quarta-feira, 4 de maio de 2022

Sentir a luxúria única de não ter já esperanças


Não tem jeito. Vou cair no exercício fácil de falar de textos bastante conhecidos. Fazer o quê? Nestas últimas semanas, tão pesadas para mim, busco refúgio em escritores que já li tantas vezes.

Fernando Pessoa, por exemplo. Em especial, poemas do heterônimo Álvaro de Campos.

Comecemos por Adiamento ¹:

 
"Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro, 
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir..."

Um intérprete bem obtuso do poema tomaria o eu lírico (ou eu poético, se assim desejarem) como um procrastinador um tanto cínico. 

Falando nisso, o(a) eventual leitor(a) já reparou que a procrastinação é vista como um dos grandes pecados contemporâneos? Pelo menos é o que diz esta numerosa galera do palavrório motivacional - gurus de autoajuda, coaches e quejandos -, sempre com livros, cursos, palestras ou vídeos do tipo "sete dicas" para reprogramar seu "mindset", desbloquear o poder da mente e tornar-se um exemplo de produtividade.

Produtividade. Conceitozinho maroto...

Claro, ninguém gosta de se sentir improdutivo, penso eu. Mas o que de fato significa ser produtivo, sobretudo quando lembramos que, na ordem capitalista vigente, a imensa maioria das pessoas neste mundo só consegue obter algum dinheiro (necessário para sua subsistência) vendendo (a preço nada justo) sua força de trabalho em ocupações que elas não escolheriam se tivessem opções menos ruins? Nesse caso, em última instância, ser um exemplo de produtividade está beneficiando a quem exatamente? Sem falar que o discurso da produtividade quase sempre vai ao encontro da exploração econômica que nos está conduzindo ao colapso ambiental. 

Essas questões, entretanto, são assuntos para outro chopp. 

O que seria o adiamento na composição acima? Creio que um dos sentidos possíveis está diretamente ligado a este trecho:

"Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã..."

Embora o vocábulo não apareça em nenhum verso, a noção de desesperança - melhor dizendo, a recusa em se ter esperança - é importante para que consigamos apreender esse sentido.

Há um evidente escárnio: preparar-se amanhã para conquistar o mundo no dia seguinte equivale, no fim das contas, a não se preparar. 

Para que preparar-se, afinal? Não compensa, não vale a pena; a vida não passa de um logro. E toma-lhe mais um pouco de ironia amarga  - "depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser". Se não há esperança, não há motivo para planos. Adie-se tudo, pois, indefinidamente.

Ora, o mundo, imenso, é ainda por cima "opaco" e "alheio", como se lê noutro poema, o celebérrimo Tabacaria (o mundo é também hostil, acrescentaria eu). Para aqueles de nós que falharam em tudo, não é difícil às vezes olhar ao redor e sentir que se perdeu a "irmandade com as coisas":

"Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, 
Vejo os cães que também existem, 
E tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo".

Esses versos sempre me lembram A náusea, de Sartre (livro que, em breve, será novamente assunto aqui no blog).

Planos, projetos... Quanta inutilidade! Como está escrito em Pecado original,"somos todos quem nos supusemos/A nossa realidade é o que não conseguimos nunca" (assim é pelo menos para alguns de nós).

Porém, o pretexto para esta postagem veio especificamente de um poema sem nome de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, do qual gosto bastante. Reproduzo-o abaixo, na íntegra:

"Estou cansado, é claro.
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto -
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
 
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente: eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para alguma coisa".

Sorrir em meio ao cansaço (não se está, obviamente, falando de fadiga física) pode soar como um contrassenso à primeira vista. Entretanto, com o passar do tempo e para quem o vivencia, o desconsolo se torna um sentimento familiar, natural, que o "entendimento retrospectivo" consegue examinar, talvez não propriamente de maneira prazerosa, mas com um pequeno e insólito interesse ("que afinal a cabeça sempre serve para alguma coisa"). Quando deixamos de nutrir ilusões, quando nos vemos completamente sem esperanças, a sensação é mesmo quase luxuriante (parece desarrazoado dizer isso, mas não é mentira). 

Pessoalmente, porém, se pudesse experimentar, preferiria outras luxúrias.

 

Na próxima postagem, falarei de uma novela de Guimarães Rosa e de uma série de TV.

___________

¹ Todos os textos citados nesta postagem estão em Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV (Editora L&PM, 2006)


Homenagem


Dias atrás a oposta Sheilla Castro decidiu encerrar a carreira como atleta profissional de voleibol indoor. Trata-se de um dos maiores nomes desse esporte, no país e no mundo (há quem diga que foi a melhor jogadora brasileira de todos os tempos). Iniciou sua trajetória no Mackenzie, mas foi no Minas Tênis, outro clube aqui de Belo Horizonte, que ela despontou em 2001. Lembro-me bem desse período. Hoje Sheilla faz parte da comissão técnica do time feminino do Minas. Embora discorde de alguns de seus posicionamentos, como fã de vôlei, sempre tive grande admiração por ela. Vai ser difícil aparecer outra com tanto talento. Quem também está deixando de competir profissionalmente é a central Walewska Oliveira, duas vezes medalhista olímpica (bronze em Sydney/2000 e ouro em Pequim/2008), sinônimo de elegância dentro e fora da quadra.

BG de Hoje

Estou cada vez mais obcecado com a discografia do cantor e compositor canadense Dallas Green (que adota o nome artístico CITY and COLOUR). Das melhores "descobertas" recentes que fiz. Tenho ouvido (quase de forma ininterrupta) os cinco álbuns gravados por ele até agora. As melodias e arranjos maravilhosamente simples, a voz e - não menos importante - as letras cheias de melancolia: combinação cujo resultado é música bem acima da média. Nos últimos dias, às vezes me pego cantarolando estes versos do refrão de Two Coins: "I've always been dark/with light somewhere in the distance". Não é incomum que as apresentações do City and Colour não tenham mais que o artista e seu violão (como no vídeo abaixo). Sugiro, entretanto, ao(à) eventual leitor(a) que procure ouvir essa mesma canção acompanhada de outros músicos, como está no disco The Hurry and The Harm, lançado em 2013. Ficou linda.