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quarta-feira, 16 de março de 2016

Sobre A montanha mágica ou A importância das notas de rodapé (III)


"Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal em si? Não, isso seria deveras uma empresa tola [...] O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço. É também o elemento da música, que o mede e subdivide, carregando-o de interesse e tornando-o precioso".


Thomas Mann - A montanha mágica



Antes de reiniciar meus choramingos a respeito das (possíveis?, desejáveis?) notas de rodapé, não posso me esquivar de um ponto fundamental, provavelmente o mais importante em toda A montanha mágica*: a questão do tempo. Não nos determos pelo menos um pouco nesse tópico seria falhar miseravelmente em qualquer tentativa de abordagem da obra.

(Caso tenha interesse, a primeira parte desta série de textos está disponível aqui. E a segunda, aqui)

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Em muitas páginas do livro de Thomas Mann (como bom romance filosófico que é) surgem tentativas de conceitualização: nesse sentido, pequenos ensaios saborosamente especulativos são esboçados, cujos temas, os mais diversos, vão do hábito de fumar, passando por considerações a respeito de tosses, espirros e frieiras, a quadratura do círculo, até chegar a assuntos que se julgam mais elevados, tais como a definição do amor e uma tentativa de resposta à mãe de todos os questionamentos: o que é a vida? No início do sétimo (e último) capítulo, então - o mais ágil de todos os outros** e no qual a tão propalada ironia do escritor alemão mais se pode captar*** -, temos sem dúvida um mini-tratado sobre o tempo; sobre a relação deste com o exercício da narrativa e com o exercício da música; e, por fim, como é possível compará-las considerando o elemento temporal.

Quando me dei conta de que as 300 primeiras páginas do romance só cobrem sete semanas da trivial vidinha de Hans Castorp não pude refrear uma imprecisa sensação de logro, só dissipada à medida que já não me importava mais em ser "ludibriado" pela escrita meticulosa de Thomas Mann - desinteressada de elementos prosaicos, como açãoenredo, para empenhar-se na virtuosidade estilística (há, por exemplo, uma frase no quinto capítulo, quando Castorp mete-se a estudar fisiologia, cuja extensão - do início ao ponto final - é superior a 20 linhas impressas). Não é pouco o que se está a solicitar do leitor: é preciso que este mantenha de prontidão o distanciamento analítico-interpretativo para não se perder num esquema narrativo pouco habitual, no qual se prescinde de um entrecho pleno de acontecimentos. Afinal, o que torna mágica a montanha é o modo como todos - narrador, leitor, personagens - percebem e se colocam em relação ao tempo.

Além de tudo isso, não se pode esquecer de falar de música, tema frequente em diversas obras do escritor alemão. O protagonista d' A montanha mágica é um intenso apreciador dessa arte e chamava "regência" a seu modo de lidar com o fluxo de seus pensamentos e divagações solitárias (vale lembrar que ele próprio fantasiava ser maestro quando reproduzia os discos na vitrola recém-comprada pelo sanatório). O crítico literário George Steiner afirmou**** que "em suas ficções em prosa, ele [Thomas Mann] realizava a textura das formas musicais (a analogia tanto com Proust quanto com Joyce chama a atenção)". O romancista, por sua vez, numa carta ao filósofo Theodor Adorno enviada em dezembro de 1945, declarou*****: "É curioso: minha relação com a música tem alguma vocação, eu sempre entendi de música literária, sempre me senti meio que um músico, apliquei a técnica da trama musical no romance [...]". Naturalmente, a música aqui aludida é a de caráter clássico, erudito e lírico. Como este blogueiro nada conhece de teoria ou técnicas musicais e nem mesmo sabe orientar-se na história dessa encantadora arte, não vemos meios de nos aprofundarmos neste ponto. Volto então a pensar nas (possíveis?, desejáveis?) notas de rodapé.

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Já escrevera antes: para que se atinja suas camadas de significado mais profundas, A montanha mágica busca um leitor tão culto quanto o autor inscrito na narrativa. Um sujeito assim, entretanto, é algo cada vez mais raro hoje em dia... George Steiner, falando do intercâmbio entre Mann e Adorno, observa que "[...] a presunção recíproca de um saber polímata que abrange desde a Antiguidade até Beckett, de Palestrina a Webern, não faz mais parte de nosso mundo". Um livro dessa feitura (e outros como ele) estaria irremediavelmente fadado a ser lido e, quiçá, apreciado apenas por um público altamente especializado, de leitores profissionais (e, portanto, restrito), num futuro não muito distante? E por falar em público altamente especializado, fico só imaginando de que tamanho seria uma edição crítica d' A montanha mágica (um volume adicional seria acrescentado, certamente).

Mas e quanto aos leitores medianos (como este blogueiro)? Estamos condenados a boiar ao longo da obra, sem apanhar certas alusões, desconhecer determinadas referências ou mesmo não compreender um diálogo apenas por ter sido composto num idioma que não dominamos (como a crucial conversa - em francês - entre Hans Castorp e Claudia Chauchat, no final do quinto capítulo)? Não se poderia dispor de notas de rodapé explicativas que nos auxiliassem?

Bem... Num calhamaço desses, como fazer com que caibam tantas notas (porque talvez muitas fossem necessárias)? Como se manteria a boa disposição durante a leitura, tendo que ir e vir do texto às notas durante páginas e mais páginas? Como definir que passagem ou expressão precisaria ser explicada?

Já se vê que seria bem complicado incluir notas de rodapé num livro dessa natureza. Resta saber se uma empreitada dessas seria desejável. O que deve prevalecer: o ritmo de narração e a estrutura da obra como estabelecida pelo autor/editor ou a conveniência de determinado público (provavelmente, contudo, aquele a representar a maior parte dos indivíduos que ainda se dispõem a ler Literatura em nossas sociedades atuais)?

Deixo a pergunta para o(a) eventual leitor(a).
__________
* MANN, Thomas. A montanha mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 [Tradução de Herbert Caro]

** O próprio narrador parece reconhecer isso quando escreve: "Prestemos ao tempo pelo menos tanta honra quanta ainda permite a natureza da nossa história! De todo o modo não sobra mais muita. A narração precipita-se, aos trambolhões, ou - se essa expressão, porventura, soa demais barulhenta - vai se deslizando com a rapidez do vento. Quem indica o nosso tempo é um ponteirozinho que saltita como se medisse segundos, mas cada vez que passa pelo vértice, friamente e sem demorar, significa sabe Deus o quê".

*** Principalmente nas engenhosas ocasiões em que o narrador dirige-se diretamente ao leitor.

****A observação de George Steiner mencionada nesta postagem foi extraída de um ensaio originalmente publicado no Times Literary Supplement, mas reproduzido (com tradução de Clara Allain) no (extinto) caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, com o título Deus e o diabo na terra do sol, em 10 de novembro de 2002.

***** A carta foi reproduzida na mesma edição do caderno Mais! referida na nota precedente.
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Antes de terminar, quero fazer duas recomendações:

1) A TV Univesp dedicou um programa Literatura Fundamental ao livro de Thomas Mann sobre o qual acabamos de falar. O professor Jorge Mattos Brito de Almeida é o convidado.
Link para o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=v1ypNe9oYWM

2) O poeta e filósofo Antonio Cicero, no seu ótimo blog Acontecimentos (listado na coluna à direita como um dos preferidos da casa), reproduziu por lá há alguns anos uma apresentação que ele havia feito para a 3ª edição d' A montanha mágica publicada no Brasil.
Link para o texto: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/04/apresentao-de-montanha-mgica-de-thomas.html

BG de Hoje

Serei sincero: música clássica/erudita/lírica não é minha praia. Não tenho em minha modesta coleção de discos nenhum exemplar do gênero. Vou colocar uma composição dessas no BG apenas para fingir que sou inteligente e requintado. Só que vou escolher uma peça conhecidíssima, mesmo para quem não circula com desenvoltura na área da música clássica/erudita/lírica: trata-se da abertura da ópera Carmen, de GEORGES BIZET (no vídeo abaixo, executada pela Orquestra da Royal Opera House, de Londres, sob a regência do célebre maestro indiano Zubin Mehta). É oportuno dizer que Carmen é uma das obras que o personagem Hans Castorp mais ouvia no sanatório Berghof (embora o trecho descrito por Thomas Mann no livro seja outro).

sexta-feira, 4 de março de 2016

Sobre A montanha mágica ou A importância das notas de rodapé (II)


Hans Castorp, o personagem central d' A montanha mágica*, aos vinte e poucos anos, era "antes [de se considerar outros traços psicológicos] lerdo e pouco inspirado", segundo o narrador. Confirma-se ao longo dos quatro primeiros capítulos, sobretudo, que o jovem "era paciente por natureza e bem capaz de passar muito tempo sem nada fazer. Conforme nos recordamos, adorava esse lazer [um dos repousos prescritos aos internos do sanatório Berghof,] que nenhuma atividade atordoadora ousa obliterar, consumir, afugentar", mesmo sendo, naquela ocasião, só um visitante. O narrador empenha-se sempre "em apresentá-lo nem melhor nem pior do que era [...]"

Nos dois primeiros terços do romance, percebemos que o protagonista não é especialmente notável por sua personalidade, gestos ou atitudes (nem mesmo por sua aparência, convém acrescentar). É, pois, um típico "herói" da literatura produzida a partir do desencantado século XX. Estamos diante de um jovem burguês europeu do período anterior às duas grandes guerras mundiais, cioso (em demasia, até) do seu papel de "homem civilizado", a salvo dos apertos financeiros e agraciado pelo ócio decorrente de sua posição privilegiada no conjunto das classes sociais.

O espírito contemplativo e a índole afeita à passividade de Hans Castorp servem, no plano geral da obra, para que ele próprio, o narrador e, principalmente, outros personagens cuja influência faz-se sentir sobre o protagonista possam enveredar pelas brenhas da reflexão e do debate filosóficos. A esse respeito, vale a pena nos determos em duas figuras: Lodovico Settembrini e Leo Naphta.

Settembrini - mencionado na postagem inicial desta série - é um literato italiano, liberal (com alguns "arrepios" revolucionários), humanista e encomiasta do progresso científico. Todo o eurocentrismo e a defesa exclusivista da cultura ocidental na obra de Thomas Mann encontram-se concentradas nesse personagem. Settembrini alcunha Hans Castorp de "o filho enfermiço da vida". Em determinado momento da história descobrimos que o literato italiano é maçom.

Naphta, nascido no leste europeu, convertera-se ao catolicismo ao final de sua adolescência (seus pais eram judeus), integrando ulteriormente os quadros da ordem jesuíta. Reacionário ao extremo, tem grande interesse e admiração pela história e a cultura da Idade Média.

De acordo com o crítico literário George Steiner (e para minha total surpresa) ambos são inspirados no mesmo filósofo de carne e osso, o húngaro György Lukács, representando "não apenas sua própria sensibilidade complicada, mas também seu compromisso com uma interpretação dialética da vida"**. Pergunto: quantos leitores saberiam disso?

Não se trata de uma questão irrelevante: Settembrini e Naphta são chaves importantes para a devida compreensão do romance, pois emerge de suas perorações e controvérsias um considerável feixe de conceitos extraídos da Filosofia.

Nas conversas entre eles aparecem, de cambulhada (mas quase sempre apenas subentendidos no discurso) Platão, Locke, Diderot, Bacon, Hegel, Marx, Santo Agostinho, Rousseau, Hume, Schopenhauer, Comte... O resultado das discussões, não raro, termina em obscuridade, uma vez que "as posições [dos dois personagens] não somente eram opostas, como também se confundiam. Os adversários, ao invés de se limitar a combater-se reciprocamente, amiúde se contradiziam a si próprios", nos diz o narrador do romance.

A montanha mágica, como cheguei a aludir na postagem inicial desta série, em última instância, busca - para que se atinja suas camadas de significado mais profundas, quero dizer - um leitor tão culto quanto o autor inscrito na narrativa (não é o caso deste blogueiro). É por isso que notas explicativas numa obra como esta não soariam tão estapafúrdias num primeiro momento. Mas, quando pensamos um pouco melhor, vemos que talvez isso não fosse uma boa solução.

Concluo essa série na próxima postagem.
___________
* MANN, Thomas. A montanha mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 [Tradução de Herbert Caro]

** A observação de George Steiner mencionada nesta postagem foi extraída de um ensaio originalmente publicado no Times Literary Supplement, mas reproduzido (com tradução de Clara Allain) no (extinto) caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, com o título Deus e o diabo na terra do sol, em 10 de novembro de 2002.

BG de Hoje

Deve parecer estranho quando, ao tratar de um livro tão difícil quanto A montanha mágica, eu escolha para BG uma canção do KID ABELHA, grupo que geralmente não é levado a sério pela crítica musical. Pessoalmente, sempre gostei (e muito) da banda. E considero, sem nenhum receio de parecer exagerado ou ridículo, Nada tanto assim uma das melhores letras de música pop que conheço. Tem a leveza e a simplicidade desejáveis nesse tipo de composição, além de tematizar - a seu modo, claro - a difícil relação do tempo com a sobrecarga de informação que marca nossas vidas. E é interessante notar na letra a menção a formas e meios de comunicação hoje considerados obsoletos nesta era internética.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Sobre A montanha mágica ou A importância das notas de rodapé (I)





Durante o feriado do Carnaval, estava relendo um livro de que gosto muito - Texturas: sobre leituras e escritos, da grande Ana Maria Machado (Editora Nova Fronteira, 2001). E um dos textos que o compõem (Clássicos de todas as classes*) tem muito a ver com a experiência resultante de minha primeira (recente e única) leitura da volumosa obra  A montanha mágica**, de Thomas Mann.

"O crítico e ensaísta inglês George Steiner" - escreve Ana Maria Machado - "assinala que até meados do século XX, no pós-guerra, os leitores dos livros compartiam um acervo comum de referências, a partir da Bíblia, da literatura greco-romana, de obras orientais como as Mil e uma noites, dos grandes clássicos medievais, renascentistas e modernos [...]. Qualquer escritor podia ter certeza de que, se por acaso se referisse a Catilina [o conspirador romano invectivado por Cícero] ou Adamastor [um dos titãs mitológicos, que aparece também como personagem n' Os Lusíadas], seus leitores saberiam do que se tratava. Havia um repertório clássico comum que permitia esse entendimento cúmplice".

O público leitor atual, entretanto, formou-se de maneira bem distinta. A escritora, relatando a experiência de apresentar Reinações de Narizinho para o neto, observa que muitas vezes foi preciso "fazer uma longa digressão e contar uma outra história, a cada momento do enredo, interrompendo as peripécias e cortando o ritmo do autor" para esclarecer determinadas passagens do texto de Monteiro Lobato.

Ana Maria Machado, constata, então que

"Hoje em dia, portanto, está desaparecendo essa certeza de que o leitor partilha com o autor um acervo básico de conhecimento dos clássicos. Assim, como Steiner observa, foram começando a aparecer notas aos pés de página nos livros, para explicar certas alusões e referências. A tal ponto que atualmente, diz ele, para ler a maioria das obras não-contemporâneas, em muitos casos seriam necessárias tantas notinhas explicativas que mais da metade da página ficaria comprometida tornando a leitura uma atividade penosa e arrastada, uma verdadeira corrida de obstáculos em câmara lenta".

E o que essas reflexões têm a ver com A montanha mágica? Observemos o excerto abaixo, uma fala do personagem Lodovico Settembrini, um dos pacientes do sanatório para tuberculosos Berghof e "guia" intelectual do jovem Hans Castorp, protagonista do livro:

" - Insisto com o senhor: vele pela sua dignidade! Seja orgulhoso e não se perca no ambiente estranho! Evite este atoleiro, esta ilha de Circe. O senhor não é bastante Ulisses para habitá-la impunemente. Acabará andando de quatro patas. Já está a ponto de se apoiar nas extremidades dianteiras. Daqui a pouco começará a grunhir. Cuidado!"

O personagem d'A montanha mágica faz aqui uma série de alusões à Odisseia, sobretudo ao canto X, cujo "tema" central são as desventuras de Ulisses e seus companheiros em sua primeira passagem pela ilha de Eeia, dominada pela feiticeira Circe, onde parte do grupo é transformada numa vara de porcos. Claro que, provavelmente, essas referências de Settembrini não complicarão muito a vida de um leitor razoavelmente informado, mesmo que este nunca tenha sequer corrido os olhos alguma vez pelo célebre poema de Homero. Entretanto, não se pode dizer o mesmo a respeito de diversas outras passagens do romance de Thomas Mann (inclusive um sem-número de falas do próprio Settembrini). Sente-se, durante a leitura, a necessidade de um certo apoio explicativo para atingir a melhor compreensão possível da obra - e não só em relação às citações literárias clássicas ou aos jogos intertextuais. Uma coisa resta óbvia: o leitor mediano contemporâneo (este blogueiro é um exemplo) definitivamente não está no mesmo nível de erudição do autor (a distância entre o primeiro e o segundo, sendo sincero, deve ser medida em anos-luz). Nesse caso, então, algumas notas de rodapé viriam a calhar. Mas - e a pergunta é crucial - como acrescentar tal recurso de edição/tradução numa obra notadamente robusta, com suas quase mil páginas de escrita meticulosa?

Prossigo com o assunto na próxima postagem.

* MACHADO, Ana Maria. Clássicos de todas as classes. In: __________. Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 138-148

** MANN, Thomas. A montanha mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 [Tradução de Herbert Caro]

BG de Hoje

Outra morte recente bastante sentida no mundo do rock (mais até do que a de outro britânico, Lemmy Kilmister, citada no último BG) foi a de DAVID BOWIE, um verdadeiro gênio da música pop. Confesso, entretanto, que nunca fui um de seus ouvintes mais fiéis. O único disco que tive do artista até hoje foi o ... Ziggy Stardust... . Desse álbum extraio a canção de hoje, Moonage Daydream, com sua arrebatadora levada de guitarra, culminando com o solo monstruoso de Mick Ronson (o músico parecia possuído pelo capeta).


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sobre Morte em Veneza ou A condição do artista



"Quem consegue decifrar a essência e a peculiaridade de uma alma de artista! Quem pode entender a profunda fusão dos instintos de disciplina e devassidão que lhe serve de fundamento!"


Thomas Mann - Morte em Veneza


E o blog Besta Quadrada retorna ao trabalho, prezado(a) eventual leitor(a)

Na última postagem, ano passado, havia feito a observação de que o livro então abordado - A gaivota - tinha como uma de suas "funções" apresentar as concepções de seu autor, Anton Tchekhov, sobre o fazer artístico; mais especificamente, sobre o ofício do escritor. Empreendimento semelhante, podemos dizer, dá-se na novela Morte em Veneza*, do romancista alemão Thomas Mann, publicada pela primeira vez em 1912.

Gustav Aschenbach, o personagem central de Morte em Veneza é, aos 50 anos de idade, um literato consagrado em seu país (para se ter ideia, "o Departamento de Ensino [passou] a incluir páginas de sua autoria nas antologias escolares oficialmente adotadas"). Apesar do prestígio junto à opinião pública, Aschenbach sente que "sua vida começara a declinar" e acometido por uma "estranha expansão de seu íntimo, uma espécie de inquietação errante, um anseio juvenil sedento de distância", decide "tirar férias" da cidade em que vivia, Munique, partindo em viagem para o sul do continente europeu. E "quando se deseja alcançar de um dia para o outro o incomparável, o excepcional, digno da magia dos contos de fada, para onde se vai?". De acordo com o narrador do livro, a resposta é uma só: Veneza.

Assim que chega à cidade italiana, Aschenbach toma uma das famosas gôndolas. E apesar do olhar simpático geralmente dirigido a esse tipo de embarcação, o narrador registra:

"Esse estranho veículo, herança intacta de tempos medievais e tão singularmente negro como, dentre tudo que existe, só um ataúde pode ser, lembra aventuras criminosas e mudas na noite de águas rumorejantes, lembra ainda mais a própria morte, esquifes e sepulturas lúgubres e a derradeira viagem silenciosa".

O condutor dessa gôndola, assim como o viajante visto quase ao acaso no primeiro capítulo, o "jovem postiço" do navio saído de Pula (capítulo 3) e o músico-mendigo, líder da trupe descrita na última seção da narrativa - todos eles partes da mesma alegoria - foram devidamente realçados na adaptação cinematográfica realizada por Luchino Visconti, em 1971. E esses personagens constituem o leitmotiv da obra (são os mensageiros da morte), prenunciando o evento inevitável presente no título do livro, como bem destacou a professora Claudia Sibylle Dornbusch no (ótimo) programa Literatura Fundamental, da Univesp TV (link para o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=YACCGqpZZBQ).

Claudia Dornbusch também ressalta a influência do pensamento nietzschiano na obra de Thomas Mann. Tal influência fica evidenciada no modo como o autor expõe a "fratura" espiritual ocorrida no interior de Gustav Aschenbach. Profundamente racional e metódico ao longo da vida (o personagem "tinha extrema necessidade de disciplina" e "não era um amante do prazer"), Aschenbach, agora apaixonadamente modificado pela aparição do jovem Tadzio, percebe em si os traços da euforia proporcionada pelo desregramento do ato de criar. Thomas Mann corporifica no personagem central de Morte em Veneza o embate entre os dois princípios que governam o trabalho dos artistas - o apolíneo e o dionisíaco -, tratados por Friedrich Nietzsche n' O nascimento da tragédia no espírito da música (1871).

A despeito da influência assinalada, entretanto, o livro de Mann defronta-se, sobretudo, com o platonismo. As citações quase textuais do Fedro comprovam essa observação (inclusive o trecho daquele famoso diálogo em que se condena a arte, com Platão mais uma vez falando pela boca de Sócrates), assim como as elaboradas reflexões metafísicas do narrador (e do personagem) sobre os conceitos/ideias de Beleza e de Amor. É possível, diria ainda, estabelecer paralelos entre o homoerotismo da convivência "distanciada" de Aschenbach e Tadzio e o homoerotismo da relação mestre-discípulo percebida no texto platônico.

Apesar do seu pequeno número de páginas - não chegam a uma centena - Morte em Veneza, como já dissemos, é, antes de tudo, uma concentrada (e profunda) meditação sobre o fazer artístico: aí reside seu valor. A esse respeito, o capítulo 4 é de especial interesse. De lá, retiro esta passagem belíssima:

"Certamente é bom que o mundo conheça apenas a obra-prima, sem conhecer suas origens e as condições de sua gênese, pois o conhecimento das fontes de onde flui a inspiração do artista muitas vezes confundiria o público, o intimidaria, anulando assim os efeitos da perfeição".

É um livro a nos lembrar todo o tempo (e o excerto acima o confirma) que grandes obras de arte costumam resultar de um espírito dividido, em luta consigo mesmo.

Na próxima postagem, começo a escrever sobre aquele que é considerado por alguns o trabalho mais importante de Thomas Mann: A montanha mágica.
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* MANN, Thomas. Morte em Veneza. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003 [Tradução de Eloísa Ferreira Araújo Silva]

BG de Hoje

No ano passado, o universo do rock perdeu o incomparável Ian Frasier Kilmister - mais conhecido como Lemmy -, a alma e o coração do MOTÖRHEAD, Não posso deixar de mencionar também a morte do baterista Phil "Philthy Animal" Taylor, semanas antes do falecimento de Lemmy. Ambos fizeram parte da formação original do Motörhead e, junto com "Fast" Eddie Clarke, gravaram um dos álbuns mais importantes na história da música pesada: Ace of spades (1980). Desse discaço, escolho The chase is better than the catch.