (1990), baseavam-se no "respeito à dignidade da pessoa humana, especialmente os relacionados à igualdade e à justiça". Iniciativa do empresariado - seu fundador, Oded Grajew, que também subscreve o texto, é um dos poucos empresários que admiro -, a Fundação Abrinq, ao longo dos anos, "reuniu, nos conselhos administrativo e consultivo, lideranças da sociedade civil e política, intelectuais engajados e cidadãos motivados das várias áreas de atuação na interface com a questão da criança e do adolescente".

Dos equívocos apontados pelos signatários do texto, chamo atenção para um deles: "a fundação tem-se afastado da inteligência do campo da infância e da adolescência, tanto internamente como também por sua pequena participação nos fóruns de debate e de defesa desse campo".

Admito que não acompanhei detalhadamente esse desvirtuamento da Fundação Abrinq. O que posso atestar é o uso indiscriminado do selo da entidade (que virou uma espécie de grife) em produtos e iniciativas, de qualidade no mínimo duvidosa, voltados para o público infantojuvenil . Constatei também abandono e descaracterização completa de programas como o Biblioteca Viva.
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Alguns poucos segmentos de nossas elites econômicas têm uma interessante característica: o sentimento de culpa para com os "desvalidos". Para amenizar seu incômodo, criam aqui e acolá pequenos espaços e iniciativas "sociais", ótimos também para melhorar a imagem institucional das empresas e/ou organizações às quais estão vinculados. Discutir redução das suas margens de lucro, ou uma sistema tributário que incida com mais rigor sobre quem pode pagar mais, ou combater privilégios de classe de que sempre desfrutaram, nem pensar. Mas acredito que isso deve acontecer em todo lugar do mundo.

A diferença é que aqui esses espaços e iniciativas "sociais" duram apenas o tempo em que a propaganda persiste: ou são abandonados ou deixam-se acabar à míngua.

Sempre ouço a expressão "responsabilidade social" para designar o compromisso das empresas com a reparação de desigualdades socioeconômicas ou com a redução de problemas gerados pela própria atividade empresarial.

Vendo o que aconteceu com a outrora promissora Fundação Abrinq, me pergunto: responsabilidade social das empresas, esse treco existe?
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* BROIDE, Jorge et al. Em defesa da Fundação Abrinq. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 abr. 2010, Caderno Brasil, p. 3

BG de Hoje

Owner Of A Lonely Heart, do YES, é uma das minhas músicas preferidas. Mas eu gosto mais ainda do clipe, com sua atmosfera kafkiana. 

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Jogando água no chope da virtualidade (3)

Como se empregaram anteriormente os termos virtual e digital ao longo das postagens, acho apropriado defini-los melhor. Para tanto, recorro ao já clássico livro de Pierre Lévy, Cibercultura (São Paulo: Editora 34, 1999). Segundo o filósofo francês,

"A palavra ' virtual ' pode ser entendida em ao menos três sentidos: o primeiro, técnico, ligado à informática, um segundo corrente e um terceiro filosófico. O fascínio suscitado pela ' realidade virtual ' decorre em boa parte da confusão entre esses três sentidos. Na acepção filosófica, é virtual aquilo que existe apenas em potência e não em ato, o campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma atualização. O virtual encontra-se antes da concretização efetiva ou formal (a árvore está virtualmente presente no grão). No sentido filosófico, o virtual é obviamente uma dimensão muito importante da realidade. Mas no uso corrente, a palavra virtual é muitas vezes empregada para significar a irrealidade - enquanto a ' realidade ' pressupõe uma efetivação material, uma presença tangível. A expressão ' realidade virtual ' soa então como um oxímoro, um passe de mágica misterioso. Em geral acredita-se que uma coisa deva ser real ou virtual, que ela não pode, portanto, possuir as duas qualidades ao mesmo tempo. Contudo, a rigor, em filosofia o virtual não se opõe ao real mais sim ao atual: virtualidade e atualidade são apenas dois modos diferentes da realidade. Se a produção da árvore está na essência do grão, então a virtualidade da árvore é bastante real (sem que seja, ainda, atual)".

Não há, portanto, oposição entre virtual e real. A virtualidade refere-se a algo muito comum em nossa época mas que seria simplesmente inimaginável séculos ou mesmo décadas atrás: a possibilidade de suprimir obstáculos decorrentes das barreiras geográficas e do tempo, apenas com o uso de aparelhos e máquinas ao alcance da mão; algo verdadeiramente revolucionário e sem precedentes. Nossas sociedades, nossas economias, nossas manifestações artísticas, enfim, nossas culturas estão diante de um fenômeno avassalador (não à toa, usa-se a metáfora do dilúvio na introdução do livro Cibercultura)

E quanto ao digital?

Digitalização, sendo direto, é traduzir em números uma mensagem, uma informação.

Para Lévy, no geral, "não importa qual é o tipo de informação ou de mensagem: se pode ser explicitada ou medida, pode ser traduzida digitalmente". E são esses dígitos que circulam através dos circuitos eletrônicos, das redes de fibras óticas e outros meios de transmissão. E o mais importante:

"Mesmo se falamos muitas vezes de ' imaterial ' ou de ' virtual ' em relação ao digital, é preciso insistir no fato de que os processamentos em questão são sempre operações físicas elementares sobre os representantes físicos dos O e 1: apagamento, substituição, separação, ordenação, desvio para determinado endereço de gravação ou canal de transmissão".

Agora a pergunta: se a virtualidade é revolucionária e, hoje em dia, indispensável na vida de milhões de seres humanos e se os processos de digitalização favoreceram enormemente outros tantos milhões, por que desafiar/desafinar o "coro dos contentes" e jogar água no chope da virtualidade?

Tento responder a partir da próxima postagem, falando ainda do livro de Lévy.


BG de Hoje

Sem muito o que comentar, música de primeira. Compacto, com o baterista e compositor CURUMIN.


sexta-feira, 16 de abril de 2010

Jogando água no chope da virtualidade (2)



"A ideologia filosoficamente correta hoje imperante exige de nós pensar a oferta sem o ofertante, a técnica sem o técnico, a arte sem o artista".

Boris Groys


"Ignorance is bliss." 
Da personagem Cypher, no filme Matrix


No ensaio citado na postagem anterior (Deuses escravizados*), o filósofo alemão Boris Groys afirma que o herói de determinados filmes do mainstream hollywoodiano do final do último século "é um iluminista, um crítico da mídia e ao mesmo tempo um detetive particular que quer desmascarar não só a cultura em que vive, mas também todo o seu mundo cotidiano como uma ilusão artificialmente produzida". Mais: para Groys, filmes como Matrix realimentam o antigo - e aparentemente abandonado - debate metafísico antes típico da filosofia:

 "Pois saber se o filme hollywoodiano está ou não com a razão em seu esboço de metafísica é menos relevante do que o fato de, com isso, o além do mundo ser reposto na ordem do dia. A metafísica, por sua vez, como todos sabem, não desfruta atualmente de boa reputação nos meios culturais que antes a tinham por competência. Aliás nesses meios é quase algo espontâneo falar da ' destruição ' da metafísica - enquanto toda a esperança de um saber sobre os atributos do mundo é projetada sobre o conhecimento das ciências naturais".

Antes de prosseguir, um esclarecimento para evitar mal-entendidos: não sou adepto da "abordagem" metafísica: para falar a verdade, tenho até antipatia pela busca das "causas primeiras". No entanto, diante de certos apontamentos levantados pela Estética, pela Psicanálise, pela Teoria da Literatura, pela própria Epistemologia e pela Filosofia da Ciência (entre outros campos do conhecimento), apontamentos estes que obrigaram o discurso racional científico a se submeter a uma reavaliação e autocrítica necessárias, não posso evitar o exercício, mesmo tímido, de especular para além do que se aceita convencionalmente como a realidade.

Voltando ao ensaio. Afinal, o que é metafísica? Boris Groys assim a define:

"É um espaço discursivo no qual se pode formular a suspeita de que o mundo em que vivemos não seja possivelmente um mundo 'natural', mas sim produzido, elaborado - um mundo artificial".

Note-se bem: trata-se de uma suspeita, não uma certeza.

Prossegue Groys:

"E sendo correta essa suspeita, então não bastam as ciências naturais para transmitir o que é este nosso mundo, pois as ciências naturais se ocupam apenas da natureza, e não da arte. Se, portanto, a própria natureza pode ser pensada como obra de arte, as ciências naturais (físicas) esbarram em sua fronteira 'meta-física' ".

Desse modo, caso se reconheça o argumento acima como admissível, aceita-se que a arte, para além de suas "funções típicas", pode ser - e, segundo acredito, certamente é - também uma tentativa de descrição e de compreensão do mundo, mas que não intenciona (e nem poderia, penso eu) sobrepor-se à explicação tecnocientífica.

O ensaio, como disse anteriormente, trata de diversas outras questões muito relevantes (e voltarei a elas ao longo desta série de textos); a propósito, recomendo sua leitura na íntegra. Mas o que interessa mais de perto neste momento é a observação de Groys sobre uma personagem do filme Matrix: o ardiloso Cypher (interpretado pelo ator Joe Pantoliano):

"No fundo é somente o traidor da rebelião [existente no filme] que mostra aos outros o caminho certo: não é preciso acreditar na realidade, na 'naturalidade' do mundo - e tampouco é preciso, pois, revolta contra essa crença. Em vez disso, a pessoa desfruta o mundo como obra de arte, como 'ready-made' inserida num contexto maior, metafísico, que age como um museu no qual os objetos 'naturais' de nossa civilização, quando lá expostos como 'ready-made' , revelam sua artificialidade".

Até hoje, Matrix é uma das narrativas que melhor tematizou a relação realidade-virtualidade, sendo certeiro ao enfocar o papel das tecnologias digitais de comunicação e informação. O filme é perfeito na descrição do que acontece na chamada era virtual, em que cotidianamente tem-se cada vez mais dificuldade para separar o "natural" do "artificial", o "real" do "ilusório", o "físico" do "meta-físico". O processo parece ser irreversível. Pode-se aceitar - e desejar - o mundo exatamente assim, tal como Cypher ansiava no filme. Mas desconfio de que tal aceitação - e desejo - não limitarão a imensa torpeza e estupidez que sempre marcaram a trajetória humana. Além do mais, em minha opinião, refletem um comportamento bastante infantilizado.

Falo um pouco mais disso na próxima postagem.
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* GROYS, Boris. Deuses escravizados: a guinada metafísica de Hollywood. Folha de S. Paulo, São Paulo, 03 jun. 2001. Caderno Mais !, p. 4-11

BG de Hoje

Ah, que felicidade é ouvir uma canção perfeita! Não falo de música clássica nem erudita: sou - e serei sempre - um pobre e inculto ouvinte de rádio. Falo de canções pop, que a partir de seu início, arrebatam nossa mente, coração, estômago, o corpo todo. Penso, por exemplo, em Sossego, de Tim Maia, Day tripper, dos Beatles ou O telefone tocou novamente, de Jorge Ben (e tantas outras). Mas penso principalmente em Superstition, de STEVIE WONDER, ouvida hoje de manhã, logo que acordei. O dia, cinzento, ficou menos opressivo.


terça-feira, 6 de abril de 2010

Jogando água no chope da virtualidade (1)




Assisti a Matrix (The Matrix - direção de Andy e Larry Wachowski, 1999) dezenas de vezes. É um dos meus filmes preferidos. Um blockbuster com fumaças filosóficas: não consigo pensar em melhor forma de entretenimento cinematográfico. Mas nunca havia dado a devida atenção a uma de suas cenas iniciais que, após uma série de leituras, tornou-se, para mim, bastante significativa.

Neo (Keanu Reeves), na sua "identidade civil" de Thomas A. Anderson, recebe um celular no local de trabalho, a empresa Metacortex. Ao atender o telefone, é alertado por Morpheus (Lawrence Fishburne): Neo será detido. Levantando-se vagarosamente, o pobre sr. Anderson vê, por cima das divisórias dos cubículos, sujeitos engravatados com cara de poucos amigos. Entre eles, o agente Smith (Hugo Weaving) que, obviamente, Neo ainda não conhece.

O que a cena revela? Neo considerava-se seguro naquilo que, até aquele momento, ele reconhecia como sua "existência" digital e virtual. Essa segurança cai completamente por terra diante da ameaça bem concreta das forças de repressão do mundo, até aquele momento, reconhecido como "real". Além disso, a vida insignificante de Thomas Anderson não serviu de proteção para ele, insignificância que pode ser visualmente percebida na cena - afinal, trata-se de cinema - mostrando o cubículo cinzento no qual a personagem trabalha (ou vegeta?). O "virtual" e o "real" mesclam-se de forma dramática para Neo. E talvez, num futuro nem tão distante, o mesmo acontecerá com qualquer ser humano.

Uma das leituras a que fiz menção no início da postagem foi feita anos atrás. Trata-se do ensaio Deuses escravizados: a guinada metafísica de Hollywood*, do crítico de arte e filósofo alemão Boris Groys. NOTA: segundo pude apurar, as proposições desse autor estão longe de serem aceitas com tranquilidade. O poeta Antonio Cicero - também filósofo - recentemente ** citou o romancista Javier Cercas, que acha uma "bobagem" certos argumentos de Groys, em sua busca por originalidade. Ainda assim, considerei o ensaio mencionado anteriormente bastante instigante.

Em Deuses escravizados, Boris Groys defende que a metafísica está em declínio no pensamento contemporâneo e analisa duas narrativas cinematográficas (Metropolis, de Fritz Lang, e Matrix). Mesmo considerando o filme dos Irmãos Wachowski mais um dos inúmeros produtos oriundos da "estratégia da atual mídia de massas", que consiste na "autopropaganda, auto-abandono, auto-recriminação", Groys afirma que Matrix está "muito acima de todas as teorias que têm a pretensão de descrever a própria realidade, inclusive a realidade da produção cinematográfica".

Para chegar a essa conclusão, o crítico alemão discute a relação trabalho/consumo; a herança "iluminista"; o conceito de "morte do autor" entre outros pontos. Dada a sua densidade, volto ao ensaio na próxima postagem, tentando justificar também o título bastante estranho dessa nova série de textos.
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* GROYS, Boris. Deuses escravizados: a guinada metafísica de Hollywood. Folha de S. Paulo, São Paulo, 03 jun. 2001. Caderno Mais! , p. 4 - 11

** CICERO, Antonio. A antifilosofia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 mar. 2010. Caderno Ilustrada, p. 12

BG de Hoje

Quando eu era criança, toda a tipologia de rock pesado (punk, hardcore, metal, trash, speed...) era resumida pelos "leigos" em duas palavras: rock pauleira. O tempo passou, a gíria teve seu prazo de validade vencido e ninguém mais fala isso. Mas eu, que adoro a expressão, não consigo descrever de outra forma o som da banda carioca MATANZA. Pauleira pura e da boa! Abaixo, com a contundente Bom é quando faz mal.