terça-feira, 27 de abril de 2021

Ler por ler


Há um quê de babaquice em dizer frequentemente a frase "Larguei as mídias sociais".

Acaba parecendo aquelas pessoas que deixaram de lado o álcool e ficam cortando a onda de quem ainda gosta de tomar uma birita.

Feita a ressalva... Larguei as mídias sociais - ou redes sociais, como queiram - há um tempinho, embora continue a encher a cara periodicamente (e não pretendo parar tão cedo).

Numa outra oportunidade talvez escreva sobre os motivos que me levaram a tomar essa decisão. 

Mencionei a circunstância porque, apesar dos vários dissabores decorrentes da condição de usuário de mídias sociais, tinha uma ou outra coisa legal ali. 

Um dia desses estava me lembrando de certos perfis dos quais era seguidor, sobretudo no Twitter. NOTA: Não é meio bobo e, de certo modo, também meio sinistro referir-se a si mesmo como seguidor de alguém ou dizer que determinado indivíduo tem seguidores? Sei lá..

Alguns desses perfis eram divertidos, me faziam pensar melhor ou transmitiam valiosos insights que não poderiam encontrar meio de expressão mais adequado do que os 140/280 caracteres permitidos: Existential Comics, Marcia Tiburi, Lola Aronovich, Trevor Noah, Xico Sá, Emicida, Aparna Nancherla, Ana Moser, Hemant Mehta, Sarah Silverman, entre outros. 

O perfil da escritora Clara Averbuck também estava entre os meus preferidos. Até então, entretanto, nunca havia lido nenhum de seus livros, apenas textos esparsos na web e suas participações no extinto site Lugar de Mulher. Isso até dias atrás, quando terminei Vida de gato (Editora Planeta, 2004) ¹, cuja personagem central (e narradora) é a jovem Camila ², que vive em São Paulo esquivando-se da senhoria a quem deve o aluguel, bebendo no bar predileto e morrendo de amor por Antônio (embora ela própria admita também que "ninguém mais morre de amor há pelo menos sessenta anos").

É também mais uma daquelas histórias a falar sobre as supostas agruras que rondam aqueles(as) que escolhem ser escritores(as).

Em determinada passagem, no final do capítulo 7, a narradora registra:

"O mundo é cheio de covardes e suas desculpas para terem fodido suas vidas, e eles tentam nos convencer de que foi necessário, que fizeram as escolhas certas em nome da comodidade e do cagaço de perder tudo. Depois, quando entopem-se de bens, quando envelhecem, quando olham para trás, se dão conta que perderam a vida. Arrependimento é o sentimento mais inútil. De nada adianta andar para frente olhando para trás, o melhor que pode acontecer é desabar em um buraco e morrer lá, choramingando que deveria ter olhado para frente e se arrepender mais e mais até morrer velho e enrugado como uma fruta seca".

Ao que parece, Camila não será um(a) desses(as) covardes, embora dois capítulos antes ela quase tenha entregado os pontos, ao fazer um balanço de sua situação:

"Talvez fosse a hora de arrumar um emprego, abandonar minha decisão terrivelmente nobre de não deixar nada me atrapalhar nem desviar minha atenção da escrita. Essa vida idiota não me deixava alternativa. Não tinha casa nem um amor. Não tinha diploma, carro ou um aparelho de som. Não tinha roupas de inverno nem pilhas no discman. Não tinha comida ou um corte de cabelo. Não tinha cheque, dinheiro nem cartão. Meu perfume tinha acabado, minhas meias estavam furadas, minhas gillettes e minha alma estavam gastas. Meu chuveiro estava queimado e se eu quisesse um banho quente, precisava aquecer a água em um balde com um aparelhinho que era ligado na tomada porque o gás também tinha acabado".

Uma das coisas que me chamavam atenção no perfil de Clara Averbuck no Twitter era a maneira como ela falava - sem rodeios - dos sufocos para ser remunerada por um trabalho feito. Pode até haver quem olhe para o ofício de escritor(a) como algo cheio de glamour, mas a realidade é que são raríssimos(as) os(as) que podem pagar seus boletos exclusivamente através de sua produção literária.

Entretanto, é num trecho do capítulo 3 que está o pretexto para esta minha postagem de hoje:

"E eu simplesmente vivo e escrevo. Não leio tudo, sabe. Só os meus queridos. Sou fiel aos meus queridos, ao meu Fante, meu Bukowski, meu Leminski. Não consigo ser uma promíscua na literatura. Talvez seja hora de procurar outros homens, fazer sexo por sexo, ler livros por ler, sem paixão, sem chorar junto, sem dormir abraçada com eles".

Dá pra dizer, com algum acerto, que ao citar os autores preferidos, é a escritora falando através da personagem. Em entrevistas que li, Averbuck costuma mencioná-los. Esses nomes também aparecem nos textos (pavorosos, diga-se de passagem) escritos por Mário Bortolotto e Marcelo Mirisola para a orelha e a contracapa da edição de Vida de gato lida na semana passada.

Não serei capaz de verificar aproximações entre a escrita desses autores e a de Clara Averbuck, pois jamais li qualquer coisa de Charles Bukowski ou de John Fante (a poesia de Paulo Leminski, por outro lado, não me é desconhecida). Além do mais, como disse acima, não convivo com a obra da escritora - Vida de gato é, até agora, o primeiro e único livro lido.

A frase "Não consigo ser uma promíscua na literatura" é muito boa. E é maravilhoso curtir apaixonadamente um texto ao qual somos devotados.

Os promíscuos na literatura, porém, são numerosos, acho eu.

A começar pelas pessoas que precisam ser "infiéis" por razões profissionais: professores de literatura, críticos, editores, (os bons) bibliotecários...

É oportuno lembrar que promíscuo também significa misturado, heterogêneo, indiscriminado. Vários interessados por literatura (como este blogueiro), a despeito de suas predileções, são bem pouco constantes em suas seleções de leitura. Leem por ler, o que talvez não chegue a ser um defeito.

Por que ler por ler?

Curiosidade? Frivolidade? Falta de critério? Um hobby meio pernóstico?

Eu preferiria dizer que é por obstinação.

Como já escrevi outras vezes aqui no blog, não era um entusiasta da literatura desde pequenininho. Minha trajetória de leitor foi muito irregular, com momentos de grande "fervor livresco" e vários outros de desinteresse e displicência. Para tentar corrigir esses vícios de formação, decidi, no início da vida adulta ler só títulos e autores considerados canônicos - o que me transformou num tremendo ignorante em relação às criações contemporâneas.

Vivo o dilema do cobertor curto: se tento agasalhar os pés - lendo principalmente clássicos e/ou obras célebres -, a cabeça fica de fora. Se cubro a cabeça - esforçando-me para me acercar das narrativas mais próximas no tempo -, deixo os pés desprotegidos.

Por causa do desnivelamento em minha formação de leitor, mencionada acima, frequentemente me ressinto do tanto que não sei em relação a importantes textos publicados há dezenas, centenas de anos. Por isso, fiz a opção de priorizar o passado, décadas atrás. Mas não posso me considerar um partidário da literatura se não tenho ao menos a noção mínima do que se tem publicado nos últimos 30-20-10 anos. Qualquer dias desses, explico isso melhor numa postagem específica.

Obstinado, então, vou conjugando o velho e o novo. 

Lendo por ler.

Mas não desdenhosamente.

__________

¹ Atualmente, o título faz parte do catálogo da Editora 7Letras

² Soube posteriormente que essa mesma personagem-narradora integra outros livros de Averbuck.

BG de Hoje

The Lady Don't Mind já esteve nesta seção há alguns anos. Tive que repeti-la. Eu adoro essa canção! O TALKING HEADS, mesmo tendo sido um grupo razoavelmente bem-sucedido, sempre foi antipatizado porque achavam-no "metido a inteligente" (pessoas geralmente têm antipatia dos inteligentes). Acho tudo legal demais: a letra meio maluca, a bateria clara e discreta de Chris Frantz... Mas gosto sobretudo das linhas de baixo tocadas com perfeição pela Tina Weymouth. Que faixa sensacional!