segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Alice In Chains no MoPop


Como sou uma besta quadrada, apenas em agosto deste ano é que soube da existência do Museum Of Pop Culture (MoPop), localizado em Seattle (EUA), cidade natal de seu fundador, o falecido bilionário Paul Allen (um dos criadores da Microsoft, junto, é claro, de seu amigo e conterrâneo Bill Gates).

A organização surgiu no ano 2000 como Experience Music Project and Science Fiction Museum and Hall of Fame (o nome atual só começou a ser usado em 2016). Suas exibições e atividades, além de ocasionais mostras de artes plásticas, são voltadas principalmente para cinema, literatura, quadrinhos, videogames e entretenimento nos gêneros de ficção científica, fantasia e horror, bem como a manutenção de acervos e a realização de eventos relacionados à música pop, com destaque para artistas nascidos em Seattle ou vinculados à cidade

Desde 2007, ocorre uma celebração (cujo objetivo é também angariar fundos) homenageando cantores(as), instrumentistas, bandas e afins, intitulada Founders Award. Devido às restrições impostas pela pandemia de COVID-19, a festividade teve de ser cancelada em 2020, mas as apresentações musicais previstas aconteceram e foram abertas para o público em geral, por meio de transmissão online. 

Tratou-se de um tributo ao Alice In Chains, meu grupo de rock preferido.

Nesta postagem, destaco as performances de que mais gostei.

Man In The Box


Canção mais famosa do Alice In Chains, provavelmente, Man In The Box marcou a minha vida (já escrevi sobre isso aqui). Na execução acima, três músicos que se conhecem bem: Dave Navarro e Chris Chaney tocam juntos no Jane's Addiction há um longo tempo; o baterista Taylor Hawkins (Foo Fighters) é parceiro de Chaney num projeto paralelo (além disso, os dois colaboraram com Alanis Morissette no passado). Mantendo o estilo próprio, Navarro conduziu sua guitarra de maneira bem próxima da versão original, inclusive no solo. Não tão positiva foi a atuação de Corey Taylor (Slipknot). Cantor respeitado dentro e fora do ambiente do heavy metal, Taylor não conseguiu atingir a pujança vocal do falecido Layne Staley, principalmente no refrão. Ainda assim, aprovei.


It Ain't Like That


Algumas performances aconteceram fora das dependências do museu. É o caso dessa. It Ain't Like That é minha canção preferida do Alice In Chains. Não esperava que fosse tocada nesse tributo porque não é das mais conhecidas. Fiquei contente. Nunca tinha ouvido falar na cantora Shaina Shepherd. Pouco importa: ela é ótima. Não se pode deixar de mencionar a participação do mestre zen da guitarra de Seattle, Kim Thayil (Soundgarden). It Ain't Like That tem alguns dos melhores versos escritos por Layne Staley, como por exemplo:

"Here I sit, writing on the paper
Tryin' to think of words you can't ignore
In my eyes, what I'm lackin'
Score at face, a ten for slackin'
Sign the deal, set in motion
Smaller fish, so huge the ocean"



Would?


(Versão do Metallica)
Outra apresentação que não ocorreu no MoPop. É significativo que uma banda tão venerada e rica quanto o grupo californiano desça de seu pedestal para honrar outros artistas, mesmo que seja sem sair de casa. Aplausos para o vocal de James Hetfield: a medida que o tempo passa, ele vai cantando cada vez melhor, anos-luz de distância da - como gosto de dizer - fase "canina" dos três primeiros álbuns do Metallica.


(Versão do Korn)
Se você for ler os comentários do vídeo acima no Youtube, verá que alguns deles começam mais ou menos assim: "I'm not a Korn's fan, but...". Pois bem, não sou fã do Korn, mas eles acertaram em cheio nessa.


Put You Down


Adorei essa performance! Liv Warfield é uma cantora ligada ao rythm'n'blues e ao soul, mas Put You Down encaixou-se perfeitamente com ela (e para valorizar sua voz, penso eu, a canção foi tocada numa levada um pouquinho mais lenta do que a versão original). Achei bacana a transmissão do vídeo ter explorado bem o cenário do museu. Quando ouvi Put You Down pela primeira vez, senti uma vibração parecida com o Van Halen, banda que eu ouvia pra caramba, 30 anos atrás. Muito tempo depois, soube que Jerry Cantrell, de fato, admirava o guitarrista neerlandês-americano (este, inclusive, presenteou o então iniciante Alice In Chains com instrumentos e equipamentos, no comecinho da década de 1990).


Rooster


É o que se pode chamar de encontro de gerações: Ann Wilson, que desde os anos 1970 e sobretudo nos 1980, ajudou a reforçar a imagem de Seattle como uma cidade roqueira (graças ao sucesso do Heart, banda formada junto com sua irmã, Nancy), interpretando Rooster, hit de um dos expoentes do grunge, cena musical que teve Seattle como epicentro nos anos 1990 (muito embora o Alice In Chains não assumisse o rótulo).


Them Bones


A versão mais "estranha" (no bom sentido) de todo o evento. O Fishbone é daqueles grupos difíceis de classificar (ska? funk? rock?). Não sei descrever o que esses caras fizeram nesse cover, mas ficou bom.


No Excuses (com o próprio Alice In Chains)


Faz muito sentido tocar No Excuses num dia de homenagem, uma vez que a canção tematiza a amizade. Nessa versão acústica, já experimentada no MTV Unplugged de 1996, o trabalho do baterista Sean Kinney transparece. No Excuses também realça uma das melhores características do Alice In Chains: a harmonização vocal em dupla (às vezes recorrendo ao double-tracking nas gravações de estúdio), algo raro em bandas de rock pesado. Por falar nisso, confesso que custei muito a "aquiescer" com a incorporação de William DuVall ao grupo. Sua adição, porém, revelou-se bastante acertada: é um bom cantor, além de instrumentista competente (algo que Layne Staley, mesmo sendo dono de uma voz extraordinária, não era). Após a chegada de DuVall, mais três discos foram lançados, sendo um destes - Black Gives Way To Blue - um álbum bem bacana, na minha opinião. 


Rain When I Die


Deixei por último a apresentação que considerei a mais bonita de todas. Nunca imaginei que Rain When I Die pudesse ser tocada sem o forte riff de guitarra elétrica que é a sua principal marca na versão original. Não foi preciso mais do que o violão e a voz límpida do cantor e compositor canadense Dallas Green (que usualmente se apresenta com o nome artístico City and Colour) para dar ainda mais dramaticidade a uma canção já de si tão triste. Belíssimo.

Se o(a) eventual leitor(a) desejar, o evento completo pode ser conferido aqui.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Sobre a ABL (Academia Brasileira de Letras) e sobre anacronismos


[Postagem atualizada em 14/12/2021]


A chamada Casa de Machado de Assis, nos últimos dois meses, conseguiu um espaçozinho nos noticiários em virtude da eleição de quatro novos membros, sendo dois destes - Fernanda Montenegro e Gilberto Gil - artistas bastante populares e estimados. 

Terá sido uma estratégia para gerar imagem mais simpática e menos vetusta, já que, na visão de alguns, a agremiação não passa de um clube privativo de velhinhos emproados que se reúnem de vez em quando para tomar chá e fazer comentários pomposos sobre a cultura do país?

É provável que sim (movimento similar parece ter sido a entrada de Paulo Coelho em 2002). Em minha opinião, contudo, está longe de ser suficiente para que a instituição aparente ser mais receptiva e avançada, sobretudo ao pensarmos no processo de candidatura e escolha de seus membros.

Quando uma cadeira é declarada vaga após o cerimonial previsto, os postulantes precisam, em até 30 dias, enviar uma carta, e-mail ou telegrama (sim, o telegrama ainda é usado no Brasil) para a presidência da ABL, manifestando o interesse. Os únicos pré-requisitos são: 1)ter nacionalidade brasileira e 2)contar com ao menos um livro publicado no currículo (o estatuto da entidade fala que o volume deve apresentar "valor literário", mas outras "obras de reconhecido mérito" são também aceitas). Indicados os concorrentes, a definição do(a) vencedor(a) acontece por meio de escrutínio secreto. Vence aquele(a) que obtiver maioria simples. O colégio eleitoral resume-se aos(às) integrantes já estabelecidos(as) e empossados(as).

Tranquilo, não?

Contudo, entre a inscrição e o resultado, há uma longa campanha. Ou seja, é preciso pedir votos.

Em 1940, Oswald de Andrade se candidatara. Enviou correspondência feroz a cada um dos membros. Começava assim ¹:

"Será Vossa Senhoria uma das raras inteligências desse Grêmio que compreendem a atual situação do mundo, e, portanto, a da própria Academia? […] Ou será Vossa Senhoria daquelas teimosas velhas de Botafogo que ainda acreditam no pavoneio dos títulos literários, roubados aos verdadeiros trabalhadores da cultura?”

E terminava: "O futuro julgará essa eleição mais do que essa eleição me julgará".

O autor do Manifesto Antropófago errou na previsão. A instituição, nos anos seguintes, não deu mostras de desmoronamento por não escolhê-lo (penso até que se reforçou ao optar por Manuel Bandeira, um poeta incomparavelmente melhor). Isso não quer dizer que a Academia Brasileira de Letras não está perdendo o bonde da História, como disse Conceição Evaristo no programa Roda Viva. Voltarei à escritora mais adiante.

Fundada em 1897, a ABL demorou 80 anos para eleger uma mulher (Rachel de Queiroz). Um artigo de seu regimento interno inclusive restringia a eleição a "brasileiros do sexo masculino" e só foi alterado em 1976 (atualmente, os homens ocupam mais de 80% das cadeiras). Além desse passivo androcêntrico, digamos assim, foi ínfimo, ao longo dos anos, o número de afrodescendentes entre seus quadros. 

O crítico literário, poeta e ensaísta Antônio Carlos Secchin, atual ocupante da cadeira 19, afirma que "a representatividade é bem-vinda, mas não pode ser pré-requisito, pois não há cotas [...] Na história da ABL, registram-se acadêmicos negros, gays, registra-se, muito tardiamente embora, a presença de mulheres. Convivem representantes de todos os gêneros literários. Esperamos que essa representatividade ainda se amplie, não por gesto paternalista de benevolência, mas pela qualidade intrínseca dos candidatos.". Segundo ele, também se considera para a escolha que o(a) novo(a) membro eleito(a) "desejavelmente enseje um convívio harmônico, pois será vitalício".

No seu valor de face, a frase "não há cotas" (na ABL) é verdadeira, mas - e posso estar completamente errado na avaliação - vejo nela uma necessidade de bravatear independência. Parece uma tática diversionista. Os problemas da ABL, segundo penso, não se restringem à baixíssima diversidade de representação, um fato inegável. Eles tem a ver com dois outros pontos das declarações de Secchin: a suposta "qualidade intrínseca dos candidatos" e o preceito (não sei se regimental) do "convívio harmônico".

Convenhamos, quantos não se tornaram "imortais" apenas por serem endinheirados, influentes ou bem relacionados com o poder? Ao longo dos anos, poetastros inexpressivos, romancistas fracos, médicos, advogados e jornalistas não mais que medianos (mas cheios de si), políticos buscando lustre (incluindo associados à ditadura militar), não tiveram qualquer dificuldade para serem escolhidos. "Qualidade intrínseca dos candidatos"? Difícil de engolir... Quanto ao tal "convívio harmônico", os acadêmicos não ficam confinados ao estilo BBB e creio que não moram no Petit Trianon. Encontram-se, eventualmente, duas vezes por semana e noutras ocasiões extraordinárias. Qual o problema se houver algum desentendimento? A instituição não sabe lidar com a divergência?

Quando Conceição Evaristo aceitou se candidatar em 2018 (após petições na web), seu gesto foi carregado de significação política (no amplo sentido da palavra), assim como foram as recusas em concorrer de Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade, décadas antes. Ela não procurou adular os(as) integrantes da ABL, nem sequer enviou comunicados pessoais a eles(as), expediente usual na pequena confraria. Nélida Piñon e Ignácio de Loyola Brandão ficaram amuados (quase todos os outros também, já que Evaristo só obteve um voto favorável). A candidata deveria ter "contatado, visitado os acadêmicos", reclama Piñon. "Ela forçou sua candidatura, não cumpriu nenhum ritual, nada de nada, como se fosse necessário dar-lhe um lugar", queixa-se o autor de Não verás país nenhum (um livro, aliás, de que gosto muito).

Não sei você, eventual leitor(a), mas grande parte das escolhas da instituição, para mim, tem menos a ver com possíveis valores literários, artísticos e culturais e mais com louvaminhas e compadrio. 

Apesar da notoriedade que ainda a circunda, a Academia Brasileira de Letras dificilmente conseguirá desembaraçar-se de seus anacronismos. E o fardão cafona nem é o pior deles.

Há em seu estatuto, por exemplo, a exigência de que 25 dos 40 ocupantes de cadeira possíveis sejam residentes no Rio de Janeiro, algo que até fazia sentido no final do século XIX, quando a cidade era o centro político e econômico do país, não existia transporte aéreo e a comunicação via internet não era sequer sonhada, mas essa obrigação é perfeitamente dispensável hoje. Entende-se que a ABL tenha muito apego a tradições, mas por que não ampliar o número de eleitores, tendo em conta as muitas mudanças demográficas, educacionais, socioeconômicas e culturais ocorridas desde a sua fundação? (Se não for o caso de aumentar o número de cadeiras, por que não formar um conselho, composto, sei lá, de professores universitários ou outros estudiosos, cujo posicionamento teria algum peso nas votações ou nas indicações de candidaturas?). Sendo sua missão "a cultura da língua e da literatura nacional", não é muito claro qual o papel da entidade em relação à produção de escritores(as) jovens e ao fomento da leitura.

Buscando poupá-la de críticas, alguns de seus membros fazem questão de lembrar que a ABL não é pública (e, portanto, seria livre para formular suas próprias normas). De fato, trata-se de entidade privada sem fins lucrativos, cujos recursos advêm principalmente dos rendimentos oriundos de aluguéis de imóveis, com destaque para o edifício localizado ao lado do Petit Trianon. Também há o apoio da Light e da Vale e, esporadicamente, de outras empresas. O que não muda o desejo (oculto ou escancarado) de muitos de seus membros - vivos ou falecidos - de serem vistos e lembrados como glórias nacionais reverenciadas pelo povo ("Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem/Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?", para lembrar os famosos versos de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos).

Apesar de reprovar a Academia Brasileira de Letras em muitos aspectos, acho que ela tem uma tarefa a cumprir, principalmente num país tão clivado como o nosso, com tantos problemas educacionais (o que se reflete nos hábitos e disposições de leitura da população). A existência de instituições de consagração, bem como a de prêmios literários, malgrado suas falhas, têm a importante função de balizar determinado campo da cultura e da arte e atrair a atenção de pessoas que usualmente não se reconhecem nele (daí a relevância da candidatura de Conceição Evaristo em 2018 e a de Daniel Munduruku neste ano). 

Para finalizar: se é acabrunhante saber que José Sarney e Merval Pereira (cáspita!) integram a ABL, por outro lado é gratificante que também estejam lá intelectuais pelos quais tenho profundo respeito (Evanildo Bechara, Alberto da Costa e Silva, Sérgio Paulo Rouanet, o acima mencionado Antonio Carlos Secchin) e outros que, além de respeitar, também admiro (Lygia Fagundes Telles, Antonio Cicero, Ana Maria Machado e o recém-chegado Gilberto Gil).
     
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¹ O beija-mão na Academia Brasileira de Letras. Revista Época. 29 mar. 2018 [Matéria assinada por Marcelo Bortoloti]. Disponível em: https://epoca.oglobo.globo.com/cultura/noticia/2018/03/o-beijamao-na-academia-brasileira-de-letras.html. Acesso em: 03/12/2021. 

² O que é imortal: com silêncio e mistério, começa campanha para vagas na ABL. TAB Uol. 12 set. 2021 [Matéria assinada por Mateus Araújo]. Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2021/09/12/rito-de-imortal-com-silencio-e-misterio-comeca-campanha-para-vagas-na-abl.htm . Acesso em 03/12/2021. Todas as declarações de membros da ABL citadas aqui  foram extraídas dessa reportagem.

BG de Hoje

Catavento e girassol, parceria do violonista GUINGA com ALDIR BLANC, é uma canção que consegue, como poucas, reunir sofisticação e despojamento. Linda demais. E que tem na interpretação da LEILA PINHEIRO sua versão definitiva.


segunda-feira, 29 de novembro de 2021

A dependência do mal

Acho que sei por que uma pessoa religiosa com quem topei outro dia fez questão de mencionar, em tom triunfante, uma frase famosa de José Saramago. 

Numa entrevista, o escritor português dissera: "Não sou um ateu total. Todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não encontro".

"Tá vendo?"- volveria em minha direção o crente ¹, se nossa conversa tivesse prosseguido - "Isso mostra que mesmo um ímpio obstinado como Saramago não tinha plena convicção do seu ateísmo e estava em busca de Deus"

Bem... É preciso fazer alguns reparos.

Pelo que posso depreender de outras falas de Saramago e de sua própria obra literária, a descrença do romancista foi marcada em parte pela rejeição de qualquer teodiceia: ou seja, a recusa de explicações/argumentações que tentem conciliar os males do mundo (tanto os sofrimentos decorrentes de fenômenos naturais, quanto as dores infligidas por seres dotados de consciência) com a hipótese improbabilíssima da existência de uma divindade suprema (onipresente, onisciente, onipotente, além de misericordiosa e amorosa, características costumeiramente atribuídas ao deus dos monoteísmos abraâmicos, especialmente no cristianismo).

Não é preciso procurar muito. Uma rápida olhada nos noticiários, um passeio pelas ruas ou mesmo - quem sabe? - uma vasculhada na própria família são suficientes para mostrar que há maldade em abundância por aí e se existe uma entidade divina, com todos os atributos acima descritos, ela não dá nenhum sinal de que pretende mudar o cenário. Obviamente, para defender uma teodiceia, pode-se sempre apelar para o plano de Deus e a inescrutabilidade de seus propósitos ou alegar que os seres humanos dispõem de livre-arbítrio. Mas não quero me demorar nessas questões.

Voltando à frase do escritor. Ao dizer que não é um "ateu total", Saramago, penso eu, estava apenas afirmando que precisava de evidências melhores para acatar tal divindade (não, versículos da Bíblia e do Corão ou relatos de milagres e exorcismos não têm qualquer valor como evidência nessa circunstância). Sabe o que funcionaria como prova incontestável? O fim instantâneo do flagelo dos refugiados mundo afora, por exemplo, e a cara de Deus, gigante, aparecendo no céu do Sudão, da Síria ou do Haiti, dizendo "Ficai-vos em paz e descansados! O padecimento findou! A partir de agora, estabelecer-se-ão todas as condições socioeconômicas e culturais para o fim de vossas migrações forçadas!". Ou poderia ser a remissão total do câncer em todos os pacientes (ou, vá lá, pelo menos em todas as crianças com a doença), num estalar de dedos, seguida de uma voz tonitruante, ouvida ao redor do planeta, falando: "Curei-vos a todos!". Pronto, tiro e queda. Que ateu atrevido conseguiria colocar isso em dúvida? Suponho que um ser supremo, onipresente, onisciente, onipotente, além de misericordioso e amoroso, realizaria tais proezas sem maiores dificuldades...

A condescendência desse Deus com o mal é um dos temas mais agudos de O Evangelho segundo Jesus Cristo.

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Em 1991, quando publicado pela primeira vez - e até alguns anos depois -, o romance foi repudiado por membros do clero e outros católicos graúdos em Portugal, a ponto de pressionarem o governo da época a não indicar o autor para o Prêmio Europeu de Literatura Aristeion ². Em protesto, Saramago decidiu sair do país e morar nas Ilhas Canárias, mais especificamente em Lanzarote, onde permaneceu até a sua morte em 2010.

Um narrador ocasionalmente debochado e um Filho de Deus bem menos divino e mais humano (mesmo ainda sendo capaz de dissipar tempestades apenas com palavras e transformar água em vinho do bom) encolerizaram diversos conservadores. Nessa versão de uma das mais conhecidas narrativas mitológicas de todos os tempos, Maria ficou grávida de seu primogênito pelo mesmo processo que todas ficavam (antes do advento da inseminação artificial, pelo menos) e Jesus viveu maritalmente com uma mulher (também chamada Maria) que deixara de ser prostituta em Magdala para acompanhá-lo. Isso foi considerado blasfemo e sacrílego pelos reacionários puritanos, sempre prontos a vituperar qualquer coisa relacionada a sexo. Entretanto, não tenho dúvida de que o público de mente mais aberta certamente comoveu-se com a bonita história de amor contada e com a firmeza ética do protagonista (foi o caso deste blogueiro).

Para os objetivos da postagem de hoje, vamos enfocar o antepenúltimo capítulo do livro.

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Um espesso nevoeiro se forma sobre o mar da Galileia (que é mais propriamente um imenso lago). Após se despedir de Maria Ma(g)dalena, Jesus, ao contrário dos outros atemorizados habitantes da cidade de pescadores onde vivia, conduz um barco para o meio da bruma. "Enfim, vou saber quem sou e para o que sirvo" ³ , dissera ele à mulher.

Ao chegar no meio do lago, Deus surge a bordo. Seu filho tem muitas interrogações. Ambos conversam. Jesus fala da "Legião" que expulsou de um homem ao chegar na terra dos gadarenos, observando que Deus, melhor do que ele, sabe que não se pode prever para onde vão os demônios banidos de um corpo. Deus então replica: "E por que hei-de eu saber dos assuntos do Diabo". Ora, o Todo-Poderoso tudo sabe. "Até certo ponto, só até certo ponto". E qual seria este? "O ponto em que começa a ser interessante fazer de conta que ignoro". A certa altura, o Diabo também sobe à embarcação (na figura do Pastor com quem Jesus trabalhou durante quatro anos apascentando um imenso rebanho de ovelhas e cabras). Na forma humana com que se apresentaram, "tirando as barbas de Deus, eram como gémeos", lê-se no romance. 

Inteira-se Jesus de sua missão: cumprir o papel de mártir, "que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé". Desse modo, diz Deus, "estou certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de séculos, embora tendo de lutar, eu e tu, com muitas contrariedades, passarei de deus dos hebreus a deus dos que chamaremos católicos, à grega", ou seja, deixando de ser adorado por um povo relativamente pequeno e passando a ser cultuado globalmente. Inteligente como é, Jesus faz a pergunta óbvia: por que é preciso o sofrimento de um mártir para atingir tal objetivo, sendo o Senhor capaz de tudo? Alega-se então um pacto inamovível entre os deuses, pois "nenhum deus gosta que venham fazer na sua casa aquilo que seria incorrecto ir ele fazer à casa dos outros". E como será o futuro após esse sacrifício? Formar-se-á uma Igreja, dita católica, "e os seus alicerces [serão] compostos de um cimento de renúncias, lágrimas, dores, torturas, de todas as mortes imagináveis hoje e outras que só no futuro serão conhecidas".

A seguir, Saramago relaciona, magistralmente, em ordem alfabética, os nomes de diversos indivíduos canonizados pelo catolicismo e que foram condenados à morte ao longo da história, expediente que ocupa quatro páginas daquela escrita compacta, própria do autor. 

Também haverá guerras em nome dessa fé ("porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino[...]", como está em Mateus, cap. 24, vers. 7, e também em Marcos 13.8 e Lucas 21.10). Acrescentem-se ainda o surgimento do Islã, as Cruzadas e a Inquisição.

E aqui vem o ponto alto do romance: todo esse martírio poderia ser evitado se Deus aceitasse a proposta do Diabo - perdoá-lo por ter-se rebelado. Mas tal não acontece:

 

"Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora. [...] Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro"


Imprescindível observar que obras como O Evangelho segundo Jesus Cristo (ou, lembrei-me agora, como A última tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis), apesar da resistência que enfrentaram (e que enfrentam em determinados grupos, mesmo hoje em dia), não têm por intuito serem provocações baratas e gratuitas. Através da revisitação de narrativas lendárias (o termo é empregado aqui sem intenção depreciativa) tão incrustadas na memória coletiva, o que se busca é desempenhar uma das mais nobres e cruciais funções da arte literária: refletir sobre a condição humana.

__________

¹ Já fiz esse esclarecimento noutras postagens, mas não custa reiterá-lo para evitar mal-entendidos: quando uso o termo crente tenho em mente o seguinte significado: "aquele que acredita em uma (ou várias) divindade(s)", em oposição ao termo descrente ou, simplesmente, ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa pela qual têm afinidade ou da qual fazem parte.

² O Aristeion, atribuído pela Comissão Europeia, vigorou entre 1990 e 1999. Hoje existe o Prêmio de Literatura da União Europeia (surgido em 2009), bastante diferente do Aristeion em vários aspectos. 

³ SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


BG de Hoje

Coerente com seu repertório habitual - canções compostas dentro dos diversos ritmos característicos do nordeste brasileiro -, MARIANA AYDAR (num dueto com CHICO CÉSAR) lançou este ano o single O futuro já sabia. Não dá pra resistir!


sábado, 13 de novembro de 2021

Arte: ganhos e perdas


Estética.

Eis, na minha opinião, uma das mais problemáticas e difíceis matérias de inquirição filosófica.

Não que eu esteja menosprezando o enredamento (às vezes, azucrinante) que caracteriza a ontologia em geral, ou a complexidade dos estudos desenvolvidos no âmbito da filosofia da mente - para ficar só nesses campos. Uma reflexão, porém, que durante muito tempo ancorou-se em noções como belo, beleza e gosto dificilmente chegará a consensualidades, ainda que (desde a segunda metade do século XIX, pelo menos) o conceito de arte e, principalmente, o sentido do fazer artístico tenham se alargado e não estejam mais tão subordinados àquelas noções. Além disso, critérios objetivos de análise não são a regra em se tratando da observação, recepção e fruição das obras de arte¹.

Mas não pretendo me aprofundar em teorias estéticas (até porque sou uma besta quadrada também neste tema, como já registrei aqui). 

Minha intenção é abordar uma questão que sempre pipoca na minha cachola ao refletir/falar sobre um certo tipo de produção artística e a relação desta com a grana ou, melhor dizendo, com o privilégio econômico, com o privilégio de classe social.

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Quando foi lançado, o filme Velvet Buzzsaw (2019 - direção de Dan Gilroy) não teve uma grande acolhida. Gosto dele, entretanto. Não é tão bacana quanto o primeiro trabalho de Gilroy como diretor (Nightcrawler, que recebeu aqui no Brasil o indevido título O abutre), mas tem lá suas qualidades. 

Todos os que querem lucrar com a recém-descoberta obra do recôndito pintor Vetril Dease acabam pagando com a própria vida. Esse ingrediente narrativo não foi muito eficaz para sustentar uma boa história de terror, mas Velvet Buzzsaw sai-se melhor quando olhado como sátira - é bom esclarecer, contudo, que não se trata de provocar risadas.

A primeira sequência já é suficiente para nos situar e apresentar os personagens essenciais da trama. Todos se encontram em uma grande exposição de artes plásticas em Miami. Perambulando por lá, está o influente crítico Morf Vandelwalt (interpretado pelo sempre competente Jake Gyllenhall). A certa altura, conversando com a marchand e galerista Rhodora Haze (interpretada por Rene Russo), ele para diante de uma escultura intitulada A Esfera. Surpreendido, sem ter como emitir uma opinião de pronto, a única pergunta que ele consegue formular é "Quanto custa?", ao que Rhodora retorque: "So much easier to talk about money than art" ["Tão mais fácil falar de dinheiro do que de arte"].

Noutra cena, quando os trabalhos revelados de Vetril Dease começam a gerar muito interesse nos compradores - mas as vendas podem fracassar em razão de um artigo desfavorável que Vandelwalt pretende publicar ao se dar conta da condição macabra das pinturas -, Rhodora Haze tenta esvaziar o estoque o mais rápido possível. A ambiciosa e, ao mesmo tempo, insegura Josephina (a atriz Zawe Ashton), sócia de Haze naquele momento, quer saber o porquê da pressa no negócio. E a galerista então responde: "We don't sell durable goods, we peddle perception. Thin as a bubble". ["Nós não vendemos bens duráveis, nós empurramos percepção. Fina como bolha". NOTA: Preferi traduzir o verbo peddle como empurrar. Poderia ser também vender - numa tradução mais literal, porém menos imaginativa -, o que diminuiria a significação da frase, que quer indicar, penso eu, a urgência da operação comercial].

Para formar essa percepção, aliás, a função de intermediários (marchands, críticos e outros especialistas) é essencial para a engrenagem. Afinal, sejamos honestos, não são muitos os indivíduos capazes de peneirar a produção contemporânea, ou seja, distinguir entre "boa arte" e "arte ruim", ou ainda, distinguir entre o que seria arte "de verdade" e aquilo que supostamente não passaria de embuste. Não tenho vergonha de admitir que não saberia estabelecer a diferença em inúmeros casos - como também não deve saber considerável parte dos ricos compradores, pessoas que adquirem peças na maioria das vezes apenas como forma de investimento (e até de lavagem de dinheiro).

Certamente para não ser acusado de retratar certos circuitos das artes como ambientes exclusivamente venais, o diretor e roteirista sugere que a redenção pode vir dos próprios artistas, representados no filme pelo pintor consagrado Piers (interpretado por John Malkovich) e o grafiteiro vindo da periferia, Darmish (o ator Daveed Diggs).

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"E certamente considerava a Vida como a primeira e a maior de todas as artes, em relação a qual as outras eram apenas uma simples preparação"
 ² . 

Esse parecer é do protagonista de O retrato de Dorian Gray. 

Na primeira vez que li o romance de Oscar Wilde, há muitos anos, não consegui deixar de lado minha antipatia pela fatuidade da alta sociedade vitoriana ali exibida, com destaque para Lorde Henry Wotton, cuja influência sobre o jovem Dorian Gray é determinante dentro do enredo. Apenas mais tarde, compreendi que toda aquela afetação e soberba - derivadas, a propósito, do status socioeconômico - eram indispensáveis para um melhor entendimento do livro e da concepção de arte ali exposta (Wilde não fez uma sátira, ainda que haja correspondências entre o autor e as três figuras principais da narrativa: Wotton, Gray e o pintor Basil Hallward).

Não importa quantas vezes eu volte a esse livro, há uma passagem que nunca deixo de considerar a mais marcante. No capítulo VI, os três personagens acima mencionados reúnem-se para jantar. Henry Wotton, como sempre, domina a conversa, com suas tiradas e epigramas. A certa altura, faz um elogio do prazer: "O prazer é a pedra de toque da Natureza, seu sinal de aprovação. Quando somos felizes, somos sempre bons, mas quando somos bons nem sempre somos felizes". Basil Hallward e, em seguida, Dorian Gray querem saber o que Wotton entende por ser bom

(Atenção, eventual leitor(a), para o excerto a seguir. É longo, 
mas necessito reproduzi-lo por inteiro para prosseguir em minha análise):

"-  Ser bom é estar em harmonia consigo mesmo - replicou [Henry Wotton], acariciando com seus finos dedos pálidos a delgada haste de sua taça. - E não o ser é ver-se forçado a estar em harmonia com os outros. A própria vida é a única coisa que importa. Quanto às vidas alheias, se alguém quiser ser pedante ou puritano, pode estender seu ponto de vista moralizador até elas, mas não nos dizem respeito. Além disso, o individualismo tem realmente o mais elevado objetivo. A moralidade moderna consiste em acompanhar o modelo da época. Considero, para qualquer homem culto, o simples fato de aceitar o padrão da época uma forma da mais indecorosa imoralidade.

- Mas, certamente, se as criaturas vivessem unicamente para si mesmas, Harry ³, deveriam pagar um alto tributo por isso - sugeriu o pintor.

- Realmente, hoje em dia, tudo são imposições. Acho que a verdadeira tragédia dos pobres está em que não podem viver senão de renúncias. Os belos pecados, como todas as coisas belas, são privilégios dos ricos.

- O pagamento não se faz só com dinheiro.

- Qual a outra maneira, Basílio?

- Oh! Imagino que com remorsos, com sofrimentos, com... bem, com a consciência da própria degradação".


Wotton desdenha do reparo feito por Hallward, que se valeria de "emoções medievais". Segundo o lorde, "nenhum homem civilizado jamais de arrepende de um prazer".

Observe, eventual leitor(a), que Henry Wotton primeiramente exalta o hedonismo; a seguir, faz inequívoca defesa do individualismo; e encerra sua breve palestra retomando o elogio da postura hedonista. Mais tarde, Dorian Gray colocará em prática essas "teorias", sem procurar refrear qualquer impulso, chegando, com sua malignidade, ao paroxismo do egoísmo, escudado no ajuste sobrenatural feito com a pintura para a qual serviu de modelo.

Preconizar o prazer e salvaguardar a liberdade individual eram também princípios caros ao próprio Oscar Wilde - que não foi um monstro como Dorian Gray. Nesse caso, as palavras do personagem ganham outra significação quando lembramos da homossexualidade do escritor e de que, no período em que vivera, tal orientação era vista como tabu e marca de degeneração (pense, por exemplo, no trecho "Considero, para qualquer homem culto, o simples fato de aceitar o padrão da época uma forma da mais indecorosa imoralidade"). Preciso lembrar a mim mesmo, entretanto, de uma das advertências feitas por Wilde no prefácio do livro publicado em 1891 :

"Toda arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Os que buscam sob a superfície fazem-no por seu próprio risco.

Os que procuram decifrar o símbolo correm também seu próprio risco.

Na realidade, a arte reflete o espectador e não a vida".

Voltemos a passagem do capítulo VI. 

A franqueza de Wotton é desconcertante: "Acho que a verdadeira tragédia dos pobres está em que não podem viver senão de renúncias. Os belos pecados, como todas as coisas belas, são privilégios dos ricos". Dorian Gray jamais poderia tornar sua própria vida, segundo ele, uma forma de arte (nesta acepção, experimentar e fazer de tudo, sem reprimir qualquer desejo ou ímpeto) se não fosse extraordinariamente rico. 

. . . . . . .

Velvet Buzzsaw, crítica à redução da arte (mais especificamente, das artes plásticas) a um empreendimento puramente mercantil em determinados círculos, faz emergir a interrogação: os envolvidos - negociantes, avaliadores, compradores - já não conseguem mais ver o valor (o significado) daquilo com que lidam e só têm olhos para os preços (em milhares e milhões de dólares)? No filme, a relação entre arte e grana é representada de forma crua e direta.

O retrato de Dorian Gray, texto considerado ultrajante para sua época, permite ser lido - entre suas várias possibilidades de interpretação - como a seguinte advertência: os muito ricos e os muito belos desfrutam de todas as vantagens, sem dúvida; ainda assim, não podem obter tudo o que querem. No livro, a relação entre grana e arte não é diretamente tematizada (nem poderia sê-lo, considerando a visão estética de Oscar Wilde). Mas qualquer leitor compreende que um programa como o formulado por Dorian Gray no capítulo XI (um dos momentos-chave dentro do romance), cuja "mais alta realização" seria "a espiritualização dos sentidos", nunca poderia ser executado por um indivíduo pobre, a quem só resta viver de renúncias.

___________

¹  Importante salientar que não estou renegando a importância da subjetividade como elemento valorativo e analítico, ainda mais em se tratando de arte; quero apenas dizer que discussões e debates, acredito eu, têm maiores chances de prosperar quando partimos de critérios objetivos. 

Não?

²  WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [Tradução de Oscar Mendes]. 
Todas as citações do livro incluídas nesta postagem foram extraídas dessa edição.

³  O personagem às vezes é chamado também pelo apelido Harry. A propósito, o tradutor optou por aportuguesar o primeiro nome do pintor (Basil = Basílio)

  A história saiu primeiro em uma revista (Lippincott's Monthly Magazine) em 1890. Um ano depois, com mais seis capítulos acrescentados, o livro foi lançado. O prefácio foi escrito como resposta àqueles que consideraram a narrativa imoral, o que não deixa de ser irônico: um dos sentidos de O retrato de Dorian Gray é nitidamente moralizante.

BG de Hoje

Vez ou outra, eu assisto a essa apresentação postada no Youtube - o rapper DENZEL CURRY, acompanhado de excelentes (repito, excelentes) músicos, fazendo um cover de Bulls On Parade, do RAGE AGAINST THE MACHINE. Como escreveu um perfil nos comentários do vídeo (são mais de 24 mil!), "It's tradition to come back once in a while to watch Denzel rip it up" ("É tradição voltar de vez em quando para assistir Denzel estraçalhar"). Uau, como esses caras conseguiram tornar melhor uma coisa que já era ótima? É nítido o prazer da banda e do rapper durante a performance. Mesmo não sendo instrumentista ou cantor, penso que a música é, provavelmente, a coisa mais jubilosa que um ser humano pode fazer junto com outro(s) ser(es) humano(s) - nem me venha objetar dizendo que sexo é melhor; acho-o superestimado (provavelmente, deve ser porque não o pratico há décadas...). Enfim, se você é fã de rock, confira o vídeo abaixo e diga se não é sensacional...


sábado, 23 de outubro de 2021

Falou e disse...

 "A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto da igualdade e da distinção. Se não fossem iguais, os homens não poderiam compreender uns aos outros e os que vieram antes deles, nem fazer planos para o futuro, nem prever as necessidades daqueles que virão depois deles. Se não fossem distintos, sendo cada ser humano distinto de qualquer outro que é, foi ou será, não precisariam do discurso nem da ação para se fazerem compreender. Sinais e sons seriam suficientes para a comunicação imediata de necessidades e carências idênticas.

A distinção humana não é idêntica à alteridade - à curiosa qualidade da alteritas, comum a tudo que existe e que, por conseguinte, para a filosofia medieval, é uma das quatro características básicas e universais do Ser, transcendendo toda qualidade particular. A alteridade é, sem dúvida, aspecto importante da pluralidade, a razão pela qual todas as nossas definições são distinções, pela qual não podemos dizer o que uma coisa é sem distingui-la de outra. Em sua forma mais abstrata, a alteridade está presente somente na mera multiplicação de objetos inorgânicos, ao passo que toda vida orgânica já exibe variações e distinções, inclusive entre indivíduos da mesma espécie. Só o homem, porém, é capaz de exprimir essa distinção e distinguir-se, e só ele é capaz de comunicar a si próprio e não apenas comunicar alguma coisa - como sede, fome, afeto, hostilidade ou medo. No homem, a alteridade, que ele partilha com tudo o que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo o que vive, tornam-se unicidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres únicos".  *

ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. p. 219-220 [Tradução de Roberto Raposo e revisão técnica de Adriano Correia]

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Sobre a propalada "cultura do cancelamento"

[Postagem atualizada em 13/10/2021]


Penso que o chamado cancelamento às vezes mostra-se pouco razoável em virtude de excessos cometidos por uma parte dos(as) adeptos(as) da prática ¹.

Em alguns casos - friso, em alguns casos -, certas pessoas a serem canceladas não são suspeitas/acusadas de agressão, crime sexual ou crime contra a vida, não difamaram, não caluniaram, não insultaram, não mentiram, não ameaçaram outrem, não promoveram discurso de ódio. Essas pessoas também não exorbitaram no seu direito à liberdade de expressão. Em alguns casos, o que esses indivíduos fizeram foi apenas realizar um ato, dizer algo ou manifestar uma opinião que está fora de um regimento bastante específico e não compartilhado - mas seguido de forma estrita - pelo(a) zeloso(a) "cancelador(a)".

O resultado é que, em várias ocasiões, interdita-se o debate, mesmo entre indivíduos que compartilham visões de mundo bem próximas e que defendem compromissos éticos similares. Isso sem falar no opróbrio que pode atingir a pessoa cancelada, ainda que ela não tenha - repito - sido acusada/considerada suspeita de agressão, crime sexual ou contra a vida, difamado, caluniado, insultado, mentido, ameaçado outrem, promovido discurso de ódio ou exorbitado no seu direito à liberdade de expressão. NOTA: Isto posto, não estou alheio à velhacaria de determinados jornalistas, políticos, influenciadores digitais e até acadêmicos que, com desonestidade intelectual (e, não raro, má-fé), contaminam o debate público apenas para vencer a disputa ideológica.

Na contemporaneidade, é magnífico que vozes até então impedidas de falar e comunidades tornadas invisíveis por opressões diversas consigam ser ouvidas e reconhecidas no espaço público (e é preciso admitir o papel das mídias sociais nesse processo). É formidável também que o trabalho organizado de ativistas consiga, às vezes, fazer com que celebridades, políticos e até grandes empresas com enorme poder sejam mais responsáveis e conscientes em suas ações e declarações ². Entretanto, a disposição para o "cancelamento", uma das resultantes desse ativismo, pode estar fazendo com que a livre troca de informações e ideias se torne mais restrita, como afirmam os signatários daquela famosa (e duramente criticada) Carta sobre justiça e debate aberto , publicada em julho de 2020 (entre os que a assinam, destaco Noam Chomsky, Margaret Atwood e Salman Rushdie). "Embora esperemos isso da direita radical [a restrição da livre troca de informações e ideias], a censura também está se espalhando mais amplamente em nossa cultura: uma intolerância a pontos de vista opostos, um furor para a vergonha pública e ostracismo e a tendência de dissolver questões políticas complexas em uma certeza moral cegante", lê-se em determinado trecho.

Esse, aliás, é um dos aspectos que mais me deixa agastado às vezes com a propalada "cultura do cancelamento": o(a) "cancelador(a)" não duvida nem por um segundo da sua superioridade (pior, da sua infalibilidade) moral em relação a toda e qualquer pessoa que não se ajuste (nem que seja só um pouco) ao seu regimento.

Eu havia escrito e publicado um texto sobre esse tema no ano passado. Decidi excluí-lo, porém, porque não me agradou. Aí, no último domingo, dei de cara com esta excepcional crônica de Antonio Prata, publicada na Folha de S. Paulo. Tenho obrigação de reproduzi-la aqui, pois retrata bem um pouco do que penso sobre o assunto.

(Obrigado mais uma vez, Antonio Prata, um dos pouquíssimos motivos que me fizeram voltar a assinar o deplorável jornal da família Frias)


CANCELAMENTOS POSSÍVEIS
Tudo abaixo é ficção; menos, talvez, a última frase
Antonio Prata


J. foi o primeiro antropólogo a traduzir os fundamentais cânticos fúnebres da língua Baruna. Num debate entre J. e o pajé Wa’am’biipi, parte da comemoração pela demarcação das terras Baruna —vitória para a qual os trabalhos e o ativismo do antropólogo não podem ser desconsiderados—, alguém gritou da plateia: “usurpador!”. Tratava-se de M., membro da bancada ativista de São Joaquim D´Oeste. Segundo M., receber os louros pela tradução de uma obra indígena e comemorar a demarcação ao lado do pajé fazia de J. a versão intelectual dos Pizarros, dos Cortéses, dos Pedro Álvares Cabrais, um “neoextrativista dos bens culturais ameríndios”.

Em alguns meses, a campanha “antitradução”, corrente segundo a qual apenas um membro de sua própria etnia, aprendendo uma língua alheia, poderia verter para ela seu idioma, levou J. de herói a facínora. J. foi afastado da faculdade. Seus artigos encomendados por publicações acadêmicas foram cancelados.

Com o caso J., M. acabou ficando bombadinho nas redes e foi filmado numa praça batendo boca com a namorada. Surgiu então uma campanha barulhenta exigindo a expulsão de M. da bancada ativista de São Joaquim D´Oeste, pois tratava-se de um “machistx em pelx dx cordeirx”. “Trata as mulheres com a mesma opressão colonialista que finge combater! Lixo humano!”.

M. e a namorada, com quem tinha feito as pazes na mesma tarde, na mesma praça, acharam que seria uma boa estratégia divulgar a foto dos dois num sex-shop, segurando uma cinta peniana, com a qual, revelariam, ela costumava penetrá-lo. Provariam, assim, o quanto M. estava, “através da desdomesticação heteronormativa colo-colonial”, engajado “na subversão dos afetos patriarcais”.

O brinquedo erótico, porém, tinha tiras de couro e suscitou a ira de ativistas veganos, que lançaram nas redes montagens de imagens do casal sobrepostas a de bois ensanguentados em matadouros, trespassados por enormes cintas penianas. Uma semana depois, toda a bancada ativista de São Joaquim D´oeste renunciou ao mandato — dando mais espaço, aliás, para a vereança ruralista, dona dos abatedouros.

Nas redes, os ruralistas chamaram M. de homossexual. M. disse que, se fosse, seria feliz, pois na Grécia clássica e em Roma, por exemplo, relações sexuais entre homens não eram nenhuma vergonha, eram motivo de orgulho.

M. certamente não estava à par das últimas polêmicas sobre o período clássico. Como era comum, àquela época, homens feitos terem relações sexuais com mancebos, Sócrates, Platão, Aristóteles, Ésquilo, Sófocles, Aristófanes e companhia não passavam de pedófilos, abusando de menores “no gozo perverso do privilégio gerontocrático”. Gregos e latinos foram cancelados.

Há quem diga que as únicas obras dignas de mérito em toda a história do pensamento são os livros da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Uma tendência mais recente, contudo, contesta Chimamanda ferozmente, por ter se mudado para os Estados Unidos e escrever em inglês, não em uma das 510 línguas atualmente faladas no país africano. “Feminista e antirracista sendo filha de professor universitário e ganhando em dólar, é fácil”, escreveu um membro do movimento #fuckfakeafrican —em seu iPhone, nos Jardins. “Mas e as mulheres que ficaram na Nigéria? As que não têm o auxílio imperialista de uma Chimamanda? O palanque etnocêntrico de um J.? O privilégio machista e especista de um M.? Todo o lobby branco dos gregos e latinos? Quem as lê? Quem as enxerga, sequer?”.

A. escrevia na Folha de S. Paulo, até que.

__________

¹ Sendo realista, contudo, não acredito que haja um número expressivo de indivíduos engajados, metódica e sistematicamente, no tal cancelamento, como se se tratasse de ações orquestradas (não me surpreenderia, porém, se isso acontecesse eventualmente). Em resumo: vejo a "ação de cancelar" mais como uma disposição do que como um procedimento calculado.

² Essa passagem me faz recordar uma postagem que publiquei aqui no Besta Quadrada em 2016, defendendo o chamado politicamente correto: Não se pode esquecer que somos seres de linguagem: discutindo o politicamente correto.

BG de Hoje

"What do they want from me?/They never told me the failure I was meant to be"
Sem mais a acrescentar.
SLIPKNOT, People = Shit

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Prosseguir? Sim... mas...


Estive relendo Angústia nos últimos dias (romance sobre o qual já escrevi aqui e aqui).

Não estava na "ordem de prioridades". Há uma pilha de volumes - lidos ou relidos parcialmente, outros nem sequer começados - que intencionava dar conta antes. Alguns, inclusive, seriam discutidos aqui no blog.

Mas senti que precisava voltar àquele livro de Graciliano Ramos mais uma vez.

Já disse anteriormente que tenho grande identificação com o personagem-narrador Luís da Silva. Tal como ele, não passo de um desiludido, rancoroso e ordinário servidor público, marcado por veleidades literárias e intelectuais.

O fechamento de Angústia expõe o que se passa na cabeça de Luís da Silva, quando este se encontra num estado de letargia, em que renitentes lembranças e memórias de outras fases de sua vida manifestam-se, oniricamente. Essa espécie de delírio, se assim podemos dizer, é, aliás, a mesma da qual o personagem está se desprendendo no início do romance, saindo de um longo período de prostração - é quando nós, os leitores do romance, nos damos conta de que os principais episódios constituintes do enredo do livro já tinham acontecido quando o texto efetivamente principia.

Formando um só fluxo que preenche quase dez páginas, a divagação começa assim:

"A réstia descia a parede, viajava em cima da cama, saltava no tijolo - e era por aí que se via que o tempo passava. Mas no tempo não havia horas. O relógio da sala de jantar tinha parado. Certamente fazia semanas que eu me estirava no colchão duro, longe de tudo. Nos rumores que vinham de fora, as pancadas dos relógios da vizinhança morriam durante o dia. E o dia estava dividido em quatro partes desiguais: uma parede, uma cama estreita, alguns metros de tijolo, outra parede. Depois a escuridão cheia de pancadas, que às vezes não se podiam contar porque batiam vários relógios simultaneamente, gritos de crianças, a voz arreliada de d. Rosália, o barulho dos ratos no armário dos livros, ranger de armadores, silêncios compridos. Eu escorregava nesses silêncios como numa água pesada. Mergulhava neles, subia e descia ao fundo, voltava à superfície, tentava segurar-me a um galho. Estava um galho por cima de mim, e era-me impossível alcançá-lo. Ia mergulhar outra vez, mergulhar para sempre, fugir das bocas da treva que me queriam morder, dos braços da treva que me queriam agarrar".

E, no finalzinho, uma das frases que se lê é:

     "Eu era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado para não molestar as outras".

Tenho pra mim que Luís da Silva não seria tão angustiado - e nem teria cometido o crime narrado na obra - se realmente aceitasse o fato de ser uma "figurinha insignificante". Caso aceitasse, teria êxito em "fugir das bocas" e "dos braços da treva"

Figuras como o personagem de que estamos falando (e como este blogueiro), a despeito da sua nulidade, são paradoxalmente pretensiosas. Em algum momento de suas vidas, acreditaram ser, de algum modo, inteligentes. Isso as torna particularmente nocivas ou, na melhor das hipóteses, simples covardes. De uma forma ou de outra, são incapazes de agir com grandeza, o que não quer dizer que sejam torpes o tempo inteiro. 

É como se não soubessem dar valor a nada e, portanto, são figuras inaptas para construir qualquer coisa - carreira, algum patrimônio modesto ou até mesmo relacionamentos. "[...] as minhas mãos são fracas, e nunca realizo o que imagino", diz para si mesmo, a certa altura, Luís da Silva.

Você, visitante desavisado, talvez não saiba, mas este Besta Quadrada (que nada me rende e que não tem leitores) é minha única realização. Vejo, contudo, que estou estagnado, escorregando em "silêncios compridos", como se estivesse mergulhado "numa água pesada".

Tenho que prosseguir, suponho. Afinal, é minha única realização, não é? Mas qual rumo tomar?

. . . . . . .


A estagnação também tem a ver com um outro ponto.

Semanas atrás, li a postagem inaugural do blog criado este ano por Edward Snowden, que me fez refletir muito sobre as possibilidades de debate na atual conjuntura histórica. Em Lifting The Mask, o ex-analista da CIA e da NSA observa que o controle/acesso de dados e informações pessoais de milhões de indivíduos, antes nas mãos de entidades governamentais destinadas à vigilância (e, por conseguinte, repressão), hoje é o principal capital de corporações privadas (e, por conseguinte, fonte de lucro para elas). 

E onde chegamos com isso? Escreve Snowden:

"This is the reality of the fully commercialized mainstream internet: our exposure to an indigestible mass of shortest-form opinions that are purposefully selected by algorithms to agitate us on platforms that are designed to record and memorialize our most agitated, reflexive responses. These responses are, in turn, elevated in proportion to their controversy to the attention — and prejudice — of the crowd. In the resulting zero-sum blood sport that public reputation requires, combatants are incentivized to occupy the most conventionally defensible positions, which reduces all politics to ideology and splinters the polis into squabbling tribes. The products of the irreconcilable differences this process produces are nothing more than well-divided 'audiences', made available to the influence of advertisers, and all that it cost us was the very foundation of civil society: tolerance". ¹

Afetando milhões de seres humanos, a intersubjetividade dos nossos dias é altamente influenciada pelas mídias sociais ou aplicativos de mensagens instantâneas (como o WhatsApp, por exemplo). Como está bem assinalado acima, as empresas detentoras dessas plataformas, através dos algoritmos lá presentes, têm interesse, sobretudo, em nossas manifestações "mais enervadas e por reflexo", ou seja, raivosas e irrefletidas. Gera-se assim uma segmentação - ideal para os anunciantes -, com " 'audiências' muito bem divididas", nem que para isso a ideia de tolerância tenha que ser sacrificada.

Mas Snowden tem algo a propor:

"For this reason, I'd like to do my part in encouraging a return to longer forms of thinking and writing, which provide more room for nuance and more opportunity for establishing consensus or, at the very least, respecting a diversity of perspective and, you know, science.

I want to revive the original spirit of the older, pre-commercial internet, with its bulletin boards, newsgroups, and blogs — if not in form, then in function". ²

"Formas mais longas de pensar e escrever"... Pode ser uma boa maneira de se contrapor a memes inconsequentes, fake news e outras formas de comunicação bastante velozes e curtas, porém, na mesma proporção, superficiais, mentirosas e promotoras de ódio, formas essas cada vez mais impregnadas no debate público, deixando de proporcionar "espaço para nuances" e para perspectivas menos simplistas.

Tudo dito, qual rumo dar a este Besta Quadrada, que é, entre outras coisas, minha tentativa - pretensiosa, não vou negar - de contribuir com o debate público?

É essa a pergunta que estou tentando responder nos últimos dois meses. Ainda tenho dúvidas, que talvez não sejam dirimidas nas próximas semanas. 

Por isso, enquanto reflito sobre possíveis mudanças, não haverá atualizações por aqui.

Retornarei ainda este ano, contudo.

__________

¹ [Tradução aproximada: Esta é a realidade da internet mainstream inteiramente comercializada: nossa exposição a uma massa de opiniões na sua forma mais curta, indigesta, que são propositalmente selecionadas por algoritmos para nos agitar em plataformas que são projetadas para gravar e manter vivas nossas respostas mais enervadas e dadas por reflexo. Essas respostas são, por sua vez, elevadas na proporção de sua controvérsia para a atenção - e preconceito - da multidão. No resultante esporte sangrento de soma zero que a reputação pública exige, os combatentes são incentivados a ocupar as posições mais convencionalmente defensáveis, o que reduz toda a política à ideologia e divide a pólis em tribos em disputa. Os produtos das irreconciliáveis diferenças desse processo nada mais são do que "audiências" muito bem divididas, tornadas disponíveis para a influência dos anunciantes e tudo o que nos custou foi o próprio fundamento da sociedade civil: a tolerância]

² [Tradução aproximada: Por esse motivo, eu gostaria de fazer minha parte encorajando um retorno para formas mais longas de pensar e escrever, que proporcionem mais espaço para nuances e mais oportunidade para estabelecer consensos ou, pelo menos, respeitar a diversidade de perspectiva e, sabe, ciência.

Eu quero reviver o espírito original da internet mais velha e pré-comercial, com seus quadros de boletins, grupos de notícias e blogs - se não na forma, então na função]

BG de Hoje

Estou ciente do tremendo clichê que é dizer isso, mas lá vai: no derradeiro fim - seja o Jeff Bezos, seja uma pobre mulher favelada que labuta diariamente para criar os filhos -, todos seremos carregados pela morte, "feito um pacote", como cantou BELCHIOR em Pequeno perfil de um cidadão comum, belíssima canção composta em parceria com Toquinho. Isso, porém, não é um consolo, em absoluto. Sempre achei estranha a expressão "vencer na vida", sobretudo porque, para a maioria de nós, o único papel que nos cabe é dizer "sim aos seus [nossos] senhores infalíveis".

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Falou e disse...

 

"Se não tivéssemos declarado boas as artes e inventado essa espécie de culto do não-verdadeiro: a compreensão da universal inverdade e mendacidade, que agora nos é dada pela ciência - a compreensão da ilusão e do erro como uma condição da existência que conhece e que sente -, não teria podido ser tolerada. [...] Nem sempre proibimos nosso olho de arredondar, de fingir até o fim: e então não é mais a eterna imperfeição que portamos sobre o rio do vir-a-ser - então pensamos portar uma deusa e somos orgulhosos e infantis nessa prestação de serviço. Como fenômeno estético, a existência é sempre, para nós suportável ainda, e pela arte foi-nos dado olho e mão e antes de tudo a boa consciência para, de nós próprios, podermos fazer um tal fenômeno. Temos de descansar temporariamente de nós, olhando-nos de longe e de cima e, de uma distância artística, rindo sobre nós ou chorando sobre nós: temos de descobrir o herói, assim como o parvo, que reside em nossa paixão do conhecimento, temos de alegrar-nos vez por outra com nossa tolice, para podermos continuar alegres com nossa sabedoria! E precisamente porque nós, no último fundamento, somos homens pesados e sérios e somos mais pesos do que homens, nada nos faz mais bem do que a carapuça de pícaro: nós precisamos usá-la diante de nós próprios - precisamos usar de toda arte altiva, flutuante, dançante, zombeteira, pueril e bem-aventurada, para não perdermos aquela liberdade sobre as coisas que nosso ideal exige de nós". *

 

* NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. In: _______________. Obras incompletas. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 197-198 [Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho] (Coleção Os pensadores)

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Nem tudo precisa ser ruim o tempo todo


Um número considerável de pessoas ficou com bastante tempo livre no ano passado, decorrente da observância (mais rigorosa para alguns, mais descuidada para outros) do distanciamento social.

Uma delas era eu.
 
No trabalho, fui colocado em regime de sobreaviso, da penúltima semana de março até o último dia de agosto. Felizmente, não tive redução nem suspensão de salário, apenas não recebi o vale-refeição (fez falta, viu). 
 
Nesse ponto, tenho que admitir que estava em condição privilegiada. Todos sabemos que um sem-número de trabalhadores teve descontos pesados na remuneração, além de outra imensidão de gente que perdeu o emprego. Sem falar nos informais, impossibilitados de ganhar algum em ruas onde a circulação de pessoas já não era a mesma dos dias normais.

Nunca a proposta de uma renda básica universal pareceu tão razoável quanto nessa crise provocada pela COVID.

Falávamos, porém, do tempo livre.

Gosto de TV. E, sempre que posso, assisto sem qualquer moderação. É um passatempo relativamente barato e acessível. Além do mais, não tenho vida social (expressão menos crua que as pessoas usam para evitar dizer que não têm amigos(as) com quem sair, nem encontram parceiras(os) sexuais). Nesse aspecto, a pandemia teve pouquíssimo efeito sobre mim. Muitos não aceitaram bem ter que ficar apartados. A minha casca, entretanto, já está um bocado grossa para lamentar distanciamentos.

Embora concorde que a programação televisiva merece muito da reprovação que lhe é dirigida (sobretudo pela turma mais intelectualizada), continuo com a opinião de que a TV deve ocupar-se em oferecer apenas entretenimento. Como já escrevi aqui, não é razoável esperar que a TV tenha um papel educativo, no sentido rigoroso. Sei que isso não é aplicável a todos, mas, quando estou em busca de profundidade, leio um livro ou vou a um museu. E se intenciono ficar bem informado, sou assinante de um ótimo jornal online (Nexo) e apoio uma excelente agência de jornalismo investigativo (Agência Pública). Após um cansativo dia de trabalho, todavia, tudo que quero é o descompromisso de um blockbuster ou a agitação controlada de uma partidinha de basquete ou de vôlei.

Além disso, é injusto colocar todos os produtos de entretenimento no mesmo balaio.

Reconheço que a TV exibe muita merda (os canais abertos, principalmente, mas os pagos também têm lá o seu quinhão de lixo). O entretenimento de boa qualidade, contudo, não está tão em falta como se alardeia.

. . . . . . .

Nem de longe posso me considerar um consumidor habitual de séries. Antes de começar a assisti-las, sempre me faço a mesma pergunta: "será que estou realmente disposto a investir tempo nesse troço?". Já perdi a conta dos títulos em que empaquei, não exatamente porque não tenha gostado, mas porque me deu uma certa preguiça (por exemplo, até hoje não passei do 3º episódio da 1ª temporada de Stranger Things e - para citar uma mais recente - estaquei no meio da temporada inaugural da japonesa Alice In Borderland).

Como não costumo ter a disposição requerida para me "dedicar" a uma série, geralmente escolho o que assistir a partir do gênero. Prefiro as comédias, muito embora seja um sujeito mal-humorado. Certamente gosto de outros tipos de produção (como, por exemplo, a ótima ficção científica The Expanse, na Amazon Prime Video, ou o drama Goliath, também no mesmo serviço de streaming, e, claro, Mr. Robot, outra série dramática, minha predileta - sobre a qual já escrevi aqui -, exibida no canal Space anteriormente e hoje disponível no catálogo da Amazon ¹). No geral, porém, opto por seriados cômicos (pretendo escrever, mais para diante, uma postagem sobre isso).

E duas comédias sensacionais, cada uma a seu modo, tornaram alguns daqueles dias com fartura de tempo livre mais aprazíveis ainda. Falo de Brooklyn Nine-Nine e The Good Place.

Ambas as séries tem o dedo do talentoso roteirista e produtor Michael Schur.

Brooklyn Nine-Nine ganhou os noticiários um tempinho atrás quando os fãs se mobilizaram através das mídias sociais para tentar evitar o cancelamento do programa, que era produzido pela Fox. 
 
Funcionou. 
 
A NBC decidiu dar continuidade e mais duas temporadas foram realizadas. Este ano vai ao ar a última, com apenas 10 episódios. Na TV por assinatura, assisti algumas vezes na TBS e na TNT. Recentemente estava, no Warner. No meu período de sobreaviso pude "maratonar" com tranquilidade, pois faz parte também do catálogo da Netflix.

Por que acho a série tão boa?

Porque, sem ter que inventar moda, ela usa muito bem um dos elementos mais importantes da comédia: o ritmo. A transição de cenas é formidável. As aberturas (cold opens), às vezes, são de rolar de rir, como essa abaixo, que ficou famosa: 
 

Além disso, percebe-se o cuidado dos roteiristas com cada uma das figuras centrais (algo visto também em outro trabalho de Michael Schur que eu adoro, Parks And Recreation) e há ótimos atores. Andre Braugher (que interpreta o capitão Raymond Holt), Joe Lo Truglio (detetive Charles Boyle) e Stephanie Beatriz (detetive Rosa Diaz) são os destaques, em minha opinião. Em relação aos personagens, as que mais me divertem são a secretária Gina Linetti, uma das preferidas do público (interpretada pela comediante Chelsea Peretti), e a já citada Rosa Diaz.

Tenho certeza de que vou continuar assistindo e me divertindo com Brooklyn Nine-Nine ao longo da vida, independentemente de quantas vezes já tenha visto determinado episódio (do mesmo jeito que faço, por exemplo, com Seinfeld, embora seja um outro estilo de humor). 
 
 
Devo dizer, porém, que não me lembro de sentir tanto contentamento com um programa de TV quanto senti ao assistir The Good Place. 
 
Sem receio de exagerar, é das coisas mais inteligentes, engraçadas e enternecedoras que já vi.

Em 2016, o frisson em torno da atração (produzida e exibida nos EUA pela NBC) já era percebido aqui no Brasil através da web.

Quando a Netflix (detentora dos direitos de distribuição internacional do programa) incluiu a série em seu catálogo, não tive afobação nenhuma para assistir (desenvolvi esse hábito: quanto mais percebo um certo hype em torno de um filme, uma banda de música, uma série, etc., menos pressa tenho de conhecer - por isso que até hoje não comecei a ver La Casa de Papel, por exemplo, e esse também é um dos motivos por que não tenho nenhum interesse em Game Of Thrones).

No segundo mês do sobreaviso, porém, sem aperto de tempo, resolvi dar uma olhadinha descompromissada. 

Babei.

É fascinante, visualmente: cenários, figurinos, uso das cores. Os atores dão um show, com destaque para D'Arcy Carden (que interpreta Janet) e a participação de Maya Rudolph, como a impagável Juíza. Os roteiristas não se excedem nas referências à cultura pop na hora de fazer as piadas (e creio que o(a) eventual leitor(a) concorda comigo que um dos grandes males de boa parte do entretenimento contemporâneo é a profusão de gracinhas forçadas explorando a cultura pop).

Mas tem mais.
 
Por que acho a série tão boa?

Porque, sendo um grande interessado em Filosofia, nunca imaginei que este tema apareceria de forma tão destacada num seriado de TV! E que, não poucas vezes, apareceriam personagens segurando livros, lendo e falando do conteúdo desses livros! E que isso não seria chato, muito pelo contrário!

Chidi Anagonye, o professor de Filosofia Moral incumbido de tentar melhorar a si e aos outros na série (interpretado pelo ator William Jackson Harper), tem um papel fundamental em The Good Place (embora recorrentemente ouça a frase: "Everyone hates Moral Philosophy Professors"). É o meu personagem preferido, junto com Michael (Ted Danson), o demônio que acaba desejando virar um ser humano.

Embora trate de algo caro à maioria das religiões - a crença de que há vida após a morte -, a série passa ao largo da pregação religiosa. Consegue-se fazer rir a partir de concepções e experimentos filosóficos (a esse respeito, recomendo muito o 5º episódio da segunda temporada, O dilema do bonde).

Nunca imaginei que veria qualquer coisa como essa acondicionada como entretenimento.

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Toda vez que me deparo com um otimista, fico tomado de perplexidade: "Como é possível ser esperançoso neste mundo de merda em que vivemos?". Toda vez que ouço alguém rir à solta, me pergunto: "Como é possível gargalhar com esse ânimo, quando se sabe que há tanta opressão e ganância por aí?". Dos muitos defeitos que tenho, um deles é raramente ser capaz de olhar a vida com positividade.
 
Criações como Brooklyn Nine-Nine e The Good Place não vão me "curar" do pessimismo crônico. Mas não nego que são um lenitivo.

Pessoas como eu precisam do humor (e também da pieguice, por que não?) de programas assim.

Tráfico de pessoas, racismo, superexploração dos recursos naturais, abuso de poder econômico, miséria e fome... A lista de desgraças existentes é imensa. Não é à toa que o cinismo hoje é visto com um comportamento "ético" aceitável. E, quando não estamos encalacrados nos expedientes de trabalho estéreis que nos restam dentro da ordem capitalista, ainda somos submetidos, nos momentos de "lazer", a produtos de entretenimento que só faltam exclamar: "Espectador, você é um idiota!" - telenovelas, programas de auditório, reality shows, overdose de mesas-redondas em torno de futebol, reprises e mais reprises de filmes ruins, etc.

De vez em quando, porém, surge algo acima da média. Algo verdadeiramente divertido, perspicaz e emocionante.

A vida é uma sucessão de infortúnios, não consigo ver de outra forma. 
 
Mas nem tudo precisa ser ruim o tempo todo.
 
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Uma última observação:  serviços de streaming, tais como Netflix, Amazon Prime Video, Disney +, HBO Max (e outros que estão para chegar), induzem a uma fruição bem parecida com a da TV tradicional. Podem ter a comodidade da escolha do melhor horário para assistir, da possibilidade de pausa ou avanço (que não são possíveis no modelo broadcast), mas costumamos consumir as atrações desses serviços de forma bem similar ao modo como estamos habituados: comodamente sentados num sofá, graças aos aparelhos de televisão modernos com conexão de internet.

Por isso, mesmo estando no streaming, não vejo problema algum de classificar tudo isso como conteúdo televisivo.

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¹ Gosto tanto da série que tenho em DVD (original) as três temporadas que chegaram ao Brasil. A quarta - e última -, mesmo tendo sido exibida nos EUA há quase dois anos, ninguém sabe quando poderá ser vista por aqui. Tremenda sacanagem com os espectadores.


BG de Hoje

Por falar em criações que me fazem bem, Fortune Faded, dos RED HOT CHILI PEPPERS está entre as canções que mais me dão vontade de sair pulando e dançando. Gosto demais dessa faixa! Não posso deixar de mencionar também que uma das perguntas que determinavam se alguém é fundamentalmente mau em The Good Place era: "Você já pagou para ouvir música tocada pela banda de funk rock da Califórnia Red Hot Chili Peppers?". Eu já, tenho quatro CDs deles (e já tive dois discos em vinil). Logo, meu lugar é o inferno...