sexta-feira, 31 de março de 2017

"A terna indiferença do mundo"


O penúltimo capítulo de O estrangeiro tem por base as perorações do promotor e do advogado envolvidos no caso de Meursault. Em determinado momento, o réu nos diz ¹:

"No fim, lembro-me apenas de que, na rua e através de todo o espaço das salas e das tribunas, enquanto meu advogado continuava a falar, eu ouvi o ecoar da buzina do vendedor de sorvetes. Assaltaram-me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie. Tudo quanto eu fazia de inútil neste lugar subiu-me então à garganta e só tive uma pressa: acabar com isto e voltar à minha cela para dormir".

Certos leitores talvez fiquem perplexos com a passividade de Meursault e o caráter - aparentemente - frívolo de seus pensamentos, sobretudo numa hora em que está correndo o risco de ser condenado à morte (o que, aliás, acaba acontecendo).  O excerto acima, contudo, é bastante ilustrativo de algumas das teses subjacentes a esse romance fora do comum ². Naturalmente, há vários outros ao longo do livro.

NOTA: Alguém que esteja lendo este texto - vai saber! - talvez reclame de "spoiler". Ora, uma obra literária ultrapassa - ou pelo menos deveria ultrapassar - as idas e vindas da trama. Como disse Leyla Perrone-Moisés, em entrevista recente, "[...] literatura é uma arte da linguagem. Ela tem significados complexos em vários níveis". A professora e crítica literária também observou que "literatura não é 'que' mas 'como'", ou seja, o plano do enredo tem menos importância do que a narração em si, a discursividade da obra. Até porque livros como O estrangeiro integram o repertório cultural da humanidade e qualquer pessoa razoavelmente familiarizada com o universo da ficção literária conhece episódios e até pormenores das histórias que tais livros contam, mesmo sem os ter lido. Penso que esse pueril "temor do spoiler" deveria ser reservado aos produtos do entretenimento comum.

A principal característica do personagem-narrador Meursault é sua indiferença. Quando seu patrão oferece-lhe uma boa oportunidade de trabalho em Paris, ele diz que tanto faz. O patrão quer saber então se uma mudança de vida não o interessaria.

"Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo o caso, todas se equivaliam, e que a minha aqui não me desagradava em absoluto. [O patrão] Mostrou-se descontente, ponderando que eu respondia sempre à margem das questões, que não tinha ambição e que isto era desastroso nos negócios. Voltei então para o meu trabalho. Teria preferido não o aborrecer, mas não via razão alguma para mudar minha vida. Pensando bem, não era infeliz. Quando era estudante, tinha muitas ambições desse gênero. Mas, quando tive de abandonar os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham real importância".

A mesma indiferença revela-se no seu relacionamento com Marie Cordona. Tanto fazia casar-se ou não com ela e perguntado se a amava, "respondi, como aliás já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava".

Todas as passagens aqui citadas ajudam-nos a perceber as teses inscritas em O estrangeiro. E quais seriam estas? Primeiramente, o acaso desempenha um papel crucial na existência (contrariamente ao que gostamos de pensar); e, em segundo, a eleição de determinados atos, pensamentos ou sentimentos como sendo "mais importantes" do que outros, no fundo, não passa de arbitrariedade calcada em convenções sociais. Para Camus, conduzimo-nos num mundo circundado pela contingência e inerentemente absurdo.

Sob essa perspectiva, por que a ritualização de um tribunal (artificial e convencional, como toda ritualização) valeria mais do que a alegria de um dia na praia ou "um certo céu de entardecer"? A mercê da absurdez do mundo, que importa viver em Paris ou ganhar mais dinheiro ou mesmo casar-se  - ainda mais quando, no caso de Meursault, não se é infeliz?

Numa análise crítica publicada na revista Cahiers du Sud alguns meses após o lançamento de O estrangeiro (ocorrido em 1942), Jean-Paul Sartre notou, como nos conta Horácio González ³, que o romance "não explica mas descreve, consagra uma literatura onde só o desolado presente é o que conta, e onde calar tem a mesma importância, senão maior, do que falar". De fato, a narrativa ocorre numa espécie de "vácuo" histórico e o narrador não parece particularmente disposto a compartilhar densas reflexões sobre si ou sobre o que acontece ao seu redor. Ao mesmo tempo, ele exibe uma sinceridade absoluta (desconcertante em vários momentos), como só uma criação ficcional poderia fazer.

Para Horácio González, Meursault designa "o ventre mais úmido da problemática camusiana", a saber: sendo o mundo absurdo, o que significa viver nele? De acordo com o sociólogo e ensaísta argentino, "o absurdo é um paradoxo irresolúvel - e por isso primariamente literário - que nos fala de uma 'nostalgia de unidade' entre o espírito que deseja e o mundo que desilude". O personagem-narrador de O estrangeiro não perderá seu tempo fingindo desvendar esse paradoxo. Comparando a criação de Camus com Antoine Roquentin, protagonista de A náusea, de Sartre (já escrevi sobre esse livro aqui), González observa que

"Enquanto Meursault gosta da praia, bronzeia seu corpo e brinca com a espuma das ondas em sua boca, Roquentin, o herói de A náusea, é um intelectual que sente a 'revelação da existência'. É a náusea entendida como desvendamento da consciência no mundo, como inevitável descoberta da carga falsificante que pode existir em qualquer relacionamento, mas que sabe não haver relacionamento sem essas falsificações. Sobre isto, Meursault nada sabe. Ele simplesmente vive o presente com a indiferença de quem acredita já não estar mantendo a distância entre o ser e o aparecer".

Mesmo não sendo um pensador, optando pela sensualidade tranquila da rotina, Meursault é inteligente o bastante para perceber que descobrir-se um homem livre - no sentido existencialista do termo , ou seja, dotado de autonomia, mas, ao mesmo tempo, impossibilitado de recorrer a instâncias exteriores a ele como forma de justificar os seus atos - conduz, não poucas vezes, na direção da tragédia, como ele próprio nos diz, após matar um indivíduo "por causa do sol":

"Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça".

. . . . . . .

Em 1979, a banda britânica The Cure lançou seu primeiro single e no lado A foi gravada uma faixa intitulada Killing an Arab, assumidamente inspirada em O estrangeiro (curiosamente, essa canção não entrou no primeiro disco da banda, embora tivesse sido gravada na mesma época; ela consta nas edições internacionais do álbum Boys Don't Cry, lançado no ano posterior, inclusive na edição brasileira - eu já tive esse vinil). No refrão, simples e direto, Robert Smith canta:

"I'm alive
I'm dead
I'm the stranger
Killing an Arab"

Nos últimos anos, ouvi dizer, a canção passou a ser interpretada nos shows com uma alteração na letra (o verso killing an Arab costuma ser mal interpretado, confundido como uma sugestão de violência contra árabes, quando, na verdade, ele apenas se refere a um dos dois incidentes principais do romance de Camus) .

Nosso interesse agora, contudo, é a segunda estrofe da canção:

"I can turn
And walk away
Or I can fire the gun
Staring at the sun
Whichever I chose
It amounts to the same
Absolutely nothing"

Meursault não escolheu virar-se e ir embora. Uma cadeia de acasos o levou até aquela praia com uma arma no bolso. Ele atira; exerce sua liberdade. Poderia não tê-lo feito. Sua vida ganharia outro rumo? É possível, mas qualquer que fosse a escolha, não escaparia do absurdo inerente ao existir.

Falamos anteriormente sobre a sinceridade desconcertante do personagem. Ele não aceita mentir. Por quê? Porque mentir é o que fazemos todos nós diariamente, fingindo que esse mundo faz algum sentido. Nossas mentiras tornam a existência menos complicada, mais fácil de digerir; sem elas, a vida em sociedade revelar-se-ia ainda mais problemática. O personagem de Camus, porém, não quer jogar o jogo da sociedade.

No último capítulo de O estrangeiro, farto das visitas e da pregação de um capelão, Meursault reage agarrando-o pela gola da batina e gritando com ele. Mais tarde, mais tranquilo em sua cela no corredor da morte, ele constata:

"Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que tinha sido feliz e que ainda o era. Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio".

Abrir-se à terna indiferença do mundo é o principal conselho - se é que existe algo desse tipo na obra de Camus - deixado para os leitores desse livro extraordinário. Resta saber quem suportaria as consequências dessa corajosa decisão existencial.

Na próxima semana, escreverei sobre cinco contos do escritor nigeriano Uwen Akpan.

__________
¹ CAMUS, Albert. O estrangeiro. 28 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. [Tradução de Valerie Rumjanek]

² Embora esteja inclinado a concordar com Horácio González (Albert Camus: a libertinagem do sol) de que o escritor "pertence à ordem da literatura" antes de ser "um ilustrador literário de teses filosóficas", não consigo deixar de encontrar vínculos entre os princípios filosóficos de Camus e sua ficção.

³ GONZÁLEZ, Horácio. Albert Camus: a libertinagem do sol. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1983  (Coleção Encanto Radical)

Embora Camus não se considerasse existencialista

 O que demonstra, a meu ver, como as pessoas estão cada vez mais ignorantes e com baixos níveis de letramento literário.

BG de Hoje

Não gosto do termo pós-punk (não se tem, por exemplo, um pós-blues ou um pós-heavy metal). É um termo que não explica muita coisa. Costuma-se dizer que KILLING JOKE é pós-punk. Mas também o são Talking Heads, The Cure e Joy Division, bandas com pouquíssima coisa em comum. Pelo menos em seus primórdios, acho que os caras do Killing Joke faziam um som claramente punk, apenas temperado com uns toques, digamos, dançantes nalgumas faixas. É o caso de Change.

sábado, 25 de março de 2017

Falou e disse...


"Meu Amigo sendo de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia. Por tudo, talvez, costumava afirmar: 
- 'A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio'. Meu amigo sendo fatalista". *

* ROSA, João Gumarães. Fatalidade. In: __________. Primeiras estórias.Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008. p. 64-69

quarta-feira, 22 de março de 2017

Um novo enfoque sobre a história do Brasil


Não é comum que eu saia logo lendo um livro que acabei de comprar. O habitual é que ele fique sobre uma pilha, junto com outros, ou aguardando na estante por alguns meses (alguns anos até, dependendo do caso). Não é que eu não queira lê-lo (se assim fosse, qual motivo para comprá-lo?); é simplesmente porque, em geral, já estava envolvido com outro(s) livro(s) antes da nova aquisição.

Brasil: uma biografia (Editora Companhia das Letras, 2015) foi, contudo, um destes a "furar a fila" na ordem de leituras do blogueiro. Comprei-o há algumas semanas, mas soube da publicação no ano passado e logo me interessei, sobretudo porque foi elaborado por duas intelectuais a quem respeito muito: as historiadoras Heloisa Murgel Starling, também cientista política e professora aqui, na UFMG, e Lilia Moritz Schwarcz, também antropóloga e professora na USP. De Starling, conhecia o trabalho Lembranças do Brasil: teoria, política, história e ficção em Grande Sertão:Veredas, através do qual consegui alcançar outro entendimento da obra de Guimarães Rosa, indo além do literário. De Schwarcz, já li A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil (em colaboração com Paulo César de Azevedo e Angela Marques da Costa), excelente para se compreender o papel histórico que uma biblioteca pode desempenhar ¹, além do divertido D. João Carioca, em parceria com o cartunista Spacca. Aprecio muito também sua coluna no jornal Nexo.

Heloisa e Lilia propõem, em Brasil: uma biografia,

"uma história que ambiciona ser mestiça como de muitas maneiras são os brasileiros: apresenta respostas múltiplas e por vezes ambivalentes sobre o país; não se apoia em datas e eventos selecionados pela tradição; seu traçado não se pretende apenas objetivo ou nitidamente evolutivo, uma vez que carrega um tempo híbrido capaz de agenciar diversas formas de memória",

Ainda na Introdução de seu livro, as autoras ressaltam que a principal questão a permear a narrativa será "a nossa difícil e tortuosa construção da cidadania", questão esta diretamente ligada à escravidão e seus desdobramentos. Vamos pensar, por exemplo, no caso da abolição por meio da Lei Áurea. Apesar de acabar (pelo menos do ponto de vista jurídico) com uma das mais odiosas formas de exploração/opressão já existentes, "atos como esse, não poucas vezes, vinham seguidos de reveses políticos e sociais, os quais começavam a desenhar um projeto de cidadania inconclusa, uma república de valores falhados [...]". Mas as consequências do escravismo não param por aí. Segundo Schwarcz e Starling "uma determinação cultural profunda" insere-se em nosso itinerário como nação: a violência.

"Como se fosse um verdadeiro nó nacional, a violência está encravada na mais remota história do Brasil, país cuja vida social foi marcada pela escravidão. Fruto da nossa herança escravocrata, a trama dessa violência é comum a toda a sociedade, se espalhou pelo território nacional e foi assim naturalizada. Se a escravidão ficou no passado, sua história continua a se escrever no presente. A experiência de violência e dor se repõe, resiste e se dispersa na trajetória do Brasil moderno, estilhaçada em milhares de modalidades de manifestação".

É como se a república que nascera após o período escravocrata tivesse gerado cidadãos de primeira classe e cidadãos de segunda (às vezes, terceira ou quarta) classe. Como observam as historiadoras, "[...] não há como esquecer também os tantos processos de exclusão social. Eles se expressam nos acessos ainda diferentes a ganhos estruturais no lazer, no emprego, na saúde e nas taxas de nascimento, ou mesmo nas intimidações e batidas cotidianas da polícia, mestra nesse tipo de linguagem da cor".

Brasil: uma biografia também problematiza a ideia de que o país é a terra da harmonia, da concórdia. Recuperando o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, Schwarcz e Starling afirmam que

"o país foi sempre marcado pela precedência dos afetos e do imediatismo emocional sobre a rigorosa impessoalidade dos princípios que organizam usualmente a vida dos cidadãos nas mais diversas nações. 'Daremos ao mundo o homem cordial', dizia Holanda, não como forma de celebração, antes lamentando a nossa difícil entrada na modernidade e refletindo criticamente sobre ela. Do latim 'cor, cordis' deriva-se 'cordial', palavra que pertence ao plano semântico vinculado a 'coração' e ao suposto de que, no Brasil, tudo passa pela esfera da intimidade (aqui, até os santos são chamados no diminutivo), num impressionante descompromisso com a ideia de bem público e numa clara aversão às esferas de poder. O pior é que mesmo Holanda foi reprovado pela ideologia do senso comum. Sua noção de 'cordial', na visão popular, tem sido castigada pelo juízo invertido. Foi reafirmada como um libelo das nossa relações cordiais, sim, mas cordiais no sentido de harmoniosas, sempre receptivas e contrárias à violência, em vez de ser entendida a partir de seu sentido crítico - a nossa dificuldade de acionar as instâncias públicas". 

Isso, claro, vai ao encontro de uma certa representação de país que muitos aqui gostam de cultivar, apesar de não se verificar empiricamente: aquela imagem de "um país avesso ao radicalismo e parceiro do espírito pacífico, por mais que inúmeras rebeliões, revoltas e manifestações invadam nossa história de ponta a ponta. Somos e não somos, sendo a ambiguidade mais produtiva do que um punhado de imagens oficiais congeladas".

O livo é composto de 18 capítulos e convida o leitor - citando Hannah Arendt - a aprender a "treinar a imaginação para sair em visita", um modo de se evitar que o texto fique preso a uma perspectiva linear simplificadora.


"Longe da imagem do país pacífico e cordato, ou da alentada democracia racial, a história que aqui se vai contar descreve as vicissitudes dessa nação que, sendo profundamente misturada, acomodou junto - e ao mesmo tempo - uma hierarquia rígida, condicionada por valores partilhados internamente, como um idioma social. Visto desse ângulo, e conforme provocava Tom Jobim, o país 'não é pra principiantes' e precisa mesmo de uma boa tradução".

Já avancei pelos dois primeiros capítulos. Mas é o tipo de livro que lerei bem aos pouquinhos. Claro, junto com outros que já estava lendo.

__________
¹ Este trecho de A longa viagem da biblioteca dos reis demostra bem o que estou dizendo: "Esse local labiríntico é, entretanto, e acima de tudo, uma instituição, onde se desenham desígnios intelectuais, realizam-se políticas de conservação, elaboram-se modelos de recolha de textos e de imagens. Mais do que um edifício com prateleiras, uma biblioteca representa uma coleção de seu projeto. Afinal, qualquer acervo não só traz embutida uma concepção implícita de cultura e saber, como desempenha diferentes funções, dependendo da sociedade em que se insere.
     Nesse sentido, as bibliotecas do Ocidente, além de cumprir um importante papel na história do pensamento, apontaram limites da tradição, evidenciaram a organização de escolas e revelaram divisões internas e conflitos. Talvez por isso mesmo tenham se convertido, muitas vezes, em instrumentos de poder. Quer por meio da influência espiritual da Igreja, quer em nome da força temporal do rei, dos príncipes, da aristocracia, da nação ou da República, o fato é que as bibliotecas se transformaram, facilmente, em moeda de prestígio e geram concorrência entre aqueles que detêm seu controle".


BG de Hoje

O talentosíssimo cantor e compositor belo-horizontino PEDRO MORAIS, com O amanhã


quinta-feira, 16 de março de 2017

Lygia Bojunga: há 45 anos "fabricando tijolos" e maravilhando leitores (II)


 "No dia em que optei por literatura eu me prometi que ia escrever do meu jeito e não mais do jeito-que-tem-que-dar-audiência".


Lygia Bojunga - Pra você que me lê (incluído como posfácio numa das edições do livro O Meu Amigo Pintor)

Prosseguindo com nossas observações acerca da obra de Lygia Bojunga, retomemos os dois pontos que deixamos em aberto na postagem anterior:

1) Comecemos nos perguntando o que pode ter levado a autora, na entrevista mencionada no texto da semana passada, a dizer que só a partir de seu terceiro ou quarto livro sua escrita começa a ser literatura? Talvez não o fosse antes, nos livros intencionalmente escritos para criança? Essas perguntas remetem-me a um depoimento - lindo, lindo - feito pelo falecido Bartolomeu Campos Queirós e publicado no final dos anos 1990 ¹.

O autor de Indez e Ler, escrever e fazer conta de cabeça começa falando de sua infância, de seus primeiros contatos com o texto impresso e das suas motivações para escrever: "Percebi que só há dois lugares para se falar da gente. Na literatura ou no divã do analista. De outra maneira vira fofoca". A certa altura, Queirós - geralmente identificado como escritor de literatura infantojuvenil - afirma:

"Não escrevo 'para' crianças. Minha limitação é maior que o mundo e não possuo a ousadia - ou coragem -, ao chegar em casa, de puxar a cadeira e dizer: 'Vou escrever mais uma história para as criancinhas'. [...] Se meu texto é eleito pela criança, sinto-me realizado pelo que há de honesto na infância [...] A arte, e no caso a literatura, é para criar desequilíbrio, buscar outro prumo, e não botar pano quente em inquietações mornas. Daí eu não estar interessado em escrever aquilo que as crianças querem. Isso não acrescentaria nada em termos de intuição poética. Espantam-me as pessoas capazes de traçar cânones, normas, ensinando como construir um texto para os pequenos - muito diálogo, muita ação, frases curtas, sem esquecer do humor. Nada de tristezas. Se sabem tanto como deve ser o livro, desconhecem o processo de criação literária. Deviam escrever e não ficar perdendo tempo em dar ideias. É muito sacrifício".

Junto com o desabafo direcionado a determinados editores e estudiosos do assunto, Bartolomeu Campos Queirós nega ter em mente um "leitor-criança-ideal" quando cria. Outros autores, cujos livros costumam ser colocados na prateleira da literatura infantil, fazem o mesmo - penso, por exemplo, em Ricardo Azevedo. E, claro, também em Lygia Bojunga. Então, por que diabos gostamos de contrariar os escritores pespegando o carimbo "LITERATURA INFANTIL (OU JUVENIL)" no que fazem?

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Existe ou não existe essa coisa chamada literatura infanto-juvenil? Não acho uma pergunta tola; muita gente, entendida no assunto, argumenta que não há razão para, a priori, delimitar que A foi feito para criança (ou adolescente) e B não.  Pessoalmente, defendo a existência desse domínio literário. Acredito que, na maioria dos casos, os autores e autoras estabelecem, de antemão, o destinatário imaginado de seu texto. As escolhas de vocabulário, a organização sintática dos períodos, a extensão da narrativa e até mesmo a temática (algumas vezes) revelam que a narrativa (ou poema, peça teatral, etc.) visava um receptor menos "treinado" que o adulto. A criança - e mesmo o adolescente - são, em relação ao idioma, usuários em construção. Suas performances linguísticas - falando, escrevendo ou lendo - demonstram esse processo. Quem escreve profissionalmente não desconhece isso.

Tenho para mim, porém, que alguns escritores e escritoras talvez ressintam-se um pouco quando se diz que seu trabalho é literatura infanto-juvenil - como se o adjetivo infanto-juvenil fosse depreciativo. Talvez julguem uma área sem prestígio já que a universidade e grande parte da crítica literária não se voltam muito para a produção que tem a criança e o jovem como destinatários principais.

Por ser um setor relativamente mais rentável e aparentemente - sabemos que não é - mais "fácil" para se produzir, os livros infantis e juvenis tornaram-se um filão no qual muitos oportunistas, escritores e escritoras sem talento algum, tentam se dar bem. Em meio a centenas e centenas de lançamentos anuais, às vezes é difícil destacar o que realmente vale ser lido. Nesse aspecto, as unidades de educação básica poderiam desempenhar um importante papel como agências de incremento da leitura, indicando a seus estudantes - e explorando em seu dia-a-dia - as obras mais significativas. Entretanto, o que tenho testemunhado é uma subordinação dessas instituições aos ditames do mercado - como já acontece na política, cultura e noutras esferas da sociedade. Vejo nas bibliotecas escolares exemplares e mais exemplares do Diário de um banana, livros-que-viraram-blockbusters-hollywoodianos (e vice-versa), frivolidades de Thalita Rebouças e outras nulidades tão ou mais comercialmente apelativas.

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2) Desde de 1972 - portanto há 45 anos - Lygia Bojunga tem construído uma obra extraordinária, classifiquemo-la como infanto-juvenil ou não, pouco importa agora. O que importa é que esse conjunto de textos precisa ser celebrado - e, principalmente, lido, lido, lido... Afinal, poucos escritores brasileiros foram tão reconhecidos, inclusive através de premiações. Bojunga, acho, é a autora mais laureada em seu segmento (contando também as vezes em que foi "altamente recomendável") pela FNLIJ - Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil -; venceu três vezes o Jabuti e, em 1982 - não esqueçamos -, recebeu a medalha Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infanto-juvenil (foi a primeira latino-americana a ganhá-la e, até hoje, só outra representante brasileira mereceu-a: Ana Maria Machado, premiada em 2000).

Por falar nessa medalha, na ocasião do recebimento do prêmio, Lygia escreveu um pequeno - porém, sublime - texto, intitulado Livro - a troca, traduzido e divulgado em mais de 60 países. Nele a escritora fala sobre sua relação com o objeto-livro, desde a infância, na condição de leitora, até o momento presente, quando, depois de "pegar intimidade com as palavras", converte-se em escritora.

Os livros deram a ela "casa e comida". Aqueles objetos ajudavam-na a brincar de construtora:

"livro era tijolo; em pé, fazia parede, deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava num outro e fazia telhado.

E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro".

Com o passar do tempo e a imaginação alimentada pelos livros, vem a decisão "de alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra – em algum lugar – uma criança juntar com outros, e levantar a casa onde ela vai morar".

O desejo de escrever e o ofício de escritora são temas muito presentes na obra de Lygia Bojunga. Lembremos, por exemplo, que, em A bolsa amarela, uma das vontades da menina Raquel - a que permanece com ela -  é a de ser escritora. Lembremos também do conto A troca e a tarefa (que, de algum modo, me faz recordar um conto de outra Lygia, a Fagundes Telles, chamado Verde lagarto amarelo), em que o trabalho da personagem roça o terreno do sobrenatural: "Cada um tem uma tarefa na vida. A tua é escrever 27 livros. Na hora em que botar o ponto final no vigésimo sétimo livro, a tua tarefa vai estar acabada e a tua vida vai terminar" ². Isso sem falar nos títulos Livro - um encontro, Fazendo Ana Paz e Paisagem, que compõem a chamada trilogia do livro.

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No ano em que completa 85 anos de idade e 45 anos de carreira literária, tinha ainda tanto a escrever com o objetivo de homenagear essa grande escritora! Falar sobre o modo como os artistas são representados em seus livros, sobre sua consciência de que o escritor profissional deve e merece ser valorizado (leia-se remunerado) adequadamente pelo seu trabalho, sobre algumas peculiaridades estilísticas que dão a seu texto uma feição tão cativante, sobre o quanto a fase cinzenta de sua literatura deveria ser mais conhecida pelo público familiarizado apenas com a fase luminosa, sobre o quanto gosto do livro Tchau....

Combinamos o seguinte: cada um desses pontos será retomado ao longo deste ano. Prometo.

Ah, recomendo uma visita ao site da escritora: http://www.casalygiabojunga.com.br/pt/index.html

__________
¹ QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Menino temporão. In: PAULINO, Graça (Org.). O jogo do livro infantil. Belo Horizonte: Dimensão, 1997. p. 41-43

² BOJUNGA, Lygia. A troca e a tarefa. In: ______. Tchau. 19 ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2009. p. 87-112


BG de Hoje

Pra que discutir com madame, maravilhosa composição de Janet de Almeida e Haroldo Barbosa, foi interpretada por muita gente: Luiz Melodia, Elza Soares, Diogo Nogueira, Teresa Cristina... A gravação mais conhecida, certamente, é a de João Gilberto. Não sou fã do cantor e violonista baiano (OK, podem me apedrejar), por isso opto pela versão de sua conterrânea, ROSA PASSOS.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Lygia Bojunga, há 45 anos "fabricando tijolos" e maravilhando leitores (I)


"E tem gente como eu: em qualquer fase da vida não abre mão, mas não abre mão mesmo, de ter sempre por perto o tal amigo pra valer: LIVRO. Mesmo porque ele é o único amigo que nunca cria caso pra ficar com a gente seja onde for: sala, quarto, banheiro, cozinha, sombra de árvore, areia de praia, fundo de sofá, fundo de mágoa; e fica junto da gente mesmo no pior lugar do ônibus, do trem, do avião; enfrenta até numa boa cadeira de dentista e leito de hospital. E, se quem escreveu o livro consegue mexer com o nosso pensamento e balançar a nossa imaginação - pronto! aí se forma uma relação, um laço, que amarra pra valer quem escreve com quem lê".

Lygia Bojunga - Pra você que me lê (incluído como prefácio na 17ª edição do livro Tchau).

Lygia Bojunga raramente concede entrevistas - mais pelo jeito reservado do que por outra razão, penso eu. Por isso, quando a artista se manifesta fora de seus livros, todos que a admiramos paramos para escutar. Em 2012, ela trocou algumas palavras com Daniel Antônio, do extinto programa Entrelinhas (TV Cultura). A escritora, demonstrando sinceridade, afirma que seus "dois ou três primeiros [livros] começaram com uma intenção de escrever para criança", acrescentando em seguida: "Achei que escrevendo para criança seria até uma coisa menos difícil, para começar [uma possível carreira literária]". Antes dessa experiência, Lygia - também atriz - estava acostumada a escrever dramaturgia, em especial para o rádio e a televisão.

"A partir do meu terceiro ou quarto livro" - prossegue ela - "minha escrita foi se modificando no sentido de que começou a ser o que a gente chama de literatura, que é um processo assim muito mágico e que tem muito a ver com o subconsciente. É claro que às vezes - às vezes não, quase sempre - sai muito disfarçado. E às vezes sai até em forma de bicho porque a figura de um tatu ou de um pavão ou de um vira-lata encaixa melhor nas minhas preocupações, nas minhas ansiedades, nos meus sonhos. E, sobretudo, acho que [em] todos os meus livros, sem exceção, [há] uma preocupação [com a realidade] social desse nosso Brasil".
(A participação da autora no Entrelinhas está no Youtube: https://youtu.be/9KKob3AWnGk)

NOTA: Uma pulguinha vem se alojar atrás da minha orelha, lendo/ouvindo o que nos diz a escritora a respeito de seus primeiros livros (por certo ela está se referindo, especificamente, a Os colegas e Angélica). Será que eles não mereceriam ser também chamados de Literatura? Por que não? Por terem sido, intencionalmente, pensados para uma criança? Questões assim remetem-nos às velhas desconfianças (e alguma inapetência) que sempre cercaram a avaliação crítica da produção literária infantil e juvenil (vale a pena falar um pouco sobre isso, mas deixarei para o final deste par de postagens).

Vera Maria Tietzmann Silva ¹, professora da Universidade Federal de Goiás, considera que "os temas nevrálgicos têm sido a marca distintiva da ficção de Lygia Bojunga, que vem desde 1972 [...] revolvendo as chagas sociais e individuais de nosso tempo". A desigualdade social brasileira, suas moradias precárias, suas infâncias desassistidas, o desemprego e a instabilidade do trabalho informal sempre a assombrar o país e, mais universalmente, "o consumismo desenfreado, a ineficácia do sistema escolar, o autoritarismo no relacionamento humano, o imobilismo na distribuição de funções entre homens e mulheres, a acomodação ao estabelecido, o machismo, os preconceitos de todos os tipos, a alienação televisiva - são aspectos da sociedade contemporânea registrados por Lygia em traço caricatural". A escritora aborda temas ainda mais densos e terríveis em alguns de seus trabalhos, como o suicídio, o estupro e a pedofilia.

Segundo a professora, pode-se dividir a obra de Bojunga em duas: uma fase luminosa (a mais curta, a meu ver) que vai de 1972 (a estreia, com o livro Os colegas) até 1980 (quando sai O sofá estampado); e uma fase mais cinzenta, iniciada em 1984, com o extraordinário livro de contos Tchau, perdurando até hoje (embora em seu estudo, Tietzmann Silva estenda sua análise somente até 1987 e o livro O Meu Amigo Pintor).

Com exceção de Corda bamba, os livros luminosos contam com animais como personagens e dois deles, como já vimos, foram assumidamente pensados para crianças. Entre os títulos dessa fase encontram-se dois dos meus livros preferidos dessa autora (e, provavelmente, muitos de seus leitores pensam o mesmo): A bolsa amarela, publicado pela primeira vez em 1976 e a A casa da madrinha (1978). Ambos são ideais para perceber dois traços adoráveis de Lygia Bojunga: o ritmo que ela imprime ao texto e a maneira como ela opera a transição da realidade para a fantasia (e vice-versa). Observemos um trecho de A bolsa amarela ². Raquel, a protagonista, conversa com Afonso, um galo que foi personagem de uma história inventada pela menina:


" - Ei, Afonso! - Ele meio que acordou - Como é que você veio parar aqui dentro da bolsa amarela, hein?
- Entrei na tua casa, comecei a procurar um lugar bom pra me esconder, vi a bolsa debaixo da cama e pronto.
- Mas como é que você entrou aqui? Você voou?
- Vim de elevador.
- Sozinho?
- Não, tinha mais gente.
- E ninguém viu que você era um galo fugido?
- Eu tava de máscara.
- Ah, é! Então boa noite.
- Dorme bem".

Não é só a coloquialidade, presente também na escrita de muitos outros bons autores (penso, por exemplo, em Ruth Rocha, Sylvia Orthof e Leo Cunha), mas a capacidade de saber o tamanho certo que cada frase deve ter (como se fosse música). Quanto à transição realidade-fantasia, vamos dar uma olhada em uma passagem de A casa da madrinha ³. O personagem central, Alexandre, junto com sua amiga Vera e o Pavão, companheiro de viagem, inventam um cavalo - cujo nome é Ah - para conseguir chegar à casa da madrinha (que simboliza um lugar de esperança para Alexandre, menino pobre, saído da favela pra ganhar o mundo):


"E lá se foi [o cavalo]. Galopando, galopando, galopando. Varou o pomar num instante, passando rentinho dos galhos. Vera, Alexandre e o Pavão abaixavam a cabeça, entortavam o corpo pra ver se escapavam de espinho, de galho, de tudo: gritavam de susto, de medo, o galope era doido demais. O Ah escutava os gritos, mas no barulho do galope e do vento achava que eles estavam gritando pra ele correr ainda mais, e então corria, corria, corria, corria cada vez mais. O pomar ficou pra trás, chegou o capinzal. Alexandre apontou a cerca pertinho, Vera se apavarou:

- Para! Volta! Para!

Mas o Ah nem ligou. Alexandre puxava a crina dele, pra ver se ele pensava, se ele parava, mas quem diz que ele ligava? e a cerca chegando, chegando, chegando.

- Para! Para!

Vera fechou os olhos: não queria ver mais nada. Mas quem sabe era sonho e abrindo os olhos passava. Abriu. E viu a cerca bem na frente. Alta. Cheia de espinhos. Feia. Pra todo mundo ficar com medo e não passar.

O Ah nem pestanejou: armou o pulo e passou. Foi só ele passar que o sol sumiu. E ficou tudo bem de noite".

É por passagens como essa, sem dúvida, que alguns situam Lygia Bojunga dentro da corrente do realismo mágico, como faz Nelly Novaes Coelho . Para essa estudiosa, obras nessa linha diluem a fronteira entre a realidade e o imaginário, fundindo-os "para dar lugar a uma terceira realidade, em que as possibilidades de vivências são infinitas e imprevisíveis. Situações centradas no cotidiano comum, em que irrompe algo 'estranho', que é visto ou vivido com a maior naturalidade pelas personagens".

Antes de terminar, mais uma coisinha.

Deve-se notar que, em Os colegas, o "hino" cantado pelos amigos chama-se "Vida, acho você a maior" e em Angélica, a segunda frase escrita é "Coisa boa que é a vida!". Mais: A bolsa amarela e seu lindíssimo último capítulo, quando as vontades de Raquel transformam-se em pipas; Alexandre portando a chave que pode abrir A casa da madrinha; Maria, em Corda Bamba, imaginando como será seu futuro, feito a partir de suas próprias escolhas; e mesmo O sofá estampado, apesar de incluir a morte entre seus temas; todos esses livros, cada um a seu modo, falam de esperança. O que me leva a pensar que, talvez, só a literatura infantil e juvenil ainda seja capaz de conservar a esperança e o otimismo sem que isso pareça impostura, superficialidade ou traição.

A medida que o tempo passa, porém, as narrativas da artista começam a ficar mais desconsoladoras - nem por isso perdem em beleza e qualidade.

Escreverei sobre isso na próxima semana, além de retomar as questões deixadas em aberto na nota colocada lá no alto desta postagem. Também será preciso explicar o fabricando tijolos incluído no título desse conjunto de textos sobre Lygia Bojunga.


__________ 
¹ SILVA, Vera Maria Tietzmann. Lygia Bojunga. In: _______. Literatura infantil brasileira: um guia para professores e promotores de leitura. 2 ed. Goiânia: Cânone Editorial, 2009. (p. 135-163)

² BOJUNGA, Lygia. A bolsa amarela. 33 ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2005.

³ _______. A casa da madrinha. 19 ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2009.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 7 ed. São Paulo: Moderna, 2000

BG de Hoje

Não lembro qual foi a última vez em que olhei pro mundo de forma positiva. Houve uma época, entretanto, em que eu achava possível "fazer a diferença", como se diz nesses filmes hollywoodianos água-com-açúcar (estava errado, claro). Em 1996 ainda era aluno na Faculdade de Letras e professor contratado da rede estadual de ensino. Acreditava que "tinha um futuro" e que a educação pública iria melhorar (pra se ver como já fui bem mais imbecil do que sou hoje). Naquele ano, duas canções tocavam muito no rádio (bem, pelo menos na 107 FM, antes de ser fagocitada pelas igrejas evangélicas) e eu adorava ambas: Bulls On Parade, do Rage Against the Machine e Follow You Down, do GIN BLOSSOMS. A primeira, como não podia deixar de ser, é um sensacional petardo politizado, como é de praxe com o RATM. A segunda é pura sensibilidade, nem por isso gosto menos: sempre que eu a ouvia, ia mais animado pra universidade ou pro trabalho. Outros tempos...

segunda-feira, 6 de março de 2017

Um fascista mora ao lado, de Vladimir Safatle


Deveria hoje estar escrevendo sobre Lygia Bojunga e sua obra. Vai ficar para quinta-feira. Explico.

Não é habito deste blog reproduzir, integralmente, textos de terceiros. 

Na semana passada, porém, li algo escrito pelo Vladimir Safatle, filósofo e professor da USP - um texto tão bem articulado (mesmo sendo de pequena extensão) e com o qual concordo tão completamente - que não me resta outra alternativa a não ser republicá-lo aqui no Besta Quadrada.

Safatle observa (acertadamente, a meu ver) que uma parcela significativa da "classe média brasileira com sua semiformação característica assumiu de forma explícita uma perspectiva simplesmente fascista", como se pode perceber, por exemplo, ao analisar dados da última pesquisa de intenção de voto nas eleições presidenciais de 2018.

(Sinceramente, estou apreensivo não só pelo atual momento político do Brasil, mas também pelo que está por vir.)

O texto foi originalmente publicado na coluna do autor no jornal Folha de S. Paulo, em 03/03/2017. Entretanto, cheguei a ele através do site da Luciana Genro.

Vale a pena ler. Mesmo.


UM FASCISTA MORA AO LADO


Vladimir Safatle


Há alguns dias, foi publicada a última pesquisa CNT/MDA para a eleição presidencial de 2018. Três fenômenos são dignos de nota: a ascensão de Lula, que venceria hoje em todos os cenários, a queda de todos os candidatos ligados de forma ou outra ao atual desgoverno e a consolidação do sr. Jair Bolsonaro em segundo lugar, em empate técnico com Marina Silva.


Um leitura mais detalhada da pesquisa revela fatos ainda mais surpreendentes. Bolsonaro é o candidato mais votado dentre aqueles que possuem ensino superior (20,7%) e aparece empatado com Lula na escolha dos que ganham acima de cinco salários mínimos (20,5%).


Já há algum tempo, o termo “fascista” é utilizado no embate político de forma meramente valorativa, e não descritiva. Ou seja, não se trata de descrever algum tipo específico de fenômeno político, mas simplesmente de desqualificar aquele que gostaríamos de retirar do debate político.


No entanto, há sim um uso descritivo do termo, há situações nas quais devemos nomear claramente o que, no final das contas, é a pura e simples adesão a práticas facilmente qualificadas como fascistas. Pois poderíamos dizer que todo fascismo tem ao menos três características fundamentais.


Primeiro, ele é um culto explícito da ordem baseada na violência de Estado e em práticas autoritárias de governo. Segundo, ele permite a circulação desimpedida do desprezo social por grupos vulneráveis e fragilizados. O ocupante desses grupos pode variar de acordo com situações históricas específicas. Já foram os judeus, mas podem também ser os homossexuais, os árabes, os índios, entre tantos outros. Por fim, ele procura constituir coesão social através de um uso paranoico do nacionalismo, da defesa da fronteira, do território e da identidade a eixo fundamental do embate político.


Neste sentido, não seria difícil demonstrar todo o fascismo ordinário do sr. Bolsonaro. Sua adesão à ditadura militar é notória, a ponto de saudar e prestar homenagens a torturadores. Não deixa de ser sintomático que pessoas capazes de se dizerem profundamente indignadas contra a corrupção reinante afirmem votar em alguém que louva um regime criminoso e corrupto como a ditadura militar brasileira (vide casos Capemi, Coroa-Brastel, Paulipetro, Jari, entre tantos outros).


Bem, quem começa tirando selfie com a Polícia Militar em manifestações só poderia terminar abraçando toda forma de violência de Estado.


Por outro lado, sua luta incansável contra a constituição de políticas de direito, reparação e conscientização da violência contra grupos vulneráveis expressa o desprezo que parte da população brasileira sempre cultivou, mas que agora se sente autorizada a expressar.


Por fim, o primarismo de um nacionalismo que expressa o simples culto do direito secular de mando, algo bem expresso no slogan “devolva o meu país”, fecha o círculo.


Ora, o fato significativo é que a maioria da classe média brasileira com sua semiformação característica assumiu de forma explícita uma perspectiva simplesmente fascista.


Ela operou um desrecalque, já que até então se permitia representar por candidatos conservadores mais tradicionais. Essa escolha é resultado de uma reação à “desordem” e à abertura produzida pela revolta de 2013.


Todo evento real produz um sujeito reativo, sujeito que, diante das possibilidades abertas por processos impredicados, procura o retorno de alguma forma de ordem segura capaz de colocar todos nos seus devidos lugares. Nesse contexto, a última coisa a fazer é acreditar que devemos “dialogar” com tal setor da população.


Faz parte de um iluminismo pueril a crença de que o outro não pensa como eu porque ele não compreendeu bem a cadeia de argumentos.


Logo, se eu explicar de forma pausada e lenta, você acabará concordando comigo. Bem, nada mais equivocado. O que nos diferencia é a adesão a formas de vida radicalmente diferentes. Quem quer um fascista não fez essa escolha porque compreendeu mal a cadeia de argumentos. Ele o escolheu porque adere a formas de vida e afetos típicos desse horizonte político. Não é argumentando que se modifica algo, mas desativando os afetos que sustentam tais escolhas.


De toda forma, há de se nomear claramente o caminho que parte significativa dos eleitores tomou. Essa radicalização não desaparecerá, mas é embalada pelo espírito do tempo e suas regressões. Na verdade, ela se aprofundará. Contra ela, só existe o combate sem trégua.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Comer, Ler, Pensar


Definitivamente, a gastronomia e a culinária estão na moda. Há muita procura por cursos de graduação nessa área, motivada, em parte, pelas dúzias de insuportáveis reality shows que, entre trocas de grosserias e lacrimejos, exibem a preparação de refeições. Deve-se mencionar também os programas do tipo "cozinha simpática" - com bate-papos sem sal e receitinhas saudáveis - mas tão desagradáveis de engolir quanto os que mostram chefs dando chilique. Sem falar no presunçoso fenômeno da "gourmetice" - livrai-me, Nossa Senhora do Caldo de Mocotó!

Apesar de detestar o entretenimento culinário, sou racional o suficiente para reconhecer que a humanidade não seria a mesma sem sua capacidade de cozinhar (e de incrementar tal habilidade ao longo de milênios). E embora a afetação e o exibicionismo dos foodies me irritem bastante, todos gostamos de saborear um bom prato, não?

Contudo, não se encontram, na obra dos filósofos, passagens significativas sobre a comida ou sobre o ato de comer. Por quê? Será um tema banal em demasia? Algo que pertenceria exclusivamente ao terreno da fisiologia e não ao do pensamento? Seja lá o que for, não há sequer alusões a esse assunto no trabalho de muitos pensadores. Não é, entretanto, o caso de Walter Benjamin.

Num breve texto chamado Ler romances ¹, Benjamin escreveu:

"Ora, sem dúvida existe um alimento cru da experiência - exatamente como existe um alimento cru do estômago - , ou seja: experiências no próprio corpo. Mas a arte do romance como a arte culinária só começa além do produto cru. E quantas substâncias nutritivas existem que, no estado cru, são indigestas! Sobre quantas vivências é aconselhável ler para tê-las, hein? Golpeiam de modo a fazer sucumbir aquele que as encontrasse in natura. Em suma, se há uma musa do romance - a décima - , ela traz os emblemas que pertencem à fada da cozinha. Eleva o mundo de seu estado cru para produzir seu algo comestível, para fazê-lo adquirir seu paladar. Ao comer, se for preciso, leia-se o jornal. Mas jamais um romance. São obrigações que se excluem".

Acho maravilhoso o modo como o autor relaciona o ato de ler uma obra literária a uma disposição biológica tão vital como comer. As experiências nutrem-nos de várias maneiras, mas a experiência que nos vem por meio de um romance - este, por sua vez, resultado do "cozimento" literário, decorrente do trabalho artístico do romancista - também atende nosso apetite de viver (distintamente, porém, das "experiências no próprio corpo"). Nesse mesmo texto, o filósofo alemão nos diz que os romances "existem para serem devorados. Lê-los é uma volúpia da incorporação. Não é empatia. O leitor não se coloca na posição do herói, mas se incorpora ao que sucede a este. Mas a clara descrição disso é a guarnição apetitosa, na qual vem à mesa o prato nutritivo".

Essa "volúpia da incorporação", essa gulodice, familiar a todo leitor de textos literários robustos, remete-me a outro escrito de Benjamin, Figos frescos, que faz parte de um conjunto de seis pequenas crônicas nas quais alimentos e bebidas triviais alcançam um outro patamar de significação, que não suporíamos de início.

"Jamais provou uma iguaria" - escreve ele em Figos frescos -, "jamais degustou uma iguaria quem sempre a comeu com moderação", embora frequentemente o prazer seja comprometido pela "imoderação do desejo", como, "por exemplo, quando alguém dá uma dentada na mortadela como se fosse pão, se chafurda no melão como numa almofada, lambe caviar de papel farfalhante e sobre uma cuia de queijo Edam se esquece de tudo o mais que existe na Terra para comer".

O autor nos conta que essa reflexão ocorreu-lhe pela primeira vez quando teve que tomar uma decisão difícil: enviar ou destruir uma carta. Caminhando por uma rua de Nápoles, avistou uma vendedora de figos. "Foi por falta do que fazer que me dirigi até ela; foi por desperdício que, em troca de alguns soldi, pedi meio quilo". Não havia como embalar as frutas. Ele então carrega-as nos bolsos, nas mãos, algumas enfiadas na boca.

"Agora não podia parar de comer, precisava tentar me defender, o mais rápido possível, contra a massa de frutas robustas que havia me atacado. Mas aquilo já não era um comer, mas um banhar-se, pois o aroma resinoso penetrava minhas coisas, se grudava à minhas mãos, emprenhava o ar, através do qual eu levava minha carga. E, então sobreveio a culminância do sabor, na qual, quando o fastio e a náusea - as últimas curvas - estão dominadas, o panorama se abre numa imprevista paisagem do palato: uma maré de avidez, sem sabor, sem limite, verdoenga, que nada conhece a não ser a onda viscosa e fibrosa da polpa da fruta aberta, a total transmutação de prazer em hábito, de hábito em vício".

Ao final, esse desastrado incidente acabou por facilitar-lhe a decisão com relação à carta.

Benjamin pertence àquela reduzida família de pensadores cuja produção filosófica/crítica tem um élan mais próprio da escrita literária do que da escrita analítica/técnica. Nessa família encontram-se também Montaigne, Rousseau, Schopenhauer, Nietzsche, Bertrand Russel... Todos excepcionais escritores, no mais requintado sentido da palavra. Seu trabalho de jornalista, com o qual garantia seu sustento, certamente deu a ele uma capacidade de concisão notável e uma encantadora leveza. Essas características são claramente percebidas em Café crème. Num bistrô de Paris, Benjamin prepara-se para tomar seu café, ao mesmo tempo em que pensa sobre temas profundos: a perda irrecuperável do tempo, a solidão e o isolamento experimentados nas grandes cidades.

"E tu mesmo estás sentado, talvez ao lado dele [um viajante qualquer, de passagem por Paris], à mesma mesa, no mesmo banco, e, contudo, te sentes distante e sozinho. Sacrificas tua sobriedade matinal para tomar alguma coisa. E o que não tomas com este café: toda a manhã, a manhã deste dia e, às vezes também, a manhã perdida da vida! Se, quando criança, tivesses sentado a esta mesa, quantos navios não teriam deslizado sobre o mar de gelo do tampo de mármore? Terias sabido como é o Mar de Mármara. Ao avistar um iceberg ou um veleiro, terias tomado um gole para o pai e um para o tio e um para o irmão, até que o creme boiando vagarosamente tivesse chegado à borda espessa de tua xícara, amplo promontório, onde os lábios repousam. Como desvaneceu o teu fastio! Como tudo se passa rápida e higienicamente: bebes, não embebes, não ensopas. Sonolento, estendes a mão para apanhar a madeleine na cesta de pão e, partindo-a, nem sequer notas como te entristece não poder reparti-la".

Assim é o belíssimo estilo de Benjamin. Em Falerno e bacalhau, descreve como se sentiu irmanado a um grupo de pequenos burgueses numa osteria de Roma (justamente ele, que se opunha a essa classe). Narra, em Borscht, como, dentro deste tradicional prato russo, "existe neve, flocos derretidos, avermelhados, comida feita de nuvens, da espécie do maná que, um dia. veio também lá de cima". E, diante de uma refeição pouco convidativa à primeira vista - "vapor de alho, feijões, gordura de carneiro, tomates, cebolas, azeite" -. oferecida por uma ex-prostituta sexagenária, o pensador, em Pranzo caprese, traz para seu texto a passagem de Ulisses pela ilha de Circe.

Na última das crônicas, Walter Benjamin reconta uma linda fábula. Vale a pena lê-la integralmente. Bom apetite!

OMELETE DE AMORAS

Esta velha história, conto-a àqueles que agora gostariam de experimentar figos ou Falerno, o borscht ou uma comida camponesa de Capri. Era uma vez um rei que chamava de seu todo o poder e todos os tesouros da Terra, mas, apesar disso, não se sentia feliz e se tornava melancólico de ano a ano. Então, um dia, mandou chamar seu cozinheiro particular e lhe disse: - Por muito tempo tens trabalhado para mim com fidelidade e tens servido à mesa os pratos mais esplêndidos, e tenho por ti afeição. Porém, desejo agora uma última prova de teu talento. Deves me fazer uma omelete de amoras tal qual saboreei há cinquenta anos, em minha mais tenra infância. Naquela época meu pai travava guerra contra seu perverso vizinho a oriente. Este acabou vencendo e tivemos de fugir. E fugimos, pois, noite e dia, meu pai e eu, até chegarmos a uma floresta escura. Nela vagamos e estávamos quase a morrer de fome e fadiga, quando, por fim, topamos com uma choupana. Aí morava uma vovozinha, que amigavelmente nos convidou a descansar, tendo ela própria, porém, ido se ocupar do fogão, e não muito tempo depois estava à nossa frente a omelete de amoras. Mal tinha levado à boca o primeiro bocado, senti-me maravilhosamente consolado, e uma nova esperança entrou em meu coração. Naqueles dias eu era muito criança e por muito tempo não tornei a pensar no benefício daquela comida deliciosa. Quando mais tarde mandei procurá-la por todo o reino, não se achou nem a velha nem qualquer pessoa que soubesse preparar a omelete de amoras. Se cumprires agora este meu último desejo, farei de ti meu genro e herdeiro de meu reino. Mas, se não me contentares, então deverás morrer. - Então o cozinheiro disse: - Majestade, podeis chamar logo o carrasco. Pois, na verdade, conheço o segredo da omelete de amoras e todos os ingredientes, desde o trivial agrião até o nobre tomilho. Sem dúvida, conheço o verso que se deve recitar ao bater os ovos e sei que o batedor feito de madeira de buxo deve ser sempre girado para a direita de modo que não nos tire, por fim, a recompensa de todo o esforço. Contudo, ó rei, terei de morrer. Pois, apesar disso, minha omelete não vos agradará ao paladar. Pois como haveria eu de temperá-la com tudo aquilo que, naquela época, nela desfrutastes; o perigo da batalha e a vigilância do perseguido, o calor do fogo e a doçura do descanso, o presente exótico e o futuro obscuro. - Assim falou o cozinheiro. O rei, porém, calou um momento e não muito tempo depois deve tê-lo destituído de seu serviço, rico e carregado de presentes.

Na próxima postagem presto uma homenagem a uma das maiores e melhores escritoras brasileiras: Lygia Bojunga.

¹ BENJAMIN, Walter. Imagens do pensamento. In:________. Obras escolhidas, vol. II. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 143-277 [Tradução de José Carlos Martins Barbosa]

BG de Hoje

Nunca considerei The Edge (cujo nome verdadeiro, a propósito, é David Howell Evans) um virtuose (olha quem tá falando; não sei tocar nem campainha...). Obviamente, contudo, as canções do U2 quase sempre carregam a marca inconfundível do seu jeito de tocar guitarra. E penso que Until the end of the world é aquela em que seu instrumento mais se destaca.