"Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal em si? Não, isso seria deveras uma empresa tola [...] O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço. É também o elemento da música, que o mede e subdivide, carregando-o de interesse e tornando-o precioso".
Thomas Mann - A montanha mágica
Antes de reiniciar meus choramingos a respeito das (possíveis?, desejáveis?) notas de rodapé, não posso me esquivar de um ponto fundamental, provavelmente o mais importante em toda A montanha mágica*: a questão do tempo. Não nos determos pelo menos um pouco nesse tópico seria falhar miseravelmente em qualquer tentativa de abordagem da obra.
(Caso tenha interesse, a primeira parte desta série de textos está disponível aqui. E a segunda, aqui)
Em muitas páginas do livro de Thomas Mann (como bom romance filosófico que é) surgem tentativas de conceitualização: nesse sentido, pequenos ensaios saborosamente especulativos são esboçados, cujos temas, os mais diversos, vão do hábito de fumar, passando por considerações a respeito de tosses, espirros e frieiras, a quadratura do círculo, até chegar a assuntos que se julgam mais elevados, tais como a definição do amor e uma tentativa de resposta à mãe de todos os questionamentos: o que é a vida? No início do sétimo (e último) capítulo, então - o mais ágil de todos os outros** e no qual a tão propalada ironia do escritor alemão mais se pode captar*** -, temos sem dúvida um mini-tratado sobre o tempo; sobre a relação deste com o exercício da narrativa e com o exercício da música; e, por fim, como é possível compará-las considerando o elemento temporal.
Quando me dei conta de que as 300 primeiras páginas do romance só cobrem sete semanas da trivial vidinha de Hans Castorp não pude refrear uma imprecisa sensação de logro, só dissipada à medida que já não me importava mais em ser "ludibriado" pela escrita meticulosa de Thomas Mann - desinteressada de elementos prosaicos, como ação e enredo, para empenhar-se na virtuosidade estilística (há, por exemplo, uma frase no quinto capítulo, quando Castorp mete-se a estudar fisiologia, cuja extensão - do início ao ponto final - é superior a 20 linhas impressas). Não é pouco o que se está a solicitar do leitor: é preciso que este mantenha de prontidão o distanciamento analítico-interpretativo para não se perder num esquema narrativo pouco habitual, no qual se prescinde de um entrecho pleno de acontecimentos. Afinal, o que torna mágica a montanha é o modo como todos - narrador, leitor, personagens - percebem e se colocam em relação ao tempo.
Além de tudo isso, não se pode esquecer de falar de música, tema frequente em diversas obras do escritor alemão. O protagonista d' A montanha mágica é um intenso apreciador dessa arte e chamava "regência" a seu modo de lidar com o fluxo de seus pensamentos e divagações solitárias (vale lembrar que ele próprio fantasiava ser maestro quando reproduzia os discos na vitrola recém-comprada pelo sanatório). O crítico literário George Steiner afirmou**** que "em suas ficções em prosa, ele [Thomas Mann] realizava a textura das formas musicais (a analogia tanto com Proust quanto com Joyce chama a atenção)". O romancista, por sua vez, numa carta ao filósofo Theodor Adorno enviada em dezembro de 1945, declarou*****: "É curioso: minha relação com a música tem alguma vocação, eu sempre entendi de música literária, sempre me senti meio que um músico, apliquei a técnica da trama musical no romance [...]". Naturalmente, a música aqui aludida é a de caráter clássico, erudito e lírico. Como este blogueiro nada conhece de teoria ou técnicas musicais e nem mesmo sabe orientar-se na história dessa encantadora arte, não vemos meios de nos aprofundarmos neste ponto. Volto então a pensar nas (possíveis?, desejáveis?) notas de rodapé.
Já escrevera antes: para que se atinja suas camadas de significado mais profundas, A montanha mágica busca um leitor tão culto quanto o autor inscrito na narrativa. Um sujeito assim, entretanto, é algo cada vez mais raro hoje em dia... George Steiner, falando do intercâmbio entre Mann e Adorno, observa que "[...] a presunção recíproca de um saber polímata que abrange desde a Antiguidade até Beckett, de Palestrina a Webern, não faz mais parte de nosso mundo". Um livro dessa feitura (e outros como ele) estaria irremediavelmente fadado a ser lido e, quiçá, apreciado apenas por um público altamente especializado, de leitores profissionais (e, portanto, restrito), num futuro não muito distante? E por falar em público altamente especializado, fico só imaginando de que tamanho seria uma edição crítica d' A montanha mágica (um volume adicional seria acrescentado, certamente).
Mas e quanto aos leitores medianos (como este blogueiro)? Estamos condenados a boiar ao longo da obra, sem apanhar certas alusões, desconhecer determinadas referências ou mesmo não compreender um diálogo apenas por ter sido composto num idioma que não dominamos (como a crucial conversa - em francês - entre Hans Castorp e Claudia Chauchat, no final do quinto capítulo)? Não se poderia dispor de notas de rodapé explicativas que nos auxiliassem?
Bem... Num calhamaço desses, como fazer com que caibam tantas notas (porque talvez muitas fossem necessárias)? Como se manteria a boa disposição durante a leitura, tendo que ir e vir do texto às notas durante páginas e mais páginas? Como definir que passagem ou expressão precisaria ser explicada?
Já se vê que seria bem complicado incluir notas de rodapé num livro dessa natureza. Resta saber se uma empreitada dessas seria desejável. O que deve prevalecer: o ritmo de narração e a estrutura da obra como estabelecida pelo autor/editor ou a conveniência de determinado público (provavelmente, contudo, aquele a representar a maior parte dos indivíduos que ainda se dispõem a ler Literatura em nossas sociedades atuais)?
Deixo a pergunta para o(a) eventual leitor(a).
__________
* MANN, Thomas. A montanha mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 [Tradução de Herbert Caro]
** O próprio narrador parece reconhecer isso quando escreve: "Prestemos ao tempo pelo menos tanta honra quanta ainda permite a natureza da nossa história! De todo o modo não sobra mais muita. A narração precipita-se, aos trambolhões, ou - se essa expressão, porventura, soa demais barulhenta - vai se deslizando com a rapidez do vento. Quem indica o nosso tempo é um ponteirozinho que saltita como se medisse segundos, mas cada vez que passa pelo vértice, friamente e sem demorar, significa sabe Deus o quê".
*** Principalmente nas engenhosas ocasiões em que o narrador dirige-se diretamente ao leitor.
****A observação de George Steiner mencionada nesta postagem foi extraída de um ensaio originalmente publicado no Times Literary Supplement, mas reproduzido (com tradução de Clara Allain) no (extinto) caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, com o título Deus e o diabo na terra do sol, em 10 de novembro de 2002.
***** A carta foi reproduzida na mesma edição do caderno Mais! referida na nota precedente.
Antes de terminar, quero fazer duas recomendações:
1) A TV Univesp dedicou um programa Literatura Fundamental ao livro de Thomas Mann sobre o qual acabamos de falar. O professor Jorge Mattos Brito de Almeida é o convidado.
Link para o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=v1ypNe9oYWM
2) O poeta e filósofo Antonio Cicero, no seu ótimo blog Acontecimentos (listado na coluna à direita como um dos preferidos da casa), reproduziu por lá há alguns anos uma apresentação que ele havia feito para a 3ª edição d' A montanha mágica publicada no Brasil.
Link para o texto: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/04/apresentao-de-montanha-mgica-de-thomas.html
Serei sincero: música clássica/erudita/lírica não é minha praia. Não tenho em minha modesta coleção de discos nenhum exemplar do gênero. Vou colocar uma composição dessas no BG apenas para fingir que sou inteligente e requintado. Só que vou escolher uma peça conhecidíssima, mesmo para quem não circula com desenvoltura na área da música clássica/erudita/lírica: trata-se da abertura da ópera Carmen, de GEORGES BIZET (no vídeo abaixo, executada pela Orquestra da Royal Opera House, de Londres, sob a regência do célebre maestro indiano Zubin Mehta). É oportuno dizer que Carmen é uma das obras que o personagem Hans Castorp mais ouvia no sanatório Berghof (embora o trecho descrito por Thomas Mann no livro seja outro).
(Caso tenha interesse, a primeira parte desta série de textos está disponível aqui. E a segunda, aqui)
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Em muitas páginas do livro de Thomas Mann (como bom romance filosófico que é) surgem tentativas de conceitualização: nesse sentido, pequenos ensaios saborosamente especulativos são esboçados, cujos temas, os mais diversos, vão do hábito de fumar, passando por considerações a respeito de tosses, espirros e frieiras, a quadratura do círculo, até chegar a assuntos que se julgam mais elevados, tais como a definição do amor e uma tentativa de resposta à mãe de todos os questionamentos: o que é a vida? No início do sétimo (e último) capítulo, então - o mais ágil de todos os outros** e no qual a tão propalada ironia do escritor alemão mais se pode captar*** -, temos sem dúvida um mini-tratado sobre o tempo; sobre a relação deste com o exercício da narrativa e com o exercício da música; e, por fim, como é possível compará-las considerando o elemento temporal.
Quando me dei conta de que as 300 primeiras páginas do romance só cobrem sete semanas da trivial vidinha de Hans Castorp não pude refrear uma imprecisa sensação de logro, só dissipada à medida que já não me importava mais em ser "ludibriado" pela escrita meticulosa de Thomas Mann - desinteressada de elementos prosaicos, como ação e enredo, para empenhar-se na virtuosidade estilística (há, por exemplo, uma frase no quinto capítulo, quando Castorp mete-se a estudar fisiologia, cuja extensão - do início ao ponto final - é superior a 20 linhas impressas). Não é pouco o que se está a solicitar do leitor: é preciso que este mantenha de prontidão o distanciamento analítico-interpretativo para não se perder num esquema narrativo pouco habitual, no qual se prescinde de um entrecho pleno de acontecimentos. Afinal, o que torna mágica a montanha é o modo como todos - narrador, leitor, personagens - percebem e se colocam em relação ao tempo.
Além de tudo isso, não se pode esquecer de falar de música, tema frequente em diversas obras do escritor alemão. O protagonista d' A montanha mágica é um intenso apreciador dessa arte e chamava "regência" a seu modo de lidar com o fluxo de seus pensamentos e divagações solitárias (vale lembrar que ele próprio fantasiava ser maestro quando reproduzia os discos na vitrola recém-comprada pelo sanatório). O crítico literário George Steiner afirmou**** que "em suas ficções em prosa, ele [Thomas Mann] realizava a textura das formas musicais (a analogia tanto com Proust quanto com Joyce chama a atenção)". O romancista, por sua vez, numa carta ao filósofo Theodor Adorno enviada em dezembro de 1945, declarou*****: "É curioso: minha relação com a música tem alguma vocação, eu sempre entendi de música literária, sempre me senti meio que um músico, apliquei a técnica da trama musical no romance [...]". Naturalmente, a música aqui aludida é a de caráter clássico, erudito e lírico. Como este blogueiro nada conhece de teoria ou técnicas musicais e nem mesmo sabe orientar-se na história dessa encantadora arte, não vemos meios de nos aprofundarmos neste ponto. Volto então a pensar nas (possíveis?, desejáveis?) notas de rodapé.
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Já escrevera antes: para que se atinja suas camadas de significado mais profundas, A montanha mágica busca um leitor tão culto quanto o autor inscrito na narrativa. Um sujeito assim, entretanto, é algo cada vez mais raro hoje em dia... George Steiner, falando do intercâmbio entre Mann e Adorno, observa que "[...] a presunção recíproca de um saber polímata que abrange desde a Antiguidade até Beckett, de Palestrina a Webern, não faz mais parte de nosso mundo". Um livro dessa feitura (e outros como ele) estaria irremediavelmente fadado a ser lido e, quiçá, apreciado apenas por um público altamente especializado, de leitores profissionais (e, portanto, restrito), num futuro não muito distante? E por falar em público altamente especializado, fico só imaginando de que tamanho seria uma edição crítica d' A montanha mágica (um volume adicional seria acrescentado, certamente).
Mas e quanto aos leitores medianos (como este blogueiro)? Estamos condenados a boiar ao longo da obra, sem apanhar certas alusões, desconhecer determinadas referências ou mesmo não compreender um diálogo apenas por ter sido composto num idioma que não dominamos (como a crucial conversa - em francês - entre Hans Castorp e Claudia Chauchat, no final do quinto capítulo)? Não se poderia dispor de notas de rodapé explicativas que nos auxiliassem?
Bem... Num calhamaço desses, como fazer com que caibam tantas notas (porque talvez muitas fossem necessárias)? Como se manteria a boa disposição durante a leitura, tendo que ir e vir do texto às notas durante páginas e mais páginas? Como definir que passagem ou expressão precisaria ser explicada?
Já se vê que seria bem complicado incluir notas de rodapé num livro dessa natureza. Resta saber se uma empreitada dessas seria desejável. O que deve prevalecer: o ritmo de narração e a estrutura da obra como estabelecida pelo autor/editor ou a conveniência de determinado público (provavelmente, contudo, aquele a representar a maior parte dos indivíduos que ainda se dispõem a ler Literatura em nossas sociedades atuais)?
Deixo a pergunta para o(a) eventual leitor(a).
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* MANN, Thomas. A montanha mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 [Tradução de Herbert Caro]
** O próprio narrador parece reconhecer isso quando escreve: "Prestemos ao tempo pelo menos tanta honra quanta ainda permite a natureza da nossa história! De todo o modo não sobra mais muita. A narração precipita-se, aos trambolhões, ou - se essa expressão, porventura, soa demais barulhenta - vai se deslizando com a rapidez do vento. Quem indica o nosso tempo é um ponteirozinho que saltita como se medisse segundos, mas cada vez que passa pelo vértice, friamente e sem demorar, significa sabe Deus o quê".
*** Principalmente nas engenhosas ocasiões em que o narrador dirige-se diretamente ao leitor.
****A observação de George Steiner mencionada nesta postagem foi extraída de um ensaio originalmente publicado no Times Literary Supplement, mas reproduzido (com tradução de Clara Allain) no (extinto) caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, com o título Deus e o diabo na terra do sol, em 10 de novembro de 2002.
***** A carta foi reproduzida na mesma edição do caderno Mais! referida na nota precedente.
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Antes de terminar, quero fazer duas recomendações:
1) A TV Univesp dedicou um programa Literatura Fundamental ao livro de Thomas Mann sobre o qual acabamos de falar. O professor Jorge Mattos Brito de Almeida é o convidado.
Link para o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=v1ypNe9oYWM
2) O poeta e filósofo Antonio Cicero, no seu ótimo blog Acontecimentos (listado na coluna à direita como um dos preferidos da casa), reproduziu por lá há alguns anos uma apresentação que ele havia feito para a 3ª edição d' A montanha mágica publicada no Brasil.
Link para o texto: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/04/apresentao-de-montanha-mgica-de-thomas.html
BG de Hoje
Serei sincero: música clássica/erudita/lírica não é minha praia. Não tenho em minha modesta coleção de discos nenhum exemplar do gênero. Vou colocar uma composição dessas no BG apenas para fingir que sou inteligente e requintado. Só que vou escolher uma peça conhecidíssima, mesmo para quem não circula com desenvoltura na área da música clássica/erudita/lírica: trata-se da abertura da ópera Carmen, de GEORGES BIZET (no vídeo abaixo, executada pela Orquestra da Royal Opera House, de Londres, sob a regência do célebre maestro indiano Zubin Mehta). É oportuno dizer que Carmen é uma das obras que o personagem Hans Castorp mais ouvia no sanatório Berghof (embora o trecho descrito por Thomas Mann no livro seja outro).