segunda-feira, 28 de abril de 2014

Leitura fora da escola (I)

G. é um estudante pelo qual tenho apreço: é inteligente e curioso, sem ser muito irritante. Na sexta-feira passada, mal acabara de sair da sala para o intervalo, correu em direção à biblioteca. Ficou espantado com a porta fechada (eu havia saído um instantinho para pegar uma caneca de café). Quando retornei, perguntou-me se havia chegado nova edição da revista Recreio (Editora Abril) - seu material de leitura predileto. Ele tem 9 anos.

Mas G., infelizmente, assim como alguns outros estudantes, não faz empréstimos de livros. Fiquei sabendo que sua mãe não permite, pois além de alegar falta de tempo para acompanhar as atividades extraescolares do filho (entre estas, a leitura), ela receia que o livro emprestado se perca ou se danifique e não teria como arcar com o custo de reposição*. Longe de ser uma situação rara, muitas mães, pais e responsáveis adotam a mesma postura.

Atitudes como essa sempre me fazem pensar na (des)valorização social da leitura. Sendo mais direto, me fazem pensar no ato de ler fora dos espaços escolares**. Pergunto: o ambiente familiar tem sido propício para a formação de leitores? Que papel desempenha(m) a(s) mídia(s) no estímulo (ou desestímulo) à leitura? Ler - falo num sentido mais profundo, para além da elementar capacidade de decodificar sinais gráficos - pode ser considerada uma atividade com ampla disseminação na sociedade? Acho que esses três questionamentos ajudam a começar uma discussão ***.
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Vários pais e mães (ou algum outro responsável pela criança e/ou adolescente) deixaram, há muito, de ser vistos como exemplos de leitores. O que me leva a achar que, em sua maioria, as famílias não são incentivadoras de leitura: ou porque não se preocupam em manter e incrementar uma coleção particular de livros (mesmo que modesta); ou porque não promovem passeios a bibliotecas ou visitas a livrarias; ou porque não favorecem momentos de leitura dentro da própria casa, sequer demonstrando interesse pelo que cada um está lendo (ou deixando de ler).

Quanto à(s) mídia(s), recorramos, por exemplo, à imprensa. Cadernos de resenhas são raríssimos e suplementos literários estão praticamente extintos... Quando um livro ou escritor é destacado no rádio ou telejornal, a abordagem é sempre carregada pelos mesmos lugares-comuns e só se fala nos medalhões e nos best sellers. Isso sem mencionar a ausência, nos produtos do entretenimento e na publicidade, de personagens que sejam a representação de um leitor****.

Por fim, dê uma olhada ao seu redor. Quantas pessoas costumam ler livros nos lugares que você habitualmente frequenta? É comum, nas conversas com seus amigos e conhecidos, que se troquem comentários sobre os últimos textos lidos - sejam estes informativos, literários, técnico-científicos ou filosóficos?
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Hoje, exige-se que a escola, para além da alfabetização, assuma exclusivamente a complexa tarefa de formar leitores. Missão fadada ao fracasso, penso eu, pois a sociedade que, ao mesmo tempo, perpassa e permeia essa escola, não está nem aí para a leitura. Continuo na próxima postagem,  analisando alguns dados da última pesquisa Retratos da leitura no Brasil.
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* Mesmo reconhecendo que um grande número de famílias é pobre, essa alegada impossibilidade de arcar com o custo de reposição do livro é, em muitos casos, apenas um subterfúgio.

** Em tempo: não quero dizer com isso que a leitura esteja sendo devidamente valorizada nos intramuros das instituições de ensino. Mas escreverei sobre o assunto noutra oportunidade.

*** Há uma quarta questão, também importante: que ações governamentais, com o objetivo de incentivar a leitura e favorecer a formação de comunidades de leitores, seja no âmbito municipal, estadual ou federal, estariam sendo desenvolvidas? Qual a base material e o alcance  dessas ações (populações atendidas, órgãos envolvidos, orçamentos, recursos humanos empregados)? Por exigir um levantamento mais abrangente, não tratarei do tema neste momento

**** E quando o leitor aparece como personagem num comercial ou programa de TV costuma restringir-se ao estereótipo do nerd.

BG de Hoje

Não me canso de assistir e ouvir: "projeto" PLAYING FOR CHANGE, War/No more trouble

terça-feira, 8 de abril de 2014

Coisa de criança


"Mas não é verdade que o destino do infantilismo é ser superado? O homem não pode permanecer criança para sempre; ele precisa sair finalmente para a 'vida hostil'. Pode-se chamar isso de 'educação para a realidade'; ainda preciso lhe dizer que a única intenção deste meu escrito é chamar a atenção para a necessidade desse avanço".

Sigmund Freud - O futuro de uma ilusão.


No mês passado fiquei internado por duas semanas, tratando de um problema de saúde um tanto grave. Suponho que a maioria das pessoas, assim como eu, deteste o ambiente hospitalar. Em locais como esse, somos lembrados a todo instante do quanto somos entes fracos, sujeitos à dor, ao sofrimento, à doença, à morte. Sentimo-nos mais fragilizados. E são nesses momentos difíceis que muita gente se aferra ainda mais à sua fé. Na minha opinião, atitude bastante reveladora do quanto há de infantil na crença religiosa.

Escrevi certa vez aqui que uma das características mais desagradáveis da religião é a sua infantilidade e naquela postagem citei um trecho de O futuro de uma ilusão, de Sigmund Freud. Decidi reler o ensaio mais uma vez, ao sair do hospital, agora numa tradução mais recente*.

Publicado pela primeira vez em 1927, O futuro de uma ilusão apresenta o argumento de que a crença num ser todo-poderoso e atento aos problemas humanos nasce do sentimento de desamparo que acompanha a humanidade, desde a infância, e que nunca desaparece por completo, mesmo na vida adulta.

A sensação de vulnerabilidade experimentada na infância acabará por servir de esteio para a construção do pensamento religioso. Como escreve Freud:

" [...] essa situação não é nova: ela tem um modelo infantil, e é, na verdade, apenas a continuação de uma situação antiga, pois uma vez o homem já se encontrou em tal desamparo: quando criança pequena diante de seus pais, os quais tinha razão para temer - sobretudo o pai, mas de cuja proteção contra os perigos que então conhecia estava seguro. É natural, assim, comparar as duas situações".

E acrescenta:

"Cria-se assim um patrimônio de ideias, nascido da necessidade de tornar suportável o desamparo humano e construído o material de lembranças relativas ao desamparo da própria infância e da infância do gênero humano".

Espanta-me o fato de a religião (ou, mais simplesmente, a crença num ser divino todo-poderoso), chamada por Freud de "um sistema de ilusões de desejo com recusa da realidade", persistir no mundo contemporâneo, sem que pessoas adultas se deem conta do quanto isso é "coisa de criança".

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* FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Porto Alegre: L & PM, 2010. [Tradução de Renato Zwick]


P.S. Claro que há muitas outras maneiras de explicar e descrever o fenômeno religioso. Mas considero o ensaio de Freud um dos mais interessantes textos sobre o assunto. Noutra ocasião adiante, voltarei a falar mais detidamente desse escrito, já que nessa postagem só dei uma pálida noção do conteúdo dele.

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Outro comportamento típico do crente (refiro-me a todos aqueles que creem numa divindade e não só aos chamados evangélicos) e que me irrita pra caralho é dizer "estamos orando/rezando por você". Quando quem diz isso é alguém não tão próximo, que desconhece meu ateísmo, até dou um desconto. Mas quando parte de amigos e pessoas mais chegadas, fico puto. Lembro então duma frase divulgada pelo ator e comediante Márcio Américo, por meio do seu personagem Pastor Adélio (logo abaixo):


BG de Hoje

Se tem uma canção bem bagaceira que eu gosto pra caramba é essa: I Touch Myself, da banda australiana DIVINYLS.