segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Pausa para falar de Educação

Interrompo a série sobre poesia, mas voltarei ao tema na próxima postagem.

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Em novembro do ano passado, a secretária de Educação Básica do MEC, Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva respondeu algumas perguntas feitas por Luiz Costa Pereira Junior, editor da (ótima) revista Língua Portuguesa (Editora Segmento)*.

Antes de discutir o conteúdo da entrevista, considero apropriado falar sobre a trajetória da entrevistada.

Maria do Pilar Lacerda foi também secretária de Educação em Belo Horizonte, durante a segunda administração (2005-2009) de Fernando Pimentel - hoje, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Longe de ser unanimidade entre os trabalhadores da área, aqui na cidade, foi francamente hostilizada pela diretoria do sindicato ao qual sou filiado. Apesar disso, é preciso reconhecer que Maria do Pilar não é uma tecnocrata obcecada por números e cumpridora de regulamentos "para inglês ver", nem uma acadêmica deslumbrada, imersa no "mundinho" universitário e distante das agruras da realidade escolar (pessoas que geralmente ocupam esses cargos nos governos, à esquerda ou à direita do espectro político-partidário). Ao contrário, foi professora de História na Rede Pública local por anos; posteriormente eleita, pela comunidade, diretora do segundo colégio mais antigo mantido pelo município. É, portanto, alguém que vivenciou o dia-a-dia da educação básica, experiência nada desprezível. Talvez, por isso, tenha continuado no MEC, uma vez mantido o ministro Fernando Haddad, após a eleição de Dilma Rousseff. Pode-se concordar ou não com ela, mas trata-se de alguém com credenciais para falar sobre Educação.

Ao ser perguntada sobre a queda de qualidade, a partir do aumento da oferta de vagas verificado nas últimas décadas, a secretária, acertadamente, observa:

"Todo mundo estudava, na época [em que ela própria era estudante primária], em escola pública. Mas quanto era esse "todo mundo"? Uns 10% da população. O Brasil não estava acostumado a fazer tudo para todos, com qualidade".

E acrescenta:

"Para certa mentalidade [elitista], é  incômodo o conceito de algo ser feito para todos. Mas se a escola era boa, e não para todo mundo, então não era pública. Era gratuita, não pública".

Pilar reconhece os desafios colocados para o governo: "Decididamente, é difícil. Temos de dar conta da agenda dos séculos 18 ao 20 junto com a do 21 [...]".

Mas é quando discute propriamente temas ligados ao ensino da Língua Portuguesa e ao trabalho com a leitura que a entrevista  ganha importância, sobretudo no que se relaciona às desagradáveis situações observadas na escola em que atualmente trabalho (falo disso mais adiante).

O entrevistador pergunta: "Como reverter os baixos índices de compreensão e produção de texto?". A secretária responde:

" É difícil trabalhar em aula com interpretação e redação, para uma geração cujos pais não leem ou leem pouco ou mal. A leitura é importante para essas famílias, mas pais e mães não conseguem traduzir essa importância, nem poderiam. A escola, por sua vez, se ressente de receber a todos, pois idealizou um aluno que não existe mais. Deve ensinar a ler, interpretar, refletir e redigir uma população que não é mais a de seus sonhos. Não é a família de anúncio de margarina ou dos Flinstones, com pai, mãe, menino, menina, empregada e cachorro. Esse desenho não existe nem mais na classe média, mas a escola formatou o modelo de menino com quartinho para estudar, mesinha, livro na prateleira e mãe com tempo para fazer dever com ele".

E como a instituição escolar tem reagido?

"O fato de não estar instalada nos anos 50 já deveria mexer com a escola, mas não o tem feito a ponto de fazê-la mover-se espontaneamente. Ao procurar respostas, uma escola assim só vê o impasse: a culpa é dos alunos sem base ou dos professores mal preparados? Só agora começamos a dar um salto no debate sobre o papel do ensino para esse público novo".

Sobre o cenário sociocultural em que a escola está inserida, e do qual a leitura tenta fazer parte, Pilar, a meu ver, faz a avaliação adequada:

"A vida contemporânea não induz à leitura. Com a Internet, TV, redes sociais e o celular, há outro tipo de comunicação. Quando se imagina literatura, pensa-se na pessoa relaxada, lendo Machado de Assis. Hoje, até o movimento corporal desse leitor é outro".

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Na escola pública em que trabalho, dentro da equipe (?) de meu setor, é possível encontrar pessoas ainda presas a essa imagem idealizada do estudante e da família. Pior ainda: persistem no imobilismo e na acomodação funcional. Não vão ao encontro das crianças, adolescentes, jovens e adultos concretos, reais, com os quais deveriam interagir. Além do mais, consciente ou inconscientemente, não atuam na promoção da leitura - o que é um descalabro, em se tratando de uma biblioteca escolar. É ou não é para desanimar qualquer um?

* O papel do idioma na escola. Língua Portuguesa, São Paulo, n. 61, p. 10-14, nov. 2010 [Editora Segmento]

BG de Hoje

Quando fui professor na Rede Estadual/MG, certa vez levei esta canção dos TITÃS para uma discussão em sala de aula, junto com uma matéria de jornal da área da Economia. Nosso objetivo era compreender melhor a tal globalização e acho a letra de Disneylândia (disponível aqui) perfeita para isso. NOTA: No vídeo, a atual formação da banda, com Branco Mello tocando o baixo.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Poesia: questão de tudo ou nada? (5)

 [Postagem atualizada em 06/12/2023]

 
"Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, [a poesia] ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é a máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!"

Octavio Paz

 
O conhecidíssimo ensaio Poesia e Poema*, de Octavio Paz, é um daqueles textos que a gente lê e relê durante anos e anos. Tem grande poder encantatório. Entretanto, dificilmente nos levará a uma conclusão segura sobre o tema e o objeto nele analisados. Caso de se conjecturar: é o assunto que não permite afirmações peremptórias ou é o poeta mexicano que não quer, esteticamente falando, correr riscos ao posicionar-se, agora na condição de crítico?

Sem me arriscar a responder, por ora,  e atendendo a objetivos colocados para  a série, destacarei 11 passagens do ensaio, apropriadas a meus argumentos. IMPORTANTE: não se deve perder de vista que Octavio Paz escreve tendo por base a concepção de que existe uma "unidade essencial das artes", ou seja, existe um "parentesco" entre a Literatura e a Música, a Literatura e a Pintura, etc. Naturalmente, a discussão dessas passagens será desdobrada em mais de uma postagem. Vamos às duas primeiras:

1) "[...] há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesia sem ser poemas. Pois bem, quando a poesia acontece como uma condensação do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta, estamos diante do poético. Quando - passivo ou ativo, acordado ou sonâmbulo - o poeta é o fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na presença de algo radicalmente distinto: uma obra. Um poema é uma obra".

O poeta como "fio condutor e transformador da corrente poética". Isso até que é bonito. Mas me faz ver o poeta como uma espécie de médium da literatura...

2) "Como nos apoderarmos da poesia, se cada poema se mostra como algo diferente e irredutível?"

De fato, cada poema é algo diferente e irredutível. Talvez pelo fato da própria noção do que seja a poesia escapar das definições limitantes.

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* PAZ, Octavio. Poesia e Poema. In:______________. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992 (p. 15-31) [tradução de Olga Savary]

BG de Hoje

O FAITH NO MORE, na minha opinião, foi  o grupo  que melhor uniu a levada  sacolejante do funk com a porrada vigorosa do heavy metal.  NOTA: Não cito Red Hot Chili Peppers - também ótima banda - porque estes nunca comungaram do "espírito" metaleiro. Pode-se verificar isso ouvindo, por exemplo, The morning after, canção do excelente disco The Real Thing (1989)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Poesia: questão de tudo ou nada? (4)

"Enquanto o homem permaneceu cativo de seus instintos, batalhando apenas para atender às necessidades, não passou de um animal. Somente quando foi capaz de morrer por uma coisa inútil, quando entregou toda sua energia e arriscou a vida para desenvolver a capacidade criadora é que se tornou efetivamente um ser humano. A arte foi a descoberta apaixonada daquilo que não é essencial à subsistência".

Fábio Lucas

Ao (à) leitor(a) habitual do Sinistras Bibliotecas, peço desculpas. Não estou dando a devida atenção à blogosfera nesses últimos dias. Há, contudo, uma explicação.

Boa parte de minhas atividades como servidor público está relacionada à promoção da leitura e à formação do leitor e alguns períodos, ao longo do ano letivo, são considerados mais propícios para tentar atingir esses objetivos. Por essa razão, estou agora - e estarei pelos próximos três meses, pelo menos - envolvido direta e intensamente com diversas turmas de estudantes, principalmente do 1º Ciclo do Ensino Fundamental (6 e 8 anos de idade, na média). São uma das prioridades de meu trabalho e minha persona na web acaba ficando um pouco inativa. Vamos tentar, todavia, não extinguir a discussão iniciada semanas atrás.

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Em 1997, o crítico literário Fábio Lucas (na época, presidente da União Brasileira de Escritores) publicou um pequeno artigo* que muito me fez pensar - e ainda faz. Em Literatura fora dos trilhos, o autor não aborda apenas a produção poética, mas expõe sua visão do  "sistema literário" como um todo, sobretudo no que se refere ao contexto nacional:

"A sociedade está sendo dirigida para impor uma educação cada vez mais técnica, o que equivale dizer cada vez menos literária. Enquanto isso, aumenta o número de escritores sem público. Desapareceram as convenções sociais que amparavam a literatura que, por sua vez, se desfez de convenções confiáveis que ditam os parâmetros da qualidade e alimentam os juízos críticos. Faltam cânones e exemplos. Há muito se abandonaram os Clássicos como fonte de consulta, dignos de imitação. O sistema literário entrou em pane".

Fábio Lucas analisa, entre outras coisas, a relação da Literatura com a imprensa, com a mídia eletrônica, com o mercado e com o público. Sobre este último ponto, ele afirma (e eu concordo ) que

"A autoridade do discurso literário decorre de um permanente plebiscito dentro da sociedade em que o discurso transita, pois este não passa de um ato permitido pelo colegiado de leitores. Mesmo diante de uma ilusória individualidade, que o experimentalismo levou às últimas consequências, a sanção do consenso coletivo é que faz com que o autor seja ouvido e respeitado, pois o coletivo é que é o guardião das palavras correntes".

Mas ele também adverte, citando Gilles Deleuze, que essa "subordinação ao coletivo" pode acabar implicando "opressão institucional, uma ideologia".

Falando especificamente sobre textos em verso, Lucas acredita que

"Estamos praticando duas classes de poesia que lembram a dissociação da sensibilidade acusada por T. S. Elliot e enfatizada por Blackmur, que não tinha o menor respeito pelo pensamento alheado dos sentidos: o raciocínio sem sentimento e o sentimento sem raciocínio".

O que se encontra hoje nos poemas? De acordo com o ensaísta,

"A fabricação publicitário-industrial-construtivista, derivada da propagação e da deterioração do concretismo, apresenta-se como uma periferia macarrônica ligeiramente ignorante. Produz esqueletos verbais sem alma. Paralelamente, move-se uma avalanche de apelos sentimentais, num desregramento repetitivo de declarações de amor ou de sofrimento, de leitura tediosa. Alimenta a tradição narcísea de nossa época. Formalmente, estamos caindo num minimalismo, composto de flashes verbais que imitam o vídeo-clipe".

A respeito dessa "tradição narcísea de nossa época", Fábio Lucas é preciso quando afirma que

"Os autores geralmente não tomam conhecimento do trabalho de seus contemporâneos. Não os estudam, aplaudem ou atacam. Devotam-lhes a indiferença, a mesma confiança aos antigos. Numa coleção de 60 depoimentos de escritores brasileiros, não encontramos nenhuma referência a contemporâneos. Nenhuma análise de tendências, nenhuma contestação de procedimentos. Todos se preocupam com sua própria obra e o seu provável circuito no mercado consumidor. Os anjos rebeldes de nosso tempo estão contidos pela vaidade".

Na próxima postagem, Octávio Paz e  mais uma tentativa de conceituação.

* LUCAS, Fábio. Literatura fora dos trilhos. Estado de Minas, Belo Horizonte, 27 set. 1997, p. 3, Caderno Pensar

BG de Hoje

Uma das músicas seminais para a consolidação do heavy metal: Iron Man, do BLACK SABBATH.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Poesia: questão de tudo ou nada? (3)


Hoje só tive vontade de reproduzir este extraordinário poema de Vinícius de Moraes *, que assenta perfeitamente com meu atual estado de espírito. Continuo a discussão em outra oportunidade.


AUSÊNCIA

Vinícius de Moraes

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


* MORAES, Vinícius de. Antologia poética. 25 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1984
BG de Hoje

Uma das baladas românticas mais bonitas que já ouvi (embora eu não concorde muito com a letra): All in love is fair, do fenomenal STEVIE WONDER.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Poesia: questão de tudo ou nada? (2)

ALGUMAS NOTAS

1) O tradutor Paulo Henriques Britto, responsável pela versão em português de boa parte da obra da poetisa Elizabeth Bishop, declarou hoje no jornal Folha de S. Paulo*:

"Os leitores de poesia nesta terra são tão poucos que não compensa fazer reedições [...] Quantos leitores de poesia haverá no Brasil? Creio que não chegam a mil".

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2) Fabrício Carpinejar publicou, há alguns anos, notável artiguete na revista Superinteressante** (já falei a respeito desse texto na postagem Ao pé da letra ). Em Por que não se lê poesia?, o escritor faz a pergunta impertinente e necessária: "Por que a poesia virou mercadoria que todo mundo tem pra vender mas ninguém quer comprar?"

É quando me lembro do curto período em que frequentei bares no centro de Belo Horizonte, principalmente no Edifício Maletta e na rua Guajajaras. Entre uma cerveja e outra, não era nada difícil aparecer a figura meio hippie - sandália de couro, bata ou camiseta "indiana", etc. - que abria a bolsa e de lá sacava livretes "artesanais". "Você não estaria interessado em comprar alguns dos meus poemas?" - dizia o sujeito. Isso quando não decidia "recitar" uma das suas criações. Se tinha algum dinheiro sobrando - coisa rara - levava um. No outro dia, passada a bebedeira, constatava como os textos eram ruins e me perguntava: será que esse camarada nunca leu Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto ou mesmo Mario Quintana? Como pode escrever algo que não dialoga com aquilo que foi produzido por tantos autores antes dele?

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3) Segundo penso, não há incompatibilidade entre ser original (falarei desse conceito mais adiante, em outra postagem) e recorrer à tradição, ao já feito. Muitos poetas hoje - principalmente com o advento da web - consideram-se inovadores autossuficientes que não devem tributo à ninguém. Não admitem a leitura atenta de outros autores como parte de seu aprendizado, necessária até para o desenvolvimento de suas próprias técnicas. Resta saber, entretanto, se o versejar deles contribui para uma melhor visão da poesia e para um aprofundamento da cultura literária.

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4) Não leio poetas cujo idioma materno não seja o português; portanto, nunca li Elizabeth Bishop, ou Pablo Neruda, ou Rainer Maria Rilke, por exemplo. Na condição de monoglota, sou um apreciador bastante limitado de textos poéticos, pois não posso ler muitos deles na língua original em que foram escritos. E por mais bem feitas que sejam, as traduções - no caso específico de poemas - retiram muito da expressividade e da força do idioma. Na prosa isso é perfeitamente contornável, mas na poesia...

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5) Arrisco dizer: muitos poetas que hoje se aventuram a escrever poesia não são leitores de poesia. E a Literatura, penso eu, só se torna mais rica e significativa quando é retroalimentada. Estranhamente - estou sendo exagerado de propósito - há mais "poetas" escrevendo do que gente interessada em lê-los. Poetas que não leem poesia são uma tremenda e empobrecedora contradição.

* Bishop ausente. Folha de S. Paulo, São Paulo, 8 fev 2011, Caderno Ilustrada, p.1

** CARPINEJAR, Fabrício. Por que não se lê poesia? Superinteressante, São Paulo, n. 172, p. 98, jan. 2002

BG de Hoje

Esta é uma das canções mais saborosas desse gênio chamado JORGE BEN(JOR): Minha teimosia é uma arma pra te conquistar.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Poesia: questão de tudo ou nada? (1)

É possível encontrar na "orelha" das últimas edições dos livros de Carlos Drummond de Andrade, lançados pela Record, uma contundente declaração do autor. Retiro de minha estante o exemplar de Claro enigma*, por exemplo, e leio:

"Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos".

Costumo dizer, sarcasticamente, que oito em cada dez seres humanos são acometidos, em algum momento de sua vida, pela "febre do verso". Acordam um dia achando que são capazes de escrever bons e "bem-intencionados" poemas e, para mal de nossos pecados, uma parte dessas pessoas - gente sem nenhum brilho - acaba regurgitando suas ralas composições no papel (ou, hodiernamente, na tela do celular ou do notebook. Também já tive essa doença quando era mais jovem. Felizmente, conheci João Cabral de Melo Neto e Augusto dos Anjos a tempo, e me curei, destruindo posteriormente todos os vômitos verbais que havia lançado às folhas de antigos cadernos pautados.

Drummond, a meu ver, acerta na mosca ao lembrar que o verdadeiro poeta é aquele que se entrega "aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação". A poesia, como toda boa Literatura, é antes de tudo um arranjo bastante especial de linguagem, com objetivos que se manifestarão, principalmente, no plano estético. Exige conhecimento, muito mais do que apenas "sentimento".

O itabirano já ensinara**:

"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos"

[...]

"Chega mais perto e contempla as palavras
Cada uma 
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?"

No mesmo sentido, Manuel Bandeira afirma***:

"[...] compreendi, ainda antes de conhecer a lição de Mallarmé, que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e sentimentos, muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia".

Nessa nova série de postagens - que promete ser a mais longa já surgida por aqui - desejo esclarecer qual a concepção de poesia e de fazer poético que mais me interessa e da qual me valho no momento de avaliar escritos e escritores. Embora este não seja um espaço de crítica literária, julgo importante manifestar minha opinião sobre o campo das obras em verso, na suposição de que tal posicionamento possa interessar um(a) possível leitor(a) identificado(a) com o blog.

Affonso Ávila, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Paulo Leminski, Álvares de Azevedo, João Cabral de Melo Neto, Octávio Paz, Fabrício Marques, Elisa Lucinda, Antonio Carlos Secchin, Heloísa Buarque de Holanda, Roseana Murray, Arnaldo Antunes, José Paulo Paes, Chacal, Sebastião Uchoa Leite, Manoel de Barros, Maria do Carmo Pereira, Jaime Ovalle, Mario de Andrade, Cora Coralina, Antonio Cicero, Fabrício Carpinejar e Alexei Bueno serão alguns dos poetas, críticos e estudiosos a serem discutidos, o que não quer dizer que aprecie a todos.

Até a próxima!
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* ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. 18 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008 (Infelizmente, a editora não indica a data nem o local em que foi dita e/ou publicada a declaração de C. D. de Andrade citada na postagem)

** ANDRADE, Carlos Drummond de. Procura da poesia. In: _______________. A rosa do povo. 40 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 24-27

*** BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. In: ________________. Seleta de prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 295-360

BG de Hoje

Li há algum tempo, numa revista sobre música pop, a melhor definição para o som do ALICE IN CHAINS, minha banda preferida: "trilha sonora para pesadelos". Acho que esse é o caso de Rain When I Die, canção bastante característica do trabalho do grupo.