segunda-feira, 28 de março de 2016

A escola pública forma leitores?


Após um conciso apanhado histórico, a professora e pesquisadora espanhola Teresa Colomer, no excelente trabalho Andar entre livros: a leitura literária na escola*, afirma:

"A escolarização da população e a sua extensão à etapa adolescente fez pensar que se poderiam ampliar as condutas culturais dos setores cultos minoritários aos demais setores da sociedade. A escola não era responsável unicamente por ensinar a ler, mas também de que todo o mundo o fizesse quando terminados seus estudos. Mas, tal como já assinalamos, os estudos sociológicos mostraram que depois de algumas décadas de extensão dos anos de frequência escolar, o efeito nos hábitos de leitura das sociedades ocidentais não havia sido o esperado. Na atualidade sabemos que aumentaram enormemente a quantidade e a percentagem social dos leitores ocasionais, mas também sabemos que existe uma tendência crescente à diminuição dos leitores assíduos".

O ensino de Literatura - melhor dizendo, o ensinar a ler Literatura - mudou muito, como não poderia deixar de ser, obviamente, ao longo dos anos. A leitura literária, em geral associada às "condutas culturais dos setores minoritários" (o que não significa associar a Literatura com as superfluidades de uma elite "burguesa") não se disseminou pela sociedade de massa, pós-industrial, globalizada, da qual hoje fazemos parte. Se "não era a única responsável por ensinar a ler" (e, reitero, ler Literatura), por que a escola é tão pressionada pelo restante do corpo social a assumir, solitariamente, essa incumbência? Mais: por que "o efeito nos hábitos de leitura" decorrente dessas "décadas de extensão dos anos de frequência escolar", implementados pelo Estado na maioria dos países do mundo, sendo caracterizados, principalmente, pela obrigatoriedade de matrícula e assiduidade a instituições construídas para esse propósito, não foi o que se esperava?

Repito: o livro de Teresa Colomer é excelente, não só pelo que propõe e pelo modo claro e elegante como a autora escreve, mas sobretudo pelas reflexões que nos obriga a fazer. E digo nós, referindo-me aos professores e educadores que atuam na escola pública de educação básica. Andar entre livros também me fez colocar em xeque minhas práticas e ações na tentativa (cada vez mais fracassada) de promover a leitura de obras literárias. O livro, ainda por cima, me encontrou num momento de grande desalento profissional e exaustão emocional após mais de vinte anos atuando em escolas públicas. Boa parte do que escreverei aqui nesta postagem será a mistura da análise de alguns pontos presentes em Andar entre livros com vários desabafos. Peço duplo perdão ao(à) eventual leitor(a): primeiro pelo texto longo, titubeante e lamuriento; depois, pela exacerbação do lado pessoal do blogueiro (aspecto que busco sempre minimizar, mas hoje não será possível).


Antes de prosseguir, preciso ser justo com a autora. O excerto citado anteriormente pode dar a impressão de que Teresa Colomer é pessimista em relação ao papel da escola no que se refere ao ensino/promoção da leitura literária. Não é. Poucos parágrafos após a afirmação citada acima, escreve ela:

"Apesar de tudo, os estudos de sociologia da leitura, centrados no âmbito escolar, mostram que a tarefa realizada pela escola não resulta inútil. Observa-se, por exemplo, que o nível de estudos alcançados é o fator que mais influi nos hábitos de leitura, que os alunos adquirem uma noção de hierarquia entre os textos que lhes ajudam a entender os mecanismos dos fenômenos socioculturais, ou que a função escolar de criar referentes coletivos parece ainda efetiva, já que nas pesquisas de hábitos se reflete o efeito dos títulos lidos nas aulas"

Embora Colomer afirme que seu livro não se resume a "uma proposta sobre didática da leitura", é só observar que, entre as três intenções manifestas do trabalho**, consolida-se fortemente no decorrer das páginas a ideia de que "a leitura de livros cria um itinerário prolongado ao longo de toda a escolaridade obrigatória". Esse itinerário é semelhante a uma escada com corrimão (a analogia é dela). Para a autora, "temos de saber 'onde [os estudantes] estão' para ajudá-los a ampliar progressivamente sua capacidade de fruição". E acrescenta, um pouco mais adiante:

"Talvez tenhamos de reconhecer que, para muitas pessoas, este último acesso à leitura só terá lugar no contexto escolar e como experiência pontual. Ler enriquece a todos até certo ponto, mas como diz o escritor catalão Emili Teixidor, para certas obras o leitor não apenas precisa de ajuda, mas um certo 'valor moral', uma disposição de ânimo de 'querer saber'. Nem todo mundo, nem sempre, o deseja. É útil pensar a educação literária como uma aprendizagem de percursos e itinerários de tipo e valor muito variáveis. A tarefa da escola é mostrar as portas de acesso".

Como se pode ver, embora não o diga explicitamente, Teresa Colomer confere à escola uma importante missão a desempenhar. Este blogueiro, contudo, deixou de acreditar nessa instituição há bastante tempo.

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Ivan Illich, o mais maldito dos pensadores da Educação, com sua verve polêmica e sua radicalidade característica, já disse*** que "a escola, fazendo com que os homens abdiquem da responsabilidade por seu crescimento próprio, leva muitos a uma espécie de suicídio espiritual". Suas palavras são como machadadas no crânio de nós, educadores profissionais:

"Todos aprendemos o como viver sem o auxílio da escola. Aprendemos a falar, pensar, amar, sentir, brincar, praguejar, fazer política e trabalhar sem interferência de professor algum. Mesmo as crianças que estão sob cuidados, dia e noite, de um professor não constituem exceção. Os órfãos, os excepcionais e os filhos de professores escolares adquirem a maioria de seus conhecimentos fora do processo 'educacional' planejado para eles. Os professores deram uma fracassada demonstração quando tentaram incrementar a aprendizagem dos pobres. Os pais pobres que desejam que seus filhos frequentem a escola não se interessam pelo que vão aprender tanto quanto pelo certificado e pelo dinheiro que irão ganhar. E os pais da classe média confiam seus filhos aos cuidados de um professor para resguardá-los de aprender o que os pobres aprendem na rua. As pesquisas educacionais vêm, crescentemente, demonstrando que as crianças aprendem a maior parte do que os professores pretendem ensinar-lhes dos seus grupos de amigos, das histórias em quadrinhos, de observações fortuitas e, sobretudo, da mera participação no ritual escolar. Os professores, na maioria dos casos, obstaculizam esta aprendizagem de assuntos pelo modo como eles as apresentam na escola".

Sei bem que os os pedagogos e professores que se julgam sérios não dão a mínima para a diatribe de Illich (defender uma sociedade desescolarizada). Mas hoje eu é que não estou dando a mínima para os pedagogos e professores que se julgam sérios... Alega-se a todo momento que frequentar a escola é fator de desenvolvimento. Em quase todo o mundo, mesmo em países da extrema periferia do capitalismo, as taxas de escolarização crescem ano a ano. Entretanto, a concentração de renda só faz aumentar e, segundo a OCDE, a distância entre ricos e pobres é a maior nos últimos 30 anos. Nessa toada, fica difícil descobrir exatamente de que forma a escola tem ajudado a tornar o mundo um lugar menos injusto ou para tentar diminuir a iniquidade da opressão econômica.

Alguém pode objetar: "mas a vivência escolar tem significado e importância maiores do que os números frios da economia podem medir". OK, mas tirando os nefelibatas encastelados no corpo docente dos cursos superiores de licenciatura Brasil afora, quem mais acha que as coisas estão bem encaminhadas nas unidades escolares? Principalmente quando se trata do fomento à leitura literária, a inutilidade das intervenções do professor, como Illich mencionou logo acima, é cada vez mais patente.

[Peraí... Por que raios trouxe Ivan Illich para este aranzel? Ah, lembrei-me! Por mais que suas invectivas contra a escola não tenham quase nenhum crédito, somente nelas é que encontro uma válvula de escape para a amargura que sinto todas as vezes ao entrar no ônibus para ir pro trabalho e afundar até as orelhas na "miséria modernizada"**** (termo com o qual o autor de Sociedade sem escolas definia o estágio em que profissionais, estudantes e comunidade escolar - atores de um drama chamado ESCOLA PÚBLICA, encenado 200 dias por ano - estão atolados). Sim, sei que estou sendo particularista e obtuso, ao me recusar a ver também histórias que podem demonstrar o valor da escola. Mas é que hoje só há desânimo, frustração e desgosto em mim. Não estou com nenhuma vontade de ser "gente boa".Pelo menos não hoje.]

Melhor voltar ao livro de Teresa Colomer.

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Ao discutir de que modo a instituição escolar estaria apta a estimular atos de ler e contribuir para o desenvolvimento de certas competências requeridas na leitura literária, Colomer considera que "pode-se afirmar, cada vez com maior segurança e de maneira cada vez mais pormenorizada, que a leitura compartilhada é a base da formação de leitores".

Verifica-se, porém, "a falta de participação sociofamiliar, posto que, frequentemente, não há adultos formando esse entrelaçamento socioafetivo [ligando o texto literário à criança/adolescente] em casa nem no entorno social". Onde então encontrar esses adultos dispostos a falar sobre livros, interessados em compartilhar suas leituras com grupos de crianças e adolescentes? Dentro das escolas, talvez? Acho que não.

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Ezequiel Theodoro da Silva, cujos artigos volta e meia abordam o tema de que estamos falando, acredita que ler é inerente à identidade do professor*****: "Professor, sujeito que lê, e leitura, conduta profissional, são termos indicotomizáveis - um nó que não se pode nem se deve desatar".

Entretanto, ele mesmo admite que

"No Brasil, a formação aligeirada - ou de meia tigela - dos professores, o aviltamento das suas condições de trabalho, o minguado salário e as políticas educacionais caolhas fazem com que os sujeitos do ensino exerçam a profissão sem serem leitores ou, então, sejam tão somente leitores pela metade, pseudoleitores, leitores nas horas vagas, leitores mancos, leitores de cabresto e outras coisas assim. Os resultados desse quadro lamentável e vergonhoso todos sabem: dependência de livros didáticos e outras receitas prontas, desatualização, redundância dos programas de ensino, homogeneização das condutas didáticas, repertório restrito, ausência de habilidades e competências de leitura, estagnação intelectual, etc.".

Numa pesquisa realizada em 2005, envolvendo professores do ensino fundamental de algumas cidades na região de Campinas (SP), Ezequiel Theodoro, entre outras descobertas, observou que:

"a maioria dos professores se desvincula ou diminui a frequência da leitura exatamente no momento em que atingem a sua maturidade intelectual (40 anos), ou seja, no momento em que a leitura seja talvez mais reveladora e profunda do que nas fases anteriores da sua vida".

"[Verificou-se] através do rol de questões do censo [realizado na pesquisa] que a leitura fica alijada dos hábitos de lazer dos professores. Pudemos verificar que prepondera no magistério a leitura de caráter utilitário, para o trabalho, bem dentro da sociedade liberal que promove e incentiva tão unicamente a produtividade do trabalhador, deixando pouco espaço para o lazer ou a recreação, para a leitura de fruição estética".

"Na esfera dos gêneros e tipos de escrita [preferidos pelos professores, de acordo com a pesquisa], o primeiro lugar aos jornais e revistas (à frente de outros materiais) pode indicar um hábito maior de frequentação aos textos da mídia, ao invés de textos científicos e literários, que seria de se esperar de profissionais cuja responsabilidade é promover o conhecimento e transmitir a herança cultural (o saber universal sistematizado) junto às novas gerações".

Nesses mais de 20 anos de trabalho em unidades escolares de ensino fundamental é muito raro conhecer colegas em cujas conversas surjam, espontaneamente, menções ao que estão lendo, aos últimos títulos que adquiriram num sebo ou livraria ou sugestões de livros que se deveria ler (por um motivo ou outro). De acordo com Ezequiel Theodoro da Silva, "a leitura coletiva de textos (professor com professor) é rara ou inexistente nas escolas".

Serão esses indivíduos capazes de auxiliar crianças e adolescentes nos seus "itinerários de [formação da] competência leitora" (para usar uma expressão cara a Teresa Colomer)?
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A escola pública forma leitores? Só agora me dou conta de que, talvez, essa não seja a pergunta certa (insisto em dizer escola pública, pois é nela que estão matriculados mais de 80% dos estudantes da educação básica. NOTA: Se alguém deseja fazer mudanças significativas nos métodos, conteúdos curriculares, concepções didáticas, etc., mudanças estas que cheguem à maioria da população, não dá pra passar ao largo desse fato)Mas por que esse pode não ser o questionamento adequado?

Embora praticamente todas as expectativas estejam voltadas para as unidades escolares em se tratando do assunto, a formação de leitores é um processo de longo prazo, intrincado muitas vezes, relacionado com outros fatores independentes do que se faz (ou se deixa de fazer) em sala de aula (por exemplo, a existência de leitores-modelo espalhados, em bom número, em diversos "postos" da sociedade).

Então, a pergunta adequada talvez fosse: a escola contribui para a formação de leitores? Bem, trata-se de uma instituição que fornece a seus frequentadores, bem ou mal, o meio necessário (alfabetização) para se decodificar o texto escrito. É suficiente? Considerando toda a problemática (mostrada acima) envolvendo o professor na sua condição de leitor - sem falar no ambiente hostil que caracteriza muitas unidades escolares, decorrente da difícil (e, às vezes, agressiva) relação entre estudantes, comunidade e trabalhadores dessas unidades - diria que o papel da escola na formação de leitores tem sido pouco significativo.

Começa mais uma semana de trabalho. Que merda!
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* COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007 [Tradução de Laura Sandroni]

** São elas 1) "traçar uma ponte entre a prática docente e as teorias que podem explicá-la e sustentá-la"; 2) "manter-se dentro dos limites da leitura dos livros, sem pretender abarcar todo o terreno da educação literária"; e 3) "destacar a unidade de ação entre as etapas educativas"

*** ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1973 [Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth]

**** Escreve Illich: "Poucos países permaneceram hoje vítimas da clássica pobreza que era estável e dificilmente vencível. A maioria dos países da América Latina atingiu o ponto de arrancada para o desenvolvimento econômico e consumo competitivo e, portanto, para a pobreza modernizada; seus habitantes aprenderam a pensar como ricos e viver como pobres. Suas leis prescreveram seis ou dez anos de obrigatoriedade escolar. Não só na Argentina, mas também no México e no Brasil, o cidadão médio define a educação adequada pelos padrões norte-americanos, mesmo que a possibilidade de conseguir escolaridade tão prolongada fique restrita a uma pequena minoria. Nesses países, a maioria já está amarrada à escola, isto é, está escolarizada num sentido de inferioridade para com os mais escolarizados".

***** SILVA, Ezequiel Theodoro da. O professor leitor. In: SANTOS, Fabiano dos; MARQUES NETO, José Castilho; RÖSING, Tania M. K. (Org.). Mediação de leitura: discussões e alternativas para a formação de leitores. São Paulo: Global, 2009. p. 23-36

BG de Hoje

Aroeira é uma daquelas canções que ouvi muito quando criança, mas só fui valorizá-la muito mais tarde (um de meus irmãos mais velhos possuía uma coletânea em vinil do GERALDO VANDRÉ). Não sei por que, estou pensando muito nessa faixa desde a semana passada.