sexta-feira, 19 de abril de 2024

Sobre O enterrado vivo, de Drummond

 

 

Vale a pena nos questionarmos o quanto nos aferramos a consagrar o que já é consagrado.

No campo da Literatura (e das artes em geral), tal questionamento me parece ainda mais fundamental.

O que estou tentando dizer é: reafirmar a maestria de um Guimarães Rosa ou a genialidade de uma Clarice Lispector, por exemplo, é chover no molhado. Existe uma consideração pública assentada sobre certos autores, mesmo entre a parcela de pessoas que passa longe da leitura literária.

Não me entenda mal. É sempre possível acrescentar algo à fortuna crítica de qualquer escritor/escritora e, muitas vezes, pode-se ter um entendimento mais rico de determinada obra célebre por meio de uma nova interpretação. Não é disso que estou falando.

Só não suporto a reverência oca. 
 
O que seria isso? O relato a seguir talvez ajude a explicar.
 
Para mim, é inimaginável viver sem música, embora não seja um instrumentista, muito menos saiba cantar, nem entenda nada de teoria ou composição musical. Apesar dessa paixão, tenho um posicionamento sacrílego: uma invencível má vontade com a bossa nova e, principalmente, com João Gilberto. Acho tão aporrinhante... (eu sei, eu sei, lancem-me às feras). Estou ciente, é óbvio, do respeito que cerca esse artista, bem como do tamanho de sua influência, mas não vou sair por aí soltando frases vazias tipo "o grande João Gilberto" ou "como João Gilberto era bom". Creio que sua consagração é justificada e sei que perderia meu tempo contestando sua importância como violonista e cantor; não vou, porém, fingir admiração só por ter sido um artista apreciado por muitos - fazer isso seria, da minha parte, uma reverência oca.

Voltando ao ponto anterior. Muita gente, para fazer menção a certas personalidades das letras, parece se sentir obrigada a cercar os(as) autores(as) de palavras venerandas. Isso se dá não por causa de uma estima sincera, resultante do contato (muitas vezes prolongado) com a produção textual desses(as) mesmos(as) autores(as), mas apenas como resultado da reverência oca, dado o peso cultural dessas personalidades.
 
Mal algum em louvar artistas consagrados (este blogueiro mesmo fez isso em diversas ocasiões e, desavergonhadamente, o fará mais uma vez na postagem de hoje). Penso, contudo - especialmente quando se trata de entendidos na matéria (acadêmicos, críticos, jornalistas ou opinadores com alguma visibilidade nos meios de comunicação) -, que deve-se evitar cair na arapuca de só enaltecer aquilo que já foi ou vem sendo suficientemente enaltecido, deixando de lado outros(as) escritores(as) cujos trabalhos também seriam merecedores de uma projeção maior (já escrevi sobre essa minha preocupação numa postagem em outubro de 2011).

Tá certo, admito ter acabado de propor algo que eu mesmo não costumo fazer por aqui (em minha defesa, posso dizer que sou um joão-ninguém, não é minha responsabilidade)...

Apontamentos feitos, falaremos de um poema - O enterrado vivo - cujo autor (ora, ora!) é um desses monstros sagrados da literatura brasileira: Carlos Drummond de Andrade.

O poema vem ocupando meu pensamento de uns tempos pra cá graças ao emprego de seu último verso como uma das epígrafes do livro O verão tardio, de Luiz Ruffato, discutido no blog na penúltima postagem do ano passado. Bastou ler aquele verso para me lembrar de toda a composição, um texto que, durante anos, repeti para mim mesmo como um "antiacalanto". Vou reproduzi-lo abaixo:

 

O ENTERRADO VIVO

É sempre no passado aquele orgasmo.
É sempre no presente aquele duplo.
É sempre no futuro aquele pânico.
 
É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra. 

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

 

(Utilizei a 41ª edição da Antologia poética de Drummond, publicada pela Editora Record em 1998, mas O enterrado vivo faz parte originalmente no livro Fazendeiro do ar, de 1954)

E qual é minha intenção ao discutir esse poema? Nada de mais. Por se tratar de um de meus prediletos, apenas desejo fazer com que você, eventual leitor(a), valorize-o também.

Realço dois elementos da composição: o ritmo e a seleção lexical.

Não há rimas soantes, praticamente. A métrica dos versos (com linhas de dez sílabas poéticas), a repetição da fórmula "É sempre" (ou apenas "sempre") e a organização em tercetos sustentam o ritmo; os dois últimos recursos, aliás, foram simples e eficientíssimos. Quando lido em voz alta - e nunca é demais repetir, ler poemas em voz alta é fundamental para a percepção não só do ritmo e da musicalidade, mas, igualmente, do vigor e enlevo que as palavras podem provocar -, a cadência gera sentido tanto quanto aquilo que é expresso verbalmente: a desolação d'O enterrado vivo emana também de sua sonoridade. (NOTA 1: Vale mencionar que, junto a esse poema, no volume em que foi publicado pela primeira vez, está presente No exemplar de um velho livro, outro texto todo em tercetos. Há também sonetos - O quarto em desordem e A distribuição do tempo - , levando-me a supor que Drummond estava particularmente inclinado para as formas fixas e os escritos "mais arrumadinhos" naquele período)

As palavras selecionadas, quase todas de uso corrente no nosso vocabulário, ganham nova dimensão graças às combinações feitas pelo poeta. E mesmo as mais raras, "distrato" e "estampilha", não estão fora de lugar. É na segunda estrofe que a sonoridade e o ajustamento de palavras atingem seu ponto alto: "É sempre no meu peito aquela garra./É sempre no meu tédio aquele aceno./É sempre no meu sono aquela guerra". 

É um texto poético magnífico. Chega a me exasperar, de tão bom. 

Nesse momento, porém, acho oportuno mencionar um trecho de (raríssima) entrevista da poeta Maria do Carmo Ferreira, registrada em 2004 ¹ .

"Dois fatos me marcaram nessa época [anos 1960]: meu professor de Literatura Espanhola, José Carlos Lisboa, apesar de muito rigoroso e exigente, veio me cumprimentar pelo poema saído na revista Mural. Ruborizei de vergonha e até pedi desculpa, não sabendo onde esconder minha cara. E veio a primeira lição: 'Carminha, não há poetas perfeitos, quando muito há um ou outro poema perfeito'. Sempre penso nisso quando leio (ou releio) os meus poetas prediletos, onde encontro de tudo: verborragia, poemas circunstanciais, quando não excesso de rimas/ritmos/decalques, enfim, a gente está sempre separando o joio do trigo, mesmo nos que ficaram para sempre, nos clássicos da língua".

(NOTA 2: Caso o(a) eventual leitor(a) nunca tenha ouvido falar em Maria do Carmo Ferreira, sugiro essa reportagem de 2021 da revista piauí, relatando, entre outras coisas, as primeiras publicações da obra da escritora em livro, sendo ela já octogenária)

"Não há poetas perfeitos, quando muito há um ou outro poema perfeito". Isso vale também para Carlos Drummond de Andrade, que elaborou várias composições extraordinárias, mas não o tempo todo. 

Por isso valorizo ainda mais O enterrado vivo, uma dessas criações notáveis. É perfeito, digo sem hesitação.

Um poema que me atinge fortemente, sendo eu alguém habitualmente interessado nos modos de se tentar expressar a amargura existencial. 

"Sempre dentro de mim meu inimigo"... como isso é cortante...

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¹ MARQUES, Fabrício. Dez conversas -  diálogos com poetas contemporâneos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2004.

BG de Hoje

Já discuti a questão poema/letra de música em algumas postagens do blog (por exemplo, aqui). Uma letra de música, antes de qualquer outra coisa, deve contribuir "para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa", como defende Antonio Cicero. Diferentemente do poema, que tem um fim em si mesmo e "se realiza quando é lido", a letra de música existe para acompanhar uma canção. Não é muito frequente, a meu ver, que uma letra de música mantenha sua vivacidade ao ser lida como um poema. Nada de mal nisso. Como dito antes, se ela contribui para uma boa canção, isso é o que importa. Quase nada, parceria da poeta ALICE RUIZZECA BALEIRO seria uma espécie de "melhor dos dois mundos". Um lindo poema e uma amostra de como uma boa letra de canção popular deveria ser.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Luxo e inércia


É, voltei a escrever.

Permaneço péssimo, mas não quero falar disso.


Há algumas semanas soube que o Greg News acabou - para usar um irritante termo da moda, foi "descontinuado" pela HBO. 

Pena. Era uma atração televisiva muito acima da média.

Seu mérito não estava na originalidade - claramente tratava-se de uma versão nacional do Last Week Tonight (John Oliver pelo menos continua na grade da emissora norte-americana). A fusão de humor e jornalismo é algo que muitos já vêm fazendo há algum tempo, com bons resultados (destaco, além do citado John Oliver, o pioneiro Daily Show, que eu só comecei a acompanhar no período ancorado por Trevor Noah). O programa apresentado por Gregório Duvivier apareceu como um anteparo, na época em que tinha mesmo que aparecer, quando parte significativa da sociedade brasileira mergulhou de cabeça num reacionarismo obscurantista de viés religioso (evangélico), permitindo a ascensão de elementos da extrema direita e de gangsters da política, num período em que os fluxos de informação/comunicação já estavam irreversivelmente contaminados por aquilo que recebeu o nome genérico de fake news. Além disso, o artista carioca é um ótimo ator/comediante e a redação/produção do programa costumava acertar na maior parte das vezes ¹.

Na última temporada, um dos episódios que mais apreciei foi o intitulado Luxo. Assisti de novo outro dia. E me veio a vontade de abordá-lo aqui.

"Os bilionários de hoje em dia" - diz o apresentador em determinado momento do programa - "encontraram uma forma de dar a quase todo mundo a sensação de que o luxo pode ser acessível ou, no mínimo, emulável. Logo, é melhor tentar atimgi-lo do que cortar a cabeça de quem tem acesso a ele".

O destino que os revolucionários franceses deram a membros da nobreza no final do século XVIII havia sido mencionado momentos antes. Por outro lado, como também mostrado no programa, os ultraprivilegiados da atualidade, ao que parece, não correm qualquer risco de serem guilhotinados. Muito pelo contrário.

Destaca-se então o megabilionário Bernard Arnault (o homem mais rico do planeta, que havia saído do topo da lista da Forbes, mas recuperou a posição recentemente). Mostra-se um trecho de entrevista em que o nababo afirma que seu maior objetivo é fazer com que a "desejabilidade" das marcas das quais é proprietário persista por décadas. Duvivier assinala que esta é "a característica central do mercado de luxo".

"Ele não está anunciando qualidade, nem dedicação do artesão, nem tradição,[nem]expressão artística. Ele está oferecendo desejabilidade. Ou seja, o que você compra num produto de luxo não é algo que você deseja. É algo que outras pessoas desejam, mas não podem ter".

Só uma parte ínfima (ínfima mesmo) dos seres humanos tem acesso a tudo que a grana pode comprar. A imensa maioria da população mundial dá duro para "só" conseguir botar comida na mesa e se abrigar dignamente sob um teto. Isso sem mencionar a outra enorme quantidade de pessoas que simplesmente não sabe se terá alimentação suficiente no outro dia.

Entretanto - e não me canso de ficar espantado com isso -, vejo vários homens e mulheres, pobres como eu (alguns até menos remediados), que julgam estar mais próximos dos ricaços, em relação ao status socioeconômico e ao "estilo de vida", do que de indivíduos ainda mais despossuídos. Ingenuamente, pensam ser apenas uma questão de esforço pessoal: basta trabalharem e se dedicarem muito que um dia estarão com a burra cheia, como se dizia em priscas eras, quando é muito mais provável testemunharem um processo de empobrecimento individual e familiar.

Uma dupla de alemães barbudos do século XIX formulou num de seus escritos algo mais ou menos assim: as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes dentro da sociedade com um todo. Este postulado marxiano (ou marxista, nunca sei direito como usar esses dois adjetivos) ajuda a explicar por que os verdadeiros controladores do capital (ou seja, grandes proprietários dos meios de produção de bens e serviços ou, como é cada vez mais preponderante desde o final do século XX, grandes especuladores das bolsas de valores, banqueiros e outros rentistas de mesmo calibre) têm seus princípios e interesses defendidos por tantas pessoas que são invariavelmente prejudicadas quando estes princípios e interesses prevalecem (e que nunca, NUNCA, chegarão nem perto de entrar no clube desses verdadeiros controladores do capital).

Como não poderia deixar de ser, as mídias (redes) sociais e seus influencers têm um destacado papel nisso tudo, contribuindo para nos adestrar a "admirar jato [particular, feito para transportar uns poucos ricaços com um custo ambiental pesado] como se fosse símbolo de sucesso, e não de desprezo pelo resto da humanidade".

Voltemos a Bernard Arnault. 

Uma pessoa comum, com renda pouco significativa, muito dificilmente poderá comprar um colar de ouro branco e diamantes da Bulgari ou uma bolsa Louis Vuitton - duas marcas de propriedade do bilionário francês. Mas talvez consiga adquirir um perfume mais em conta da Sephora - outra marca de Arnault - para fazer inveja naquele parente que veio fazer uma visita. O consumo conspícuo (ou pelo menos uma microrrepresentação dele) parece agora estar atravessando todas as classes sociais. Os direitos trabalhistas estão sendo pulverizados, a instabilidade e a precariedade de grande parte das ocupações remuneradas hoje existentes são gritantes, poucos trabalhadores conseguem adquirir um imóvel próprio, mas é possível fingir ser bem sucedido com um frasquinho Christian Dior no armário. "Quando a ilusão de luxo é democratizada, a gente perde a capacidade de odiar o luxo obsceno de verdade", bem observa Duvivier.

É tarefa das mais árduas (e arriscadas) desmontar a armadilha ideológica do capitalismo, armadilha esta que faz os indivíduos subjugados pelo poder econômico ficarem ao lado daqueles que os estão subjugando.

Há alguns anos, li um artigo do sociólogo Michael Löwy, disponível no Blog da Editora Boitempo ² , intitulado O capitalismo como religião. Trata-se de comentários feitos a partir de várias anotações reunidas, sob o mesmo título do artigo, em algumas páginas até então inéditas de Walter Benjamin. 

Em suas observações, o pensador alemão não perde de vista o célebre A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicado por Max Weber em 1904/05: "demonstrar a estrutura religiosa do capitalismo - isto é, demonstrar que ele é não somente uma formação condicionada pela religião, como pensa Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso - nos levará ainda hoje pelos meandros de uma polêmica universal desmedida".

A estrutura religiosa do capitalismo, de acordo com Benjamin, fundamenta-se no culto. O culto é permanente. O culto produz culpa.

"Portanto" - escreve Löwy -, "as práticas utilitárias do capitalismo - investimento do capital, especulações, operações financeiras, manobras bolsistas, compra e venda de mercadorias - são equivalentes a um culto religioso. O capitalismo não exige a adesão a um credo, a uma doutrina ou a uma 'teologia', o que conta são as ações, que representam, por sua dinâmica social, práticas cultuais".

Qual seria o objeto ou a entidade a se adorar nesse culto? O dinheiro seria a resposta mais evidente (e o articulista aponta uma citação que talvez viesse a ser empregada por Benjamin em sua versão final do texto, na qual há a comparação entre o dinheiro e a figura divina). Mas este blogueiro prefere indicar o Mercado, esse termo que a imprensa corporativa hegemônica usa e abusa para criticar determinadas posições que governantes podem tomar mas que desagradariam a classe dominante: "o mercado reagiu mal à declaração do presidente"; "a fala da ministra assustou o mercado". Essas mesmas empresas de mídia, para tentar gerar um clima de otimismo, às vezes também soltam frases do tipo "o mercado está animado com os recentes índices da bolsa" ou "o governo deixou o mercado satisfeito com os cortes no orçamento", como se isso significasse um grande benefício para a maioria da população e não mais oportunidades de enriquecimento para grupos bem restritos. 

Divindade absoluta e infalível, há um temor, disseminado em toda a sociedade, dos humores do Mercado...

Dissemos acima que o culto também é permanente. Michael Löwy comenta:

"Sem descanso, sem trégua e sem piedade: a ideia de Weber é retomada por Benjamin, quase literalmente [...]. Portanto, na religião capitalista, cada dia vê a mobilização da 'pompa sagrada', isto é, os rituais na bolsa ou na fábrica, enquanto os adoradores seguem, com angústia e uma 'extrema tensão', a subida ou a descida das cotações das ações'. [...] As práticas capitalistas não conhecem pausa, elas dominam a vida dos indivíduos da manhã à noite, da primavera ao inverno, do berço ao túmulo. Como bem observa Burkhardt Lindner, o fragmento [escrito por Walter Benjamin] empresta de Weber o conceito do capitalismo como sistema dinâmico, em expansão global, impossível de deter e do qual não podemos escapar".

Por fim, a culpa. Aqui não há expiação: é preciso fazer a culpa "entrar à força na consciência". Vale uma breve digressão semântica (que está no artigo de Löwy).

Em alemão, a palavra schuld pode significar tanto "dívida" quanto "culpa". 

"Benjamin evoca, nesse contexto o que chama de 'ambiguidade da palavra Schuld' [...]. Segundo Burkhard Lindner, a perspectiva histórica do fragmento baseia-se na premissa de que não podemos separar, no sistema da religião capitalista, a 'culpa mítica' da dívida econômica.

Encontramos em Max Weber dois raciocínios análogos, que também jogam com os dois sentidos de 'dever': para o burguês puritano, 'o que consagramos a fins 'pessoais' é 'roubado' do serviço à glória de Deus'; tornamo-nos assim ao mesmo tempo culpados e 'endividados' em relação à Deus. 'A ideia de que o homem tem 'deveres' para com as posses que lhe foram confiadas e às quais ele está subordinado como um intendente devotado (...) pesa sobre sua vida com todo o seu peso gélido. Quanto mais aumentam as posses, mais pesado torna-se o sentimento de responsabilidade (...) que o obriga, para a glória de Deus (...) a aumentá-las por meio de um trabalho sem descanso'. A expressão de Benjamin 'fazer a culpa entrar à força na consciência' corresponde bem às práticas puritanas/capitalistas analisadas por Weber".

Sob a ótica capitalista, os pobres são culpados por sua situação difícil (não se esforçaram o suficiente, não sabem economizar ou investir, etc.). A vontade de Deus determina o lugar de cada um, do mesmo modo que a vontade do mercado. O resultado desse processo de culpabilização é o desespero.

"De Weber a Benjamin nos encontramos em um mesmo campo semântico, que descreve a lógica impiedosa do sistema capitalista. Mas por que ele é produtor de desespero?

Sendo a 'culpa' dos humanos, seu endividamento para com o capital, perpétuo e crescente, nenhuma esperança de expiação é permitida. O capitalista deve constantemente aumentar e ampliar seu capital, sob pena de desaparecer diante de seus concorrentes, e o pobre deve [tomar emprestado dinheiro] para pagar suas dívidas.

Segundo a religião do capital, a única salvação reside na intensificação do sistema, na expansão capitalista, no acúmulo de mercadorias, mas isso só faz agravar o desespero. É o que parece sugerir Benjamin com a fórmula que faz do desespero um estado religioso do mundo 'do qual se deveria esperar a salvação'".

. . . . . .  .

 

A concentração de renda é um fenômeno inegável. As indecentes disparidades entre os mais ricos e os mais pobres não são difíceis de se constatar. Poucos milhares injetando rios de dinheiro nas coisas mais fúteis e supérfluas enquanto milhões mal conseguem sobreviver com um mínimo de dignidade.

Mas por que, a meu ver, há tão pouca indignação com tal estado de coisas? Pior, por que não vemos grandes movimentos de massa cheios de raiva - sim, raiva - contra essa desigualdade nojenta? Por que a maior parte de nós adotou a inércia como comportamento padrão em relação às mudanças sociais que deveriam acontecer?

A sede por ostentação - que parece estar atingindo a todos, seja o bilionário que não trabalha, seja o assalariado que precisa se virar para manter o cartão de crédito em dia - e a concepção quase religiosa do capitalismo que perpassa a sociedade (e sabe-se como é difícil contestar e vencer uma religião) talvez sejam bons pontos de partida para entender essa inércia.

Vou tentar me aprofundar nessas questões assim que for possível e produzir um outro texto.

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Creio que o(a) eventual leitor(a) tomou conhecimento da gravíssima colisão, ocorrida em 31 de março deste ano, que resultou na morte de um motorista de aplicativo em São Paulo, após seu carro ser atingido violentamente por outro veículo, um Porsche (cujo valor ultrapassava um milhão de reais). Requereu-se a prisão preventiva do condutor que dirigia o Porsche, mas a Justiça de São Paulo negou a requisição (pelo menos até a data em que esta postagem foi publicada). O cara segue em liberdade, sem qualquer aborrecimento e, sabendo como são as coisas nesse poço de desigualdade chamado Brasil, prevejo que ele não passará nem um dia na cadeia.

O jornalista Leonardo Sakamoto escreveu no UOL um excelente artigo sobre esse caso: Com assassinato e fuga, Porsche vira licença para rico matar em São Paulo.

Escreve Sakamoto: "O caso se desenha como o puro suco de Brasil. Imagine se ao invés de um herdeiro dirigindo um Porsche fosse um rapaz pobre, negro retinto, em um glorioso Fiat Uno que matasse alguém tirando um racha no Capão Redondo? Se a mãe do mancebo aparecesse e dissesse que iria levar o filho para botar um curativo [como fez a mãe do playboy do Porsche] seria fuzilada pelos agentes de segurança só com o olhar.

[...]

Sim, a tradicional carteirada foi substituída pela ostentação de riqueza".

Não existe enraizamento do conceito de cidadania. Não existe a aceitação e o respeito ao preceito de que todos são iguais perante à lei.

"[...] a desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres.

Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando a violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento que vivemos hoje.

A desigualdade social, que seria motivo de vergonha em qualquer lugar civilizado,  aqui é razão de orgulho. O importante para uma parte da população, tanto a que está no topo quanto a que sonha em estar lá, não é reduzir a diferença, mas garantir que ela seja devidamente glamourizada e a ascenção social, mitificada. Assim o indivíduo passa a não desejar justiça social coletiva, mas um lugar ao sol para si mesmo.

Ou seja, o desejo não é um país em que os donos de Porsche obedecem às mesmas regras que os donos de Uno. O desejo é ter um Porsche".

 

Mais tarde vou encher a cara e tentar dormir o máximo que conseguir.

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¹ Como escrevi acima, o grupo de redatores/produtores fazia um ótimo trabalho, mas não acertava sempre. Pisaram na bola, por exemplo, no episódio que tinha como tema central a psicanálise e noutro, intitulado Filhos. Talvez escreva sobre isso noutra oportunidade.

² LÖWY, Michael. O capitalismo como religião. Blog da Boitempo, São Paulo, 8 de ago. de 2013. Disponível em <https://blogdaboitempo.com.br/2013/08/08/o-capitalismo-como-religiao/>. Acesso em 06/03/2024

BG de Hoje

Eu gosto muito dessa faixa: Steambreather, da banda norte-americana MASTODON. As transições de uma seção musical para outra são excelentes. "I wonder who I am/Reflections offer nothing/I wonder where I stand/I'm afraid of myself": tenho cantarolado isso direto.