sexta-feira, 4 de março de 2016

Sobre A montanha mágica ou A importância das notas de rodapé (II)


Hans Castorp, o personagem central d' A montanha mágica*, aos vinte e poucos anos, era "antes [de se considerar outros traços psicológicos] lerdo e pouco inspirado", segundo o narrador. Confirma-se ao longo dos quatro primeiros capítulos, sobretudo, que o jovem "era paciente por natureza e bem capaz de passar muito tempo sem nada fazer. Conforme nos recordamos, adorava esse lazer [um dos repousos prescritos aos internos do sanatório Berghof,] que nenhuma atividade atordoadora ousa obliterar, consumir, afugentar", mesmo sendo, naquela ocasião, só um visitante. O narrador empenha-se sempre "em apresentá-lo nem melhor nem pior do que era [...]"

Nos dois primeiros terços do romance, percebemos que o protagonista não é especialmente notável por sua personalidade, gestos ou atitudes (nem mesmo por sua aparência, convém acrescentar). É, pois, um típico "herói" da literatura produzida a partir do desencantado século XX. Estamos diante de um jovem burguês europeu do período anterior às duas grandes guerras mundiais, cioso (em demasia, até) do seu papel de "homem civilizado", a salvo dos apertos financeiros e agraciado pelo ócio decorrente de sua posição privilegiada no conjunto das classes sociais.

O espírito contemplativo e a índole afeita à passividade de Hans Castorp servem, no plano geral da obra, para que ele próprio, o narrador e, principalmente, outros personagens cuja influência faz-se sentir sobre o protagonista possam enveredar pelas brenhas da reflexão e do debate filosóficos. A esse respeito, vale a pena nos determos em duas figuras: Lodovico Settembrini e Leo Naphta.

Settembrini - mencionado na postagem inicial desta série - é um literato italiano, liberal (com alguns "arrepios" revolucionários), humanista e encomiasta do progresso científico. Todo o eurocentrismo e a defesa exclusivista da cultura ocidental na obra de Thomas Mann encontram-se concentradas nesse personagem. Settembrini alcunha Hans Castorp de "o filho enfermiço da vida". Em determinado momento da história descobrimos que o literato italiano é maçom.

Naphta, nascido no leste europeu, convertera-se ao catolicismo ao final de sua adolescência (seus pais eram judeus), integrando ulteriormente os quadros da ordem jesuíta. Reacionário ao extremo, tem grande interesse e admiração pela história e a cultura da Idade Média.

De acordo com o crítico literário George Steiner (e para minha total surpresa) ambos são inspirados no mesmo filósofo de carne e osso, o húngaro György Lukács, representando "não apenas sua própria sensibilidade complicada, mas também seu compromisso com uma interpretação dialética da vida"**. Pergunto: quantos leitores saberiam disso?

Não se trata de uma questão irrelevante: Settembrini e Naphta são chaves importantes para a devida compreensão do romance, pois emerge de suas perorações e controvérsias um considerável feixe de conceitos extraídos da Filosofia.

Nas conversas entre eles aparecem, de cambulhada (mas quase sempre apenas subentendidos no discurso) Platão, Locke, Diderot, Bacon, Hegel, Marx, Santo Agostinho, Rousseau, Hume, Schopenhauer, Comte... O resultado das discussões, não raro, termina em obscuridade, uma vez que "as posições [dos dois personagens] não somente eram opostas, como também se confundiam. Os adversários, ao invés de se limitar a combater-se reciprocamente, amiúde se contradiziam a si próprios", nos diz o narrador do romance.

A montanha mágica, como cheguei a aludir na postagem inicial desta série, em última instância, busca - para que se atinja suas camadas de significado mais profundas, quero dizer - um leitor tão culto quanto o autor inscrito na narrativa (não é o caso deste blogueiro). É por isso que notas explicativas numa obra como esta não soariam tão estapafúrdias num primeiro momento. Mas, quando pensamos um pouco melhor, vemos que talvez isso não fosse uma boa solução.

Concluo essa série na próxima postagem.
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* MANN, Thomas. A montanha mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 [Tradução de Herbert Caro]

** A observação de George Steiner mencionada nesta postagem foi extraída de um ensaio originalmente publicado no Times Literary Supplement, mas reproduzido (com tradução de Clara Allain) no (extinto) caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, com o título Deus e o diabo na terra do sol, em 10 de novembro de 2002.

BG de Hoje

Deve parecer estranho quando, ao tratar de um livro tão difícil quanto A montanha mágica, eu escolha para BG uma canção do KID ABELHA, grupo que geralmente não é levado a sério pela crítica musical. Pessoalmente, sempre gostei (e muito) da banda. E considero, sem nenhum receio de parecer exagerado ou ridículo, Nada tanto assim uma das melhores letras de música pop que conheço. Tem a leveza e a simplicidade desejáveis nesse tipo de composição, além de tematizar - a seu modo, claro - a difícil relação do tempo com a sobrecarga de informação que marca nossas vidas. E é interessante notar na letra a menção a formas e meios de comunicação hoje considerados obsoletos nesta era internética.