Ah, quanta merda se proclama em nome da família!
Se eu pudesse acrescentar algo à conhecidíssima frase atribuída a Samuel Johnson, seria: "O patriotismo é o último refúgio de um canalha [, porque a família, possivelmente, está entre os primeiros]".
Os discursos conservadores mais extremados, vira e mexe, lançam mão do termo família para sustentar posicionamentos (e atos) excludentes, discriminatórios e que não contribuem para a emancipação de ninguém. Proteger a família é o subterfúgio mais usado por velhacos da política e líderes de igrejas caça-níqueis (entre outros pilantras) na hora de atormentar pessoas LGBTQIA+, na hora de enfraquecer a laicidade do Estado, na hora de negar os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, na hora de obstruir ações educativas que discutam questões de gênero e a estrutura patriarcal da sociedade.
Têm amantes e filhos desassistidos fora do casamento, mas batem no peito moralista para dizer que "só a família tradicional é que deve existir". Condenam a descriminalização da maconha "porque vai acabar com as famílias", enquanto lucram secretamente com as operações de milícias envolvidas diretamente com o narcotráfico.
"Valores familiares" - uma noção bastante discutível (para não dizer completamente vaga) - são invocados por esses indivíduos, a torto e a direito, para justificar opressões diversas.
O que escrevi até agora não foi um libelo contra a família. Um número imenso de pessoas só consegue sobreviver neste mundo desgraçado graças ao apoio dos arranjos familiares aos quais se vinculam. Não por acaso, aliás, costumam estar fora do enquadramento empregado pelos reacionários hipócritas e oportunistas, quando mascaram sua intolerância e venalidade através do discurso falsamente pró-família, porque esses arranjos não são compostos por papai, mamãe e filhinhos de comercial de margarina.
Contudo, embora sejam importantes pontos de apoio e eixos que sustêm muitas pessoas, outros tantos não encontram amparo (vai além de grana, a despeito da importância de se ter dinheiro) ou não mais preservam o sentimento de pertencimento nas famílias que lhes couberam. Foi o que ficou em mim ao acompanhar os últimos seis dias do personagem-narrador Oséias em O verão tardio, romance de Luiz Ruffato publicado em 2019.
Após muitos anos, de volta à cidade de Cataguases, sem saber o que esperar, mas certo de que naquele momento encontram-se "enosados os fios que atam o começo e o fim" ¹, Oséias busca, talvez, um acerto ou, quem sabe, uma reconciliação com o passado.
O primeiro contato com um conhecido dos tempos de escola já é agressivo e intimidador. Não, definitivamente não será uma volta feliz. "A cidade está feia, suja, fedendo a mijo. O lixo se espalha pelos meios-fios. Mendigos e camelôs disputam os passantes. Nos botequins, bares e restaurantes, televisores ligados hipnotizam os clientes". A descrição vale para qualquer metrópole brasileira e é de se notar que, em breve, cidades do interior idílicas e limpinhas (afinal, Cataguases não passsa de 80.000 habitantes) serão apenas lenda.
No reencontro com Marilda, a ex-namorada da adolescência (que acabou se casando com um homem brutal), ouve a frase: "Às vezes penso que a vida é puro arrependimento...". Divorciado e sem contato com o filho único, viciado em drogas, Oséias se questiona:
"Em que momento as coisas começaram a desandar? Por que atalhos se meteram minhas pernas, sem que eu desse conta? Este desconforto, sempre... E eu tinha alguma expectativa... No entanto, nem essa, pouca, se cumpriu".
"Caminho sem retorno, erros que levam a outros erros, e cinquenta e três anos pelo ralo. É isso a vida?"
Ao rever as irmãs e o irmão, cada um parecendo viver em ilhas só deles, a constatação de um afastamento irreversível. O verão tardio focaliza uma família, mas o individualismo excessivo e a incapacidade de ser solidário são marcas das sociedades contemporâneas, tudo sendo mais dramático ainda em países de tanta desigualdade - e em um evidente processo de clivagem ideológica e cultural - como o Brasil.
P.S: Ontem à noite, quando já tinha finalizado a redação desta postagem, acabei me deparando com o ótimo artigo Descaminhos e desesperança: o Brasil de Luiz Ruffato em O verão tardio, de Enio Passiani. Se voltar a escrever sobre este romance, certamente discutirei esse estudo.
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¹ RUFFATO, Luiz. O verão tardio. São Paulo: Companhia das Letras, 2019
BG de Hoje
Parece que, no estágio socioeconômico e político em que nos encontramos, a única coisa que os indivíduos comuns podem fazer é resistir. Não propor algo realmente novo, não partir para o enfrentamento do que (e de quem) nos está fodendo, não derrubar estruturas que precisam ser derrubadas: o máximo que conseguimos é oferecer resistência. Só. Isso é bem triste. De todo modo, adoro essa canção do duo CALLE 13: El Aguante.