sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Cena escolar (2)

RIO DE JANEIRO - Em 31 de janeiro deste ano, o jornal Folha de S. Paulo publicou matéria especial*, assinada por Antônio Gois, tratando do tema educação. O repórter permaneceu por cerca de três meses no Centro Interescolar Estadual Miécimo da Silva, instituição com mais de 1.590 estudantes, localizada em Campo Grande, distrito da capital fluminense.

Mesmo com a adequada infraestrutura, do bom estado das instalações e da dedicação do grupo de professores e da direção, a escola não está "imune aos problemas comuns a quase todas as escolas públicas do Brasil: excesso de burocracia, pouca autonomia pedagógica, insuficiência de funcionários, professores insatisfeitos com seus salários e alto número de faltas, deixando alunos frequentemente sem aulas".

Ainda segundo a reportagem, "o maior desafio, porém, é lidar com uma realidade social complexa, tendo que atender ao mesmo tempo alunos de alto potencial e jovens desinteressados e indisciplinados, de famílias que jogam sobre os ombros da escola toda a responsabilidade de educá-los".

A matéria - ótima, por sinal - relata o tempo perdido no início das aulas com a manutenção da disciplina das turmas; a atuação limitada dos Conselhos Tutelares; a abstenção dos pais e mães nos momentos destinados à discussão do desempenho e do comportamento de seus filhos; o esforço de alguns professores, apesar dos salários nada justos. A esse respeito, vale citar o caso da diretora da escola Miécimo da Silva, Rosana Faria:

"[...] para dar conta de todas essas demandas sem abrir mão de acompanhar de perto o dia a dia do colégio, ela trabalha das 7h às 18h, esticando às vezes até as 21h. Seu salário bruto, já com os R$ 800,00 de gratificação por ser diretora, é de R$ 2.120".

Ou seja, inferior ao de outros profissionais de nível superior atuando em outras áreas, como, por exemplo, engenheiros, médicos e enfermeiros. E essa remuneração vem depois de 31 anos de magistério...

Mas é no depoimento de um docente que quero me deter. José Carlos de Araújo, de 53 anos, passou a se dedicar à pintura, buscando outra forma de realização profissional. Ele diz:

"Pode ser egocentrismo, mas sempre gostei da sensação de ser admirado por ser professor de matemática. Hoje, não sinto mais isso. Foi daí que, mesmo sem ganhar dinheiro, comecei a pintar quadros".

BELO HORIZONTE - Graças a uma troca (necessária) de turno de trabalho com uma colega, às segundas e quintas-feiras, fui "premiado" com duas turmas, chamadas, aqui no serviço, de "núcleo da juventude". Explico: são estudantes, entre quinze e dezessete anos, que, pela idade e tempo de escolarização, não se enquadram mais no Ensino Fundamental (ainda inconcluso), mas não são matriculados na EJA (Educação de Jovens e Adultos).

Para além da indisciplina e agressividade típicas, chamam-me a atenção a imaturidade (em algumas situações, comportam-se como criancinhas mimadas e birrentas) e a pouquíssima disposição, próxima da mais absoluta preguiça.

Penso no que disse o professor José Carlos de Araújo sobre a sensação de sentir-se admirado como docente. Não espero - para falar a verdade, nunca esperei, desde que trabalho na educação pública - admiração por parte dos estudantes para quem presto serviço. O respeito já seria suficiente.

As expressões de deboche, escárnio, tédio e irritação a me encarar em cada período de trabalho demonstram que nem isso de pode obter.

* Toca o sinal. Folha de S. Paulo. São Paulo, 31 jan. 2010. Caderno Mais! p 4-7

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Cena escolar (1)

Sexta-feira passada estávamos reunidos, à noite, na sala dos professores da escola pública em que atualmente trabalho, quando a diretora da unidade avisou-nos que um jovem desejava informações sobre sua situação escolar Foi recebido. Bastante agressivo (e, aparentemente, sob efeito de drogas) R. queria saber por que não recebera ainda um documento ou qualquer outra certificação atestando que ele havia, segundo sua expressão, "terminado a quarta série".

Aqui são necessários alguns esclarecimentos. No município de Belo Horizonte, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) - modalidade na qual R. estava matriculado - não segue o modelo seriado em sua rede pública (assim também acontece no ensino fundamental regular, organizado por ciclos). Os alunos da EJA são reunidos em turmas, de acordo com seu nível de conhecimento e aprendizagem, e, após avaliações periódicas feitas pelos professores e coordenação pedagógica, cada estudante pode ou não mudar de etapa (ou etapas) e, no final, receber o certificado de conclusão do ensino fundamental. Isso pode se dar em quatro, cinco ou mais anos, dependendo da dedicação, do envolvimento e do esforço dos estudantes. Todos os alunos sabem disso (ou deveriam saber) quando se matriculam.

Segundo fui informado, R. mal consegue ler e escrever e não domina as quatro operações básicas da matemática. UMA NOTA: uma de minhas irmãs, professora, tem feito a seguinte piada, de humor mórbido: o modo mais eficiente hoje em dia para estimular um jovem a aprender matemática é dizer a ele que corre o risco de levar um tiro caso faça as contas erradas na hora de acertar os pagamentos com o dono da boca de fumo...

Consultou-se a frequência de R. durante o ano letivo de 2009: ele compareceu a menos de 30% das aulas. Um dos professores também verificou que o estudante não havia realizado nenhuma das atividades/avaliações daquele ano. Impossível obter qualquer atestado de escolaridade numa situação dessas.

Mas R. insistiu. Sua "reivindicação" mudou de teor. Passou a reclamar dos outros estudantes, dizendo que seus "aliados" estavam em outra escola e que ele corria risco de vida, pois tinha várias "broncas" com moradores da Vila P., uma favela próxima do nosso local de trabalho. Chegou a perguntar para os professores: "cês pode garantir minha segurança? Vão entrar na frente se alguém resolver atirar ni mim?" Claro que a resposta foi negativa.

No fim das contas, a diretora ofereceu a manutenção da matrícula de R. (a única coisa exequível naquela circunstância). Ele saiu xingando palavrões e dizendo que ia jogar uma bomba na escola.

De tudo, concluí o seguinte:

1) Se não se pensar (e implantar de fato) uma eficiente rede de cooperação e serviço conjunto, envolvendo as áreas da assistência social, da saúde, da cultura, do esporte, da segurança pública e da educação (last, but not least), vamos continuar perdendo estudantes para a criminalidade (atividade perigosíssima, mas muito mais rentável que a rotina escolar).

2) São tantas as "reinvenções da roda" no meio educacional, com a adoção de modas pedagógicas, tecnicismos burocráticos e nomenclaturas vazias que a população (em geral) e as comunidades escolares (em particular) têm dificuldade para compreender, na essência, o trabalho educativo formal.

3) A "reclamação" de R. reforçou uma convicção que tenho já há alguns anos: ninguém mais quer se esforçar para nada! É tudo mastigadinho e, de preferência, pra ontem! Num ambiente assim, é difícil ser otimista com a educação básica, principalmente pública.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Contra o desespero e o absurdo: um poema (3)

"Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a gerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes. sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan". *

Existe uma bela frase, costumeiramente atribuída a René Descartes: "a leitura é uma conversa com os homens mais célebres dos séculos passados". Aprecio a concepção do ato de ler como um diálogo. "Caminhas entre mortos e com eles conversas/ sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito". Os leitores e seus fantasmas indispensáveis... Jorge Luís Borges falava dos escritores reencarnados nas suas próprias obras. Às vezes... melhor dizendo, quase sempre, sinto-me melhor e mais à vontade na companhia desses mortos: Drummond é um deles. Estão nas prateleiras e me convidam para o bate-papo; de minha parte, a expectativa é enorme. Vários deles me falam mais ao espírito do que o amigo mais dileto. Serei eternamente grato: são a família que escolhi. Tornam minha existência mais suportável.


* ANDRADE, Carlos Drummond de. Elegia 1938. In: _________________. Sentimento do mundo. 13 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Contra o desespero e o absurdo: um poema (2)


"Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas". *

Exemplaridade: vive-se em busca dela. Não se encontra. O trabalho (etimologicamente, a palavra tem origem num antigo instrumento de tortura, o tripalium) não é espaço de realização, nem de reconhecimento. A mediocridade e a mesquinhez sufocam. É simplesmente de sobrevivência que falo: não sou exigente, nem perdulário. Administro meus sonhos com moderação. E sigo inquieto, angustiado. A publicidade e o entretenimento globalizado me dizem o tempo todo que eu não valho nada. Estarão certos? De um determinado ponto de vista, sim. Os parques... Entre os viciados em crack que hoje os frequentam, ouço risadas infantis. Eles e diversos outros não têm ideia de quem é aquela estátua ali colocada. UMA NOTA: Ferreira Gullar, na sua coluna de domingo (07/02/10), na Folha de S. Paulo, ao comentar sobre o vandalismo recorrente com que é "tratada" a estátua de Carlos Drummond de Andrade, no calçadão da avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, escreve: "saquear a estátua de um poeta é coisa de gente demasiado ignorante". OUTRA NOTA: Carlos Drummond de Andrade, mesmo em seu ceticismo, consegue ser bem-humorado: "À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze/ ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas".

Heroismo de figura inerte e sem vida. Mitificação. Mistificação. Não, as bibliotecas não são sinistras; não posso dizer o mesmo de mim.

* ANDRADE, Carlos Drummond de. Elegia 1938. In:__________. Nova reunião: 19 livros de poesia. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Contra o desespero e o absurdo: um poema (1)



Convivo com este poema há muitos anos:

ELEGIA 1938
Carlos Drummond de Andrade
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


Elegia 1938
faz parte do livro Sentimento do mundo*, publicado pela primeira vez em 1940. Assinala a "transição" para a "fase social" da obra de Carlos Drummond de Andrade, como se convencionou dividir a poesia do autor mineiro.

Sendo direto: é o meu poema favorito, aquele que gosto de dizer quando, às vezes, sou tomado pelo desespero e tenho a sensação de que o absurdo é a realidade reinante.

Nos anos 1940, Drummond tornou-se o "poeta público", o "poeta político", principalmente após o surgimento de A rosa do povo. Ainda assim, não conheço melhor escritor para falar da solidão, sensação tão característica desse nosso mundo "inabitável" e, paradoxalmente, "cada vez mais habitado", para lembrar outro verso do escritor **.

Também sobre solidão nos fala esse maravilhoso Elegia 1938, assunto deste blog nas próximas postagens.


* ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. 13 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001

** Do poema O sobrevivente

O verdadeiro fenômeno


lnfelizmente, nesse nosso Brasilzão, vivemos a estúpida monocultura esportiva do futebol. E já dizia o Millôr Fernandes: "o futebol é o ópio do povo e o narcotráfico da mídia". Prefere-se falar da vida privada de jogadores já em fim de carreira, como Ronaldo, vulgo Fenômeno, a divulgar e incentivar a prática de outros esportes.

O resultado é um país populoso, economicamente superior a muitos outros, mas cujos habitantes, em geral, desconhecem a atividade física que não seja aquela feita para impressionar (ou enganar) pretendentes e que se realiza nas "academias" de ginástica espalhadas pelas esquinas. Esse mesmo país acalenta o sonho de ser potência olímpica, veja você...

Fenômeno, pra mim, é Serena Williams. A tenista norte-americana venceu pela quinta vez (quinta vez!) o Aberto da Austrália, um dos mais importantes torneios do mundo. Tornou-se a sexta maior ganhadora da história dos quatro campeonatos que formam o Grand Slam.

Debateu-se tal façanha nas mesas-redondas esportivas? Não, preferiu-se, por exemplo, falar da egotrip de um jogador do Flamengo... Pra frente, Brasil!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

"No fundo da alma há solidão"



A cantora e compositora Vanessa da Mata, no encarte do seu (ótimo) disco Sim (Sony/BMG Music, 2007) escreve:

"Muitas vezes, não tenho a coragem de enfrentar a tristeza febril da realidade dos mendigos, dos loucos, dos meninos de rua, dos perigos vários de violência, dos pedidos de esmola, dos vendedores sem coração nem desconfiômetro de insistência que perturbam a paz de quem procura as praças para seu descanso e lazer, vendendo histórias que muitas vezes não queremos ter".

Acho que um dos melhores exemplos da deterioração da vida urbana (que promete tudo, menos solidariedade e aproximação) está naquilo que se pode observar nas praças das grandes cidades. Espaços imensos, abertos, mas amedrontadores.

Mais à frente, no mesmo encarte, Vanessa da Mata sonha:

"É preciso varrer outras lacunas que se esgueiram na perversão e na crueldade dos homens. Na violência que nos afunda, na corrupção que nos mata, na passividade que nos oprime e não nos desperta confundindo-se com pacificidade. É preciso não curvar a dignidade".

Pessoalmente, acho que não se tem escapatória: solidariedade é artigo em falta no mercado e dignidade não paga as contas...

Já falei sobre este disco no meu antigo (e extinto) blog. Nem sei por que quis voltar a ele... Mentira, sei sim. Finalmente me dei conta de que solidão é ruim. Durante anos a vida eremítica foi meu ideal; estava enganado.

A canção Vermelho, de Vanessa da Mata - e que abre o álbum acima mencionado - tem tudo a ver com o que venho sentindo nos últimos dois anos:

VERMELHO
Vanessa da Mata

Gostar de ver você sorrir
Gastar das horas pra te ver dormir
Enquanto o mundo roda em vão
Eu tomo tempo
O velho gasta a solidão
Em meio aos pombos na Praça da Sé
O pôr-do-sol invade
o chão do apartamento

Vermelhos são seus beijos
Que meigos são seus olhos

Ver que tudo pode retroceder
Que aquele velho pode ser eu
No fundo da alma há solidão
E um frio que suplica um aconchego

Vermelhos são seus beijos
(Quase que me queimam)
Que meigos são seus olhos
(Lânguida face)
Seus beijos são vermelhos
(Quase que me queimam)
Que meigos são seus olhos
(Lânguida face)


SOBRE TCHEKHOV

Na postagem anterior, eu falei sobre um conto de A. P. Tchekhov. Se você quiser saber um pouco mais sobre esse escritor, vale a pena ler o ótimo texto feito por Marcello Cabral (do blog O diabo no meio da rua), disponível aqui. Boa leitura!