segunda-feira, 28 de julho de 2014

O maior feito do basquete feminino brasileiro completou duas décadas



No último mês de junho completaram-se 20 anos da conquista, pelo Brasil, do título mundial de basquete feminino, em campeonato disputado na Austrália.

Foi surpreendente. Apesar da conquista da medalha de ouro no Panamericano de Cuba em 1991 e da (até então) inédita participação num torneio olímpico (em Barcelona/92, ficando, entretanto, na penúltima colocação entre oito seleções disputantes*), a equipe brasileira nem de longe era vista como uma das favoritas naquele momento.

Com relação à experiência, a equipe poderia ser dividida em três grupos: 1) novatas: Cíntia Tuiú, Alessandra, Leila Sobral (irmã da conhecida Marta, cortada da lista final de convocadas) e Dalila (que já tinha 23 anos, mas poucos jogos acumulados pela seleção**); 2) "intermediárias": Janeth, Helen Luz, Ruth, Adriana, Simone e Roseli; e 3) "veteranas": as duas maiores referências do basquete feminino brasileiro até hoje - Hortência e Paula (vale dizer que Paula foi convocada pela primeira vez para a seleção adulta aos 14 anos!; Hortência, aos 16). O jogo da seleção era centrado no trio Paula-Hortência-Janeth, mas Alessandra (com 20 anos na época) e Leila tiveram atuações brilhantes nalgumas partidas (dois anos depois, nas Olimpíadas de Atlanta, Alessandra seria uma das principais jogadoras do time e viraria estrela do esporte nos anos ulteriores). O técnico era Miguel Ângelo da Luz.

A imprensa brasileira, de um modo geral, deu pouquíssima atenção ao torneio antes da conquista da medalha de ouro, ocupada que estava em cobrir a  preparação da seleção brasileira de futebol para a Copa do Mundo dos EUA (que se iniciaria daí a poucos dias). Típico da asfixiante monocultura esportiva reinante no Brasil... O único canal a transmitir a final contra a China (o acesso à TV por assinatura era então bem restrito) foi a Bandeirantes (e, nesse ponto, não posso deixar de reconhecer o mérito de Luciano do Valle). Acompanhei aquela peleja - 96 X 87 para o Brasil - durante a madrugada por causa da diferença de fuso horário. Detalhe: a seleção brasileira havia perdido para  a equipe chinesa em fase anterior do campeonato. Recentemente, graças à internet, pude assistir os outros jogos daquele Mundial histórico. Inclusive a sensacional partida da semifinal contra o timaço das norte-americanas.

Aquele título também representou a consagração definitiva de Paula, a atleta que mais admirei em toda a minha vida (e sobre a qual ainda escreverei  um texto especial aqui no blog). Infelizmente, contudo, a jogadora não integrou a seleção com as melhores daquele campeonato, escolhida pelos jornalistas que acompanharam o torneio. Hortência (cestinha na final, com 27 pontos, além de ser a maior pontuadora do torneio) e Janeth fizeram parte do grupo indicado, mas a armadora foi Teresa Edwards (com merecimento, devo dizer). Completavam a equipe ideal a também norte-americana Katrina McClain e a gigantesca pivô chinesa Zheng Haixia (eleita ainda a melhor jogadora do campeonato).

Nas próximas postagens, escreverei sobre Carolina Maria de Jesus e seu livro impressionante, Quarto de despejo.

* Nas Olimpíadas seguintes, em que o Brasil ficou com a medalha de prata, o número de participantes subiu para 12.

** Essa atleta, quase desconhecida do público na época, veio do esporte universitário norte-americano e depois do campeonato mundial "desapareceu".

BG de Hoje

Dia desses fiquei sabendo que, na época de sua residência em Brasília, ZÉLIA DUNCAN aventurou-se em quadras de basquete. E, já cantora e compositora famosa, relatou o caso a Paula e as duas ficaram até amigas. Abaixo, participação da artista no saudoso programa Bem Brasil (TV Cultura), ao lado de Rappin Hood, DJ Marco e Johnny MC (que também estão na gravação da música no álbum Sortimento), interpretando Desconforto, composição dela e de Rita Lee.


quinta-feira, 24 de julho de 2014

Arrepender-se por que, Lady Macbeth? (II)


Após a consumação do assassinato do Rei Duncan (cena 2, segundo ato), Lady Macbeth diz: "Minhas mãos estão da cor das tuas, mas sinto vergonha de estar com um coração tão branco..." *. Penso haver duas interpretações cabíveis numa leitura imediata: 1) mãos vermelhas pelo sangue da vítima/coração imaculado/sem arrependimento; e 2) vergonha da ausência de remorso/possibilidade de estar arrependida. Vamos agora para o terceiro ato (cena 2). Macbeth e a esposa (agora na condição de rainha) temem que Banquo, de alguma forma, interrompa suas pretensões. Ela fala a si mesma: "Nada se ganha, ao contrário, tudo se perde, quando nosso desejo se realiza sem satisfazer-nos. Mais vale ser a vítima do que viver com o crime numa alegria cheia de inquietudes!". É razoável considerar o excerto anterior como outro exemplo de arrependimento. De todo modo, essas são as únicas passagens da peça a indicar tal estado de espírito por parte da personagem antes de seu delírio sonambúlico, na presença do médico e da dama de companhia, relatado no último ato (cena 1). Torna-se, para o leitor (pelo menos no meu caso), pouco aceitável que alguém com tamanha tenacidade, registrada em diversas outras passagens do texto, possa, de um momento para outro, morrer atormentada por uma "crise de consciência".

Na postagem anterior, eu disse que uma argumentação de cunho moral (do tipo "ora, é natural que ela se arrependa: afinal, cometeu um crime hediondo") não vem ao caso aqui. É possível, certamente, conjecturar que Shakespeare, escrevendo para um público amplo e heterogêneo, recorreria a certas soluções convencionais dentro das narrativas, por mais genial que possa ter sido. Assim sendo (e indo ao encontro das expectativas do público) o crime precisaria ser castigado e, se possível, com algum sofrimento infligido ao vilão. Mas - e aí vem minha especulação - Lady Macbeth não seria ainda mais sensacional do que já é se permanecesse até o final tão obstinada e segura de si quanto se mostrara ao longo de quase toda a peça? Afinal, sua obstinação e autocontrole são indubitavelmente notáveis. E tudo não passa de um construção ficcional mesmo...

Sendo assim, por que se arrepender, Lady Macbeth?

* SHAKESPEARE, William. Macbeth. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [Tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes; com notas e dados históricos de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros]

BG de Hoje

Sou pessimista quase em tempo integral - disse quase. Nas pouquíssimas vezes em que o otimismo aparece, lembro de algumas canções bem específicas. Constant craving, de K. D. LANG é uma desssas.

"Even through the darkest phase
Be it thick or thin
Always someone marches brave
Here beneath my skin"

terça-feira, 15 de julho de 2014

Arrepender-se por que, Lady Macbeth? (I)


Ao escrever na postagem anterior sobre O som e a fúria, de Faulkner, foi inevitável não lembrar de Macbeth, a tragédia shakepeareana que inspirou o título do livro do escritor norte-americano. Como se sabe, esse título está contido na antepenúltima cena da peça, no quinto e derradeiro ato, quando o protagonista fica sabendo da morte da esposa (e na iminência de uma batalha que resultará em derrota). Diz ele (utilizo a tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes*):

"A vida nada mais é do que uma sombra que passa, um pobre histrião que se pavoneia e se agita uma hora em cena e, depois, nada mais se ouve dele. É uma história contada por um idiota, cheia de fúria e tumulto [' full of sound and fury ', no original], nada significando". [grifos meus]

Este texto, porém, não tratará do protagonista e sim de outra personagem: Lady Macbeth.

Rememoremos o enredo. Macbeth e Banquo retornam da guerra e passam por uma charneca (palavrinha bacana!), encontrando três feiticeiras que vaticinam o futuro reinado do primeiro; para o segundo, contudo, predizem que seus descendentes alcançarão a coroa, embora ele próprio não. Banquo resiste à tentação de antecipar a profecia; o outro general, por sua vez, intenciona matar o atual ocupante do trono, ainda mais com a ocasião favorável proporcionada pela visita do Rei Duncan ao castelo de Macbeth. Ao saber da pretensão do marido, sua esposa torna-se, de imediato, incentivadora e colaboradora decidida. Observemos, por exemplo, o que ela diz ao esposo quando este se mostra hesitante (cena VII, primeiro ato):

"Estava, então, ébria a esperança com que te ataviavas? Será que dormiu depois e acorda agora para contemplar, pálida e verde, o que soube contemplar tão arrogantemente? Desde este momento acreditarei tão frágil assim teu amor? Tens medo de ser o mesmo em ânimo e em obras que em desejos? Queres possuir o que estimas como ornamento da vida e viver como um covarde em tua própria estima, deixando que um ' não me atrevo ' vá atrás de um ' eu gostaria ', como o pobre gato do adágio?"

O provérbio mencionado (em latim) é Catus amat pisces, sed non vult tingere plantas, o que significaria O gato queria comer o peixe, mas não queria molhar os pés **. Ou seja, alguém precisará sujar as mãos para que a ambicionada coroa seja obtida (e a necessidade posterior de limpar as mãos forma uma inesquecível e decisiva imagem nessa peça).

Mas o ponto a discutir é outro. Durante a maior parte do texto, Lady Macbeth é intrepidamente resoluta. Mais um exemplo: "Já amamentei e conheço como é agradável amar o terno ser que em mim mama. Pois bem, no momento em que estivesse sorrindo para meu rosto, teria eu arrancado o bico de meu peito de suas gengivas sem dentes e ter-lhe-ia feito saltar o crânio, se o tivesse jurado como assim juraste [a fala dirige-se a seu marido]..." Dizia eu, contudo, que o ponto é outro: por que, "sem mais nem menos", uma personagem tão audaciosa parece arrepender-se (e até perde o juízo) após a consecução do que buscava? A resposta mais óbvia, claro, levará a uma argumentação de cunho moral. Só que desejo algo diferente disso.

Concluo na próxima postagem.

* SHAKESPEARE, William. Macbeth. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [Tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes, com notas e dados históricos de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros]

** De acordo com nota de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros

BG de Hoje

Meu interesse maior em música (rock, principalmente) fica concentrado no período que vai da metade da década de 1960 ao auge da cena grunge (que não foi bem uma "cena") no início dos anos 1990. Por isso não conheço muita coisa surgida depois dessa época (e até os dias atuais). Exceção aos White Stripes, System of a Down e QUEENS OF STONE AGE (no BG de Hoje, com God Is On The Radio, do terceiro álbum da banda, que conta com as participações de Dave Grohl e Mark Lanegan).

sexta-feira, 11 de julho de 2014

O som e a fúria: desafio ao leitor


Percorri 14 páginas. Parei, desconfortável. Insisti mais tarde, antes de dormir. Outras vinte páginas adiante, a mesma desoladora sensação de derrota. "Não vou ler essa chateação", disse pra mim mesmo. Entretanto, duas semanas depois recomecei, teimosamente. A fluidez de leitura não seu deu, mas pelo menos o texto - dois terços agora avançados -  já não me parecia tão desnorteante.

Foi essa a experiência inicial pela qual passei ao decidir ler O som e a fúria, de William Faulkner* (escritor não muito frequentado por este blog, mas cujo livro, Santuário, já foi discutido aqui).

Imergir no decadente e doentio mundo da família Compson foi uma empreitada carregada de obstáculos; trata-se de um romance que estabelece um pacto de leitura desafiador àquele que o lê, pois caso este intente chegar às diversas camadas de significação da obra, precisa dedicar atenção total a ela. Uma das dificuldades (a mais evidente, talvez, ao primeiro contato) está na polifonia narrativa e na técnica do stream of consciouness (ou fluxo de consciência) empregada pelo autor norte-americano. A propósito: trabalho de vanguarda, O som e a fúria, publicado em 1929, provavelmente não foi influenciado pelo Ulisses, de James Joyce (surgido antes na mesma década)**. Mas não é desarrazoado ver um parentesco entre ambos, como obras representativas do início do modernismo literário.

São quatro diferentes focos narrativos, correspondentes às quatro seções em que se divide o livro.

Na primeira dessas partes somos jogados dentro do confuso psiquismo de Benjamin, um deficiente mental incapaz de falar, descrito muitas páginas adiante como

[...] um homenzarrão que parecia feito de alguma substância cujas partículas não aderissem umas às outras nem à estrutura que a sustentava. Sua pele parecia morta e lisa; hidrópico, caminhava com um passo trôpego, como se fosse um urso treinado".

A voz que se "ouve" na segunda seção pertence ao atormentado Quentin. Peço ao(à) eventual leitor(a) a consideração do excerto abaixo. Antes, porém, uma breve contextualização. Quentin entrara numa relojoaria, dando a entender que queria consertar um objeto quebrado por ele mesmo. Após conversar com o relojoeiro, ele pensa:

"Saí, fechando a porta, ouvindo os tique-taques todos. Olhei para trás, para a vitrine. Ele [o dono da loja] me observava detrás da divisória. Havia uns doze relógios na vitrine, marcando doze horas diferentes, cada um deles com a mesma convicção determinada e contraditória que o meu manifestava, mesmo sem ponteiros. Um contradizendo o outro. Eu ouvia o meu, ainda a tiquetaquear no meu bolso, muito embora ninguém o visse, muito embora mesmo se o vissem ele não pudesse dizer nada a ninguém".

Um dos pilares da ficção abalados pela escrita de Faulkner é justamente a noção de tempo. As repetições e o aspecto de fragmentação geral acentuam a investida do escritor.

Jason Compson domina a terceira parte com sua perversidade, rancor e ganância obsedantes, enquanto Dilsey, a criada da família (e, talvez, a única personagem imune à morbidez dominante na narrativa), é a figura central da última parte do livro.

Vai aqui uma sugestão a quem se dispuser a ler O som e a fúria: comece pelas duas últimas partes e só depois vá para as duas primeiras (foi o que fiz na minha segunda leitura).

A análise de uma obra assim permite muitas abordagens: por exemplo, desvelar o posicionamento às vezes ambíguo, às vezes perceptivelmente racista de algumas vozes da narrativa em relação aos personagens negros ou visualizar o retrato histórico/sociológico dos sulistas nos Estados Unidos no início do século XX. Mas, como estão além da competência atual do blogueiro, deixo para outra oportunidade.

Na próxima postagem, escreverei um pouco sobre Macbeth, a peça de Shakespeare da qual proveio o título do livro de Faulkner.
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Quero aproveitar para reiterar um posicionamento já manifestado noutros blogs mantidos anteriormente (e, quem sabe, algum(a) raro(a) - e valioso(a) - leitor(a) estará lembrado(a) dele?). Não se faz crítica literária aqui, apenas comunicam-se impressões de leitura. A crítica literária, atividade rigorosa e exigente, escapa às pretensões do Besta Quadrada. Não obstante, tenho como meta pessoal tornar-me, progressivamente e dentro de minhas capacidades, um leitor tão rigoroso e exigente quanto me for possível - e isso não é incompatível, penso, com os objetivos (bem mais modestos) deste blog. Por isso seria uma frivolidade deixar de ler determinada obra só porque ela me causou desprazer em algum momento ou foi (ainda que parcialmente) incompreendida (como é o caso de O som e a fúria). Nesse aspecto, lembro o que escreveu Umberto Eco*** a respeito da autêntica leitura crítica. Para o pensador italiano, esta não deve ser "um passeio no campo, no qual [colhem-se] quase ao acaso, aqui e ali, os ranúnculos ou pilriteiros da poesia aninhada entre o esterco dos rípios estruturais", mas sim um enfrentamento por inteiro do texto, munido de um "forte armamento teórico e uma frequentação em todos o níveis [com que se apresenta o texto]".


* FAULKNER, William. O som e a fúria. São Paulo: Cosac Naify, 2004 [Tradução de Paulo Henriques Britto]

** Devo confessar que, entre os livros dispostos nas estantes da minha residência há bastante tempo (e para os quais ainda não consegui reunir a disposição necessária), está o acabrunhante Ulisses.

*** ECO, Umberto. Sobre o estilo. In: __________. Sobre a literatura. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 151-166 [Tradução de Eliana Aguiar]

BG de Hoje

Grupos de música pop hiperproduzidos costumam não ser mais lembrados após toda a badalação que cercava seu surgimento. Foi assim com o GARBAGE. A partir do segundo disco (Version 2.0, 1998), deixou de soar interessante (bom, pelo menos a meus ouvidos). Mas o álbum epônimo, lançado em 1995, me agradou muito, sobretudo a canção A stroke of luck e seu clima lounge.