segunda-feira, 30 de março de 2015

Apontamentos sobre a difícil arte da leitura e outras divagações (III)


Como está a cabeça dos jovens de hoje?

O filósofo francês Michel Serres, num pequeno livro (insólita e ridiculamente) intitulado Polegarzinha*, afirma que os jovens, além de outras características, são atualmente "formatados pela mídia propagada por adultos que meticulosamente destruíram a faculdade de atenção deles, reduzindo a duração das imagens a 7 segundos e o tempo de resposta às perguntas a 15 - são números oficiais". Esses sujeitos desenvolvem um outro tipo de relação com o universo livresco e, por conseguinte, instruem-se de modo bastante diverso daquele em que se educaram seus pais, por exemplo. Escreve o ensaísta: 

"Nós, adultos, transformamos nossa sociedade do espetáculo em sociedade pedagógica, cuja concorrência esmagadora, orgulhosamente inculta, ofusca a escola e a universidade. Pelo tempo de exposição de que dispõe, pelo poder de sedução e pela importância que tem, a mídia há muito assumiu a função de ensino
Criticados, menosprezados, vilipendiados, já que pobres e discretos [...]**, nossos professores se tornaram os menos ouvidos dentro desse sistema instituidor dominante, rico e ruidoso".

Por outro lado (e dessa vez mais otimista***), o filósofo francês acrescenta que

"As ciências cognitivas mostram que o uso da internet, a leitura ou a escrita de mensagens com o polegar, a consulta à Wikipédia ou ao Facebook não ativam os mesmos neurônios nem as mesmas zonas corticais que o uso do livro, do quadro-negro ou do caderno. Essas crianças podem manipular várias informações ao mesmo tempo. Não conhecem, não integralizam nem sintetizam da mesma forma que nós, seus antepassados.
Não têm mais a mesma cabeça".

Falar da influência dos mass media na educação já não é novidade desde McLuhan, mas nem por isso trata-se de uma discussão caduca. Os meios audiovisuais para a comunicação de massa e a publicidade podem ter se tornado dominantes em matéria de ensino há bastante tempo, como ressalta Michel Serres, mas a escola, institucionalmente falando, permanece até hoje presa à mesma organização e aos mesmos rituais existentes desde antes dessa dominação. E tudo se torna ainda mais complexo com o advento do ciberespaço e dos dispositivos tecnológicos contemporâneos (smartphones, tablets, notebooks, consoles para games).

Para ser justo com o autor, o pequeno livro de Serres vai ganhando viés francamente otimista no avançar das páginas (v. terceira nota de rodapé ao fim desta postagem). Este blogueiro, entretanto, é cronicamente um pessimista.

Se concordarmos com o filósofo francês que o indivíduo hoje tem uma outra cabeça (e isso, penso eu, não se aplica apenas ao jovem), é pouco provável, porém, que esse mesmo sujeito esteja disposto a enveredar-se por uma difícil arte chamada leitura (com sua "antiquada" maneira de prover conhecimento) . Importante: não me refiro aqui à leitura funcional, garantida àqueles adequadamente alfabetizados e prática indispensável em nosso atual estágio civilizatório. Tenho em mente um tipo de leitura que chamaria, na falta de melhor nome, de leitura imersiva. Esse tipo de leitura roga ao sujeito sua concentração, sua curiosidade, sua paciência, sua perspicácia, às vezes sua rendição (e, às vezes, sua resistência), seu ceticismo, seu espanto, sua incerteza e fragilidade. Não raro, a leitura imersiva exige do leitor tudo isso ao mesmo tempo. Mais do que pura técnica, a arte da leitura imersiva presume um estado de espírito bem pouco comum na maioria dos indivíduos habilitados a ler nos dias atuais,

Por isso, para muitos, essa leitura - considerada difícil - não será sequer tentada. Tal situação deixa alguns educadores hesitantes (como este blogueiro) e os coloca numa posição bem incômoda.

Na próxima semana escreverei sobre o romance Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.
__________
* SERRES, Michel. Polegarzinha. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013 [ Tradução de Jorge Bastos]

** No trecho suprimido da citação, Serres fala especificamente da situação dos professores universitários franceses, mas, mutatis mutandis, pode-se aplicar a observação ao caso brasileiro.

*** O ensaísta acredita que a emergência dessa nova mentalidade juvenil e o atual momento histórico podem ocasionar mudanças positivas na sociedade e nas suas instituições. E procura demonstrar isso no decorrer do livro.

BG de Hoje

Não preciso dizer nada. Uma das mais preciosas jóias da música pop em todos os tempos: Time of the season (THE ZOMBIES)

segunda-feira, 23 de março de 2015

Apontamentos sobre a difícil arte da leitura e outras divagações (II)


Terminei a postagem anterior perguntando se os leitores, hoje tão ansiosos pela facilitação das coisas e dos processos (inclusive em relação aos atos de leitura) poderiam, de alguma forma, ser afetados por uma literatura que vá além do puro entretenimento (e quem sabe, por isso, uma literatura mais "difícil"). NOTA: O verbo afetar vem sendo utilizado aqui num sentido muito específico, entre suas várias acepções. Afetar, nesse contexto, significa "impressionar afetivamente; comover; sensibilizar"*.

Antes de prosseguir, gostaria de fazer algumas observações sobre o livro A mocinha do Mercado Central**, de Stella Maris Rezende. Anteriormente, eu havia mencionado essa autora por conta de uma entrevista na qual ela defendia uma arte literária que buscasse ser mais parecida com a "condição humana: contraditória, angustiante, ambígua, inexplicável, complexa e difícil". Por falar em "difícil", é esse o adjetivo ocasionalmente empregado para se referir aos textos da escritora mineira. No caso de A mocinha do Mercado Central, há ainda a abordagem de temas pouco usuais (estupro, suicídio, solidão), sem, contudo, abrir mão de sua capacidade encantatória, fugindo de armadilhas comuns aos estereótipos presentes na literatura para jovens.

A narração frequentemente se desloca entre os sonhos, lembranças e a imaginação solta da protagonista Selma Gilda Nídia Míriam Simone Teresa Zoraida ou, simplesmente, Maria Campos. Desprevenido, se apenas adestrado por histórias em formato linear e convencional, um possível jovem leitor (estou somente conjecturando) talvez se queixe: "Que livro difícil!". É possível também que a suposta dificuldade não seja causada pelas escolhas lexicais da autora, nem pela sua sintaxe (nesses quesitos, o texto de Stella Maris é saudavelmente simples). Suponho que a pecha de "difícil" tenha mais a ver com as experiências, exigências e expectativas - menos arrojadas e sofisticadas atualmente - do público leitor em geral.

Há um curioso trecho em A mocinha do Mercado Central no qual a protagonista vai a uma feira de livros. Na sua cabeça, escuta a voz da tia, leitora inveterada, sugerindo-lhe que ao menos dê uma folheada num dos exemplares expostos. Em pensamento a jovenzinha responde:

"Ô tia, não adianta, eu não nasci pra gostar de livros. Gosto de cinema e de viajar, gosto de imaginar, dessas coisas eu gosto, mas não tenho paciência pra pegar um livro e ficar ali quieta, lendo, feito pamonha". A voz narrativa acrescenta em seguida: "Andou mais um pouco. Viu rapazes e moças da idade dela com os olhos grudados nos livros sentados em bancos aqui e ali. Não sentiu inveja. Ela possuía suas viagens, suas ' imaginagens ', seus filmes".

Vale dizer que a personagem desenvolverá perspectiva diferente com relação à leitura noutro momento da história, ao se maravilhar com a obra de Fernando Pessoa. Mas, na passagem acima citada, Stella Maris Rezende parece nos lembrar que, embora o ato de ler (sobretudo ficção e poesia) seja do maior interesse para alguns indivíduos, muitos outros mais vão se inclinar para atividades diversas, sem que se tornem com isso sujeitos menos capazes de elaborar suas "imaginagens". Os militantes da leitura (este blogueiro inclusive) precisam aceitar que c'est la vie.

Voltando, entretanto, à questão inicial dessa postagem - leitores ansiosos pela facilitação poderiam ser afetados por uma literatura mais difícil, além do mero entretenimento? - diria que tal possibilidade depende de um outro tipo de disposição intelectual e de uma nova abertura estética por parte desses leitores. Algo que considero bastante improvável, porém.

Termino essa série de postagens nas próxima semana.

* Tal como se pode encontrar na acepção n. 5 do verbete AFETAR no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, ed. 2004. p. 101.

** REZENDE, Stella Maris. A mocinha do Mercado Central. São Paulo: Globo, 2011 [Ilustrações de Laurent Cardon]

BG de Hoje

Dia desses estava num dos meus antros preferidos - o Bar do Dinei - quando, do toca-discos (sim, lá tem um toca-discos) salta RAUL SEIXAS. Zeca Baleiro, numa canção bem humorada, notou que certos fâs do artista baiano manifestam-se e comportam-se de um modo tal que "parece uma seita". E, infelizmente, por causa desses fanáticos (conheço alguns bem chatos), fiquei um certo tempo sem ouvir o bom Raulzito. E nesse dia, lá no Boteco do Dinei, enchendo a cara, foi prazeroso ouvir o Há 10 mil anos atrás, disco em que eu destacaria Meu amigo Pedro, sensacional letra de Paulo Coelho, sobre a "eterna batalha" entre a caretice e a porra-loucura.

terça-feira, 17 de março de 2015

Apontamentos sobre a difícil arte da leitura e outras divagações (I)

O Besta Quadrada anda pisando na bola. Longos períodos de inatividade se somam a promessas não cumpridas. Este blogueiro não havia dito anteriormente que o tema a ser tratado seria o suicídio (e a primeira das postagens relativas ao assunto já não deveria ter saído há quase um mês)? Serei honesto: estou intoxicado pela mais abjeta preguiça. Além do mais, os textos que estava escrevendo sobre o tema indicado ficaram longos e chatos e preferi guardá-los por um tempo, até que possa tentar melhorá-los. Ao(à) eventual leitor(a) - caso algum(a) esteja por aí - só posso apresentar essa justificativa descarada, infelizmente. Mas prossigamos, agora falando de outra coisa bem diferente.

. . . . . . . 

Dias atrás, li uma entrevista, publicada em dezembro último na revista Língua Portuguesa*, com a escritora Stella Maris Rezende (disponível aqui). A autora, cuja obra destina-se ao público juvenil, costuma ter seu texto classificado como "difícil". Ao ser questionada a esse respeito, ela responde:

[..] Em certos momentos da vida, qualquer leitor pode querer anestesiar-se, ler para entreter-se e esquecer os problemas do mundo. Mas os problemas estão lá, no coração e na mente, o tempo todo. Por mais que o leitor fuja da realidade trágica, por meio de estereótipos e superficialidades, em sua intimidade, sente falta de uma arte mais parecida com sua condição humana: contraditória, angustiante, ambígua, inexplicável, complexa e difícil".

E acrescenta mais adiante, noutra resposta:

[...] Há autores que escrevem com a intenção clara de atender às expectativas do leitor, atraem centenas de jovens às sessões de autógrafo e isso é admirável, além de provar que o jovem gosta de ler! Respeito esses autores, mas imagino que seus leitores um dia vão sentir falta de algo mais elaborado e rico de significados. Daí a importância dos professores que sejam grandes leitores de literatura. Podem revelar aos jovens que, paralelamente a essa literatura de entretenimento, há a arte literária, que fala de alegrias e dramas com diferentes pontos de vista, sem didatismos e concessões. Uma literatura mais parecida com a condição humana: infinitamente complexa e difícil, mas encantadora".

Acredito que atravessamos uma época de anseio (quase maníaco, nalguns casos) pela facilitação das coisas, dos processos. Desejável e necessária, sem dúvida, em determinados setores (comunicação e acesso à informação, transporte de pessoas e transporte de carga, por exemplo), essa preocupação em tornar tudo mais fácil é questionável (ou não aplicável) quando direcionada para outras áreas, como a pesquisa científica básica experimental. Ou a reflexão filosófica. Ou a arte (por exemplo, a arte literária). Esses empreendimentos, não obstante suas especificidades, desejam atingir justamente a complexidade subjacente às coisas do mundo. Tais empreendimentos não são melhores nem piores do que as outras ações humanas. Somente têm perspectivas distintas (não facilitadoras) sobre a existência.

Qual a relação da "difícil arte" de ler com o que foi dito até agora?

Trabalhando há quase 20 anos na tentativa de formar leitores e, extramuros da academia, estudando a leitura (sobretudo no contexto escolar) há pelo menos uma década, confesso que me encontro hoje um tanto perdido. Há incontáveis textos, nos mais variados suportes, circulando na sociedade e há milhões de leitores, cada qual carregando sua singularidade. Mas a maioria destes, penso eu, estão tomados pelo anseio de facilitação acima mencionado.

A Literatura que me interessa (e cuja leitura busco promover) - Literatura essa que intenciona emular a própria condição humana, "infinitamente complexa e difícil, mas encantadora", nas palavras de Stella Maris Rezende - conseguiria afetar de algum modo esses leitores ansiosos pela facilidade?

Continuo na próxima postagem.

* Fada das palavras. Revista Língua Portuguesa, São Paulo, ano 9, n. 110, dez. 2014, p. 10-13 [Entrevista concedida a Amilton Pinheiro. A revista Língua Portuguesa é publicada pela Editora Segmento]

BG de Hoje

Tô me sentindo meio puto com a vida. Um canção pra tentar acalmar: BADFINGER, Day after day.