segunda-feira, 29 de novembro de 2021

A dependência do mal

Acho que sei por que uma pessoa religiosa com quem topei outro dia fez questão de mencionar, em tom triunfante, uma frase famosa de José Saramago. 

Numa entrevista, o escritor português dissera: "Não sou um ateu total. Todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não encontro".

"Tá vendo?"- volveria em minha direção o crente ¹, se nossa conversa tivesse prosseguido - "Isso mostra que mesmo um ímpio obstinado como Saramago não tinha plena convicção do seu ateísmo e estava em busca de Deus"

Bem... É preciso fazer alguns reparos.

Pelo que posso depreender de outras falas de Saramago e de sua própria obra literária, a descrença do romancista foi marcada em parte pela rejeição de qualquer teodiceia: ou seja, a recusa de explicações/argumentações que tentem conciliar os males do mundo (tanto os sofrimentos decorrentes de fenômenos naturais, quanto as dores infligidas por seres dotados de consciência) com a hipótese improbabilíssima da existência de uma divindade suprema (onipresente, onisciente, onipotente, além de misericordiosa e amorosa, características costumeiramente atribuídas ao deus dos monoteísmos abraâmicos, especialmente no cristianismo).

Não é preciso procurar muito. Uma rápida olhada nos noticiários, um passeio pelas ruas ou mesmo - quem sabe? - uma vasculhada na própria família são suficientes para mostrar que há maldade em abundância por aí e se existe uma entidade divina, com todos os atributos acima descritos, ela não dá nenhum sinal de que pretende mudar o cenário. Obviamente, para defender uma teodiceia, pode-se sempre apelar para o plano de Deus e a inescrutabilidade de seus propósitos ou alegar que os seres humanos dispõem de livre-arbítrio. Mas não quero me demorar nessas questões.

Voltando à frase do escritor. Ao dizer que não é um "ateu total", Saramago, penso eu, estava apenas afirmando que precisava de evidências melhores para acatar tal divindade (não, versículos da Bíblia e do Corão ou relatos de milagres e exorcismos não têm qualquer valor como evidência nessa circunstância). Sabe o que funcionaria como prova incontestável? O fim instantâneo do flagelo dos refugiados mundo afora, por exemplo, e a cara de Deus, gigante, aparecendo no céu do Sudão, da Síria ou do Haiti, dizendo "Ficai-vos em paz e descansados! O padecimento findou! A partir de agora, estabelecer-se-ão todas as condições socioeconômicas e culturais para o fim de vossas migrações forçadas!". Ou poderia ser a remissão total do câncer em todos os pacientes (ou, vá lá, pelo menos em todas as crianças com a doença), num estalar de dedos, seguida de uma voz tonitruante, ouvida ao redor do planeta, falando: "Curei-vos a todos!". Pronto, tiro e queda. Que ateu atrevido conseguiria colocar isso em dúvida? Suponho que um ser supremo, onipresente, onisciente, onipotente, além de misericordioso e amoroso, realizaria tais proezas sem maiores dificuldades...

A condescendência desse Deus com o mal é um dos temas mais agudos de O Evangelho segundo Jesus Cristo.

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Em 1991, quando publicado pela primeira vez - e até alguns anos depois -, o romance foi repudiado por membros do clero e outros católicos graúdos em Portugal, a ponto de pressionarem o governo da época a não indicar o autor para o Prêmio Europeu de Literatura Aristeion ². Em protesto, Saramago decidiu sair do país e morar nas Ilhas Canárias, mais especificamente em Lanzarote, onde permaneceu até a sua morte em 2010.

Um narrador ocasionalmente debochado e um Filho de Deus bem menos divino e mais humano (mesmo ainda sendo capaz de dissipar tempestades apenas com palavras e transformar água em vinho do bom) encolerizaram diversos conservadores. Nessa versão de uma das mais conhecidas narrativas mitológicas de todos os tempos, Maria ficou grávida de seu primogênito pelo mesmo processo que todas ficavam (antes do advento da inseminação artificial, pelo menos) e Jesus viveu maritalmente com uma mulher (também chamada Maria) que deixara de ser prostituta em Magdala para acompanhá-lo. Isso foi considerado blasfemo e sacrílego pelos reacionários puritanos, sempre prontos a vituperar qualquer coisa relacionada a sexo. Entretanto, não tenho dúvida de que o público de mente mais aberta certamente comoveu-se com a bonita história de amor contada e com a firmeza ética do protagonista (foi o caso deste blogueiro).

Para os objetivos da postagem de hoje, vamos enfocar o antepenúltimo capítulo do livro.

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Um espesso nevoeiro se forma sobre o mar da Galileia (que é mais propriamente um imenso lago). Após se despedir de Maria Ma(g)dalena, Jesus, ao contrário dos outros atemorizados habitantes da cidade de pescadores onde vivia, conduz um barco para o meio da bruma. "Enfim, vou saber quem sou e para o que sirvo" ³ , dissera ele à mulher.

Ao chegar no meio do lago, Deus surge a bordo. Seu filho tem muitas interrogações. Ambos conversam. Jesus fala da "Legião" que expulsou de um homem ao chegar na terra dos gadarenos, observando que Deus, melhor do que ele, sabe que não se pode prever para onde vão os demônios banidos de um corpo. Deus então replica: "E por que hei-de eu saber dos assuntos do Diabo". Ora, o Todo-Poderoso tudo sabe. "Até certo ponto, só até certo ponto". E qual seria este? "O ponto em que começa a ser interessante fazer de conta que ignoro". A certa altura, o Diabo também sobe à embarcação (na figura do Pastor com quem Jesus trabalhou durante quatro anos apascentando um imenso rebanho de ovelhas e cabras). Na forma humana com que se apresentaram, "tirando as barbas de Deus, eram como gémeos", lê-se no romance. 

Inteira-se Jesus de sua missão: cumprir o papel de mártir, "que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé". Desse modo, diz Deus, "estou certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de séculos, embora tendo de lutar, eu e tu, com muitas contrariedades, passarei de deus dos hebreus a deus dos que chamaremos católicos, à grega", ou seja, deixando de ser adorado por um povo relativamente pequeno e passando a ser cultuado globalmente. Inteligente como é, Jesus faz a pergunta óbvia: por que é preciso o sofrimento de um mártir para atingir tal objetivo, sendo o Senhor capaz de tudo? Alega-se então um pacto inamovível entre os deuses, pois "nenhum deus gosta que venham fazer na sua casa aquilo que seria incorrecto ir ele fazer à casa dos outros". E como será o futuro após esse sacrifício? Formar-se-á uma Igreja, dita católica, "e os seus alicerces [serão] compostos de um cimento de renúncias, lágrimas, dores, torturas, de todas as mortes imagináveis hoje e outras que só no futuro serão conhecidas".

A seguir, Saramago relaciona, magistralmente, em ordem alfabética, os nomes de diversos indivíduos canonizados pelo catolicismo e que foram condenados à morte ao longo da história, expediente que ocupa quatro páginas daquela escrita compacta, própria do autor. 

Também haverá guerras em nome dessa fé ("porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino[...]", como está em Mateus, cap. 24, vers. 7, e também em Marcos 13.8 e Lucas 21.10). Acrescentem-se ainda o surgimento do Islã, as Cruzadas e a Inquisição.

E aqui vem o ponto alto do romance: todo esse martírio poderia ser evitado se Deus aceitasse a proposta do Diabo - perdoá-lo por ter-se rebelado. Mas tal não acontece:

 

"Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora. [...] Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro"


Imprescindível observar que obras como O Evangelho segundo Jesus Cristo (ou, lembrei-me agora, como A última tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis), apesar da resistência que enfrentaram (e que enfrentam em determinados grupos, mesmo hoje em dia), não têm por intuito serem provocações baratas e gratuitas. Através da revisitação de narrativas lendárias (o termo é empregado aqui sem intenção depreciativa) tão incrustadas na memória coletiva, o que se busca é desempenhar uma das mais nobres e cruciais funções da arte literária: refletir sobre a condição humana.

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¹ Já fiz esse esclarecimento noutras postagens, mas não custa reiterá-lo para evitar mal-entendidos: quando uso o termo crente tenho em mente o seguinte significado: "aquele que acredita em uma (ou várias) divindade(s)", em oposição ao termo descrente ou, simplesmente, ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa pela qual têm afinidade ou da qual fazem parte.

² O Aristeion, atribuído pela Comissão Europeia, vigorou entre 1990 e 1999. Hoje existe o Prêmio de Literatura da União Europeia (surgido em 2009), bastante diferente do Aristeion em vários aspectos. 

³ SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


BG de Hoje

Coerente com seu repertório habitual - canções compostas dentro dos diversos ritmos característicos do nordeste brasileiro -, MARIANA AYDAR (num dueto com CHICO CÉSAR) lançou este ano o single O futuro já sabia. Não dá pra resistir!