segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sobre Morte em Veneza ou A condição do artista



"Quem consegue decifrar a essência e a peculiaridade de uma alma de artista! Quem pode entender a profunda fusão dos instintos de disciplina e devassidão que lhe serve de fundamento!"


Thomas Mann - Morte em Veneza


E o blog Besta Quadrada retorna ao trabalho, prezado(a) eventual leitor(a)

Na última postagem, ano passado, havia feito a observação de que o livro então abordado - A gaivota - tinha como uma de suas "funções" apresentar as concepções de seu autor, Anton Tchekhov, sobre o fazer artístico; mais especificamente, sobre o ofício do escritor. Empreendimento semelhante, podemos dizer, dá-se na novela Morte em Veneza*, do romancista alemão Thomas Mann, publicada pela primeira vez em 1912.

Gustav Aschenbach, o personagem central de Morte em Veneza é, aos 50 anos de idade, um literato consagrado em seu país (para se ter ideia, "o Departamento de Ensino [passou] a incluir páginas de sua autoria nas antologias escolares oficialmente adotadas"). Apesar do prestígio junto à opinião pública, Aschenbach sente que "sua vida começara a declinar" e acometido por uma "estranha expansão de seu íntimo, uma espécie de inquietação errante, um anseio juvenil sedento de distância", decide "tirar férias" da cidade em que vivia, Munique, partindo em viagem para o sul do continente europeu. E "quando se deseja alcançar de um dia para o outro o incomparável, o excepcional, digno da magia dos contos de fada, para onde se vai?". De acordo com o narrador do livro, a resposta é uma só: Veneza.

Assim que chega à cidade italiana, Aschenbach toma uma das famosas gôndolas. E apesar do olhar simpático geralmente dirigido a esse tipo de embarcação, o narrador registra:

"Esse estranho veículo, herança intacta de tempos medievais e tão singularmente negro como, dentre tudo que existe, só um ataúde pode ser, lembra aventuras criminosas e mudas na noite de águas rumorejantes, lembra ainda mais a própria morte, esquifes e sepulturas lúgubres e a derradeira viagem silenciosa".

O condutor dessa gôndola, assim como o viajante visto quase ao acaso no primeiro capítulo, o "jovem postiço" do navio saído de Pula (capítulo 3) e o músico-mendigo, líder da trupe descrita na última seção da narrativa - todos eles partes da mesma alegoria - foram devidamente realçados na adaptação cinematográfica realizada por Luchino Visconti, em 1971. E esses personagens constituem o leitmotiv da obra (são os mensageiros da morte), prenunciando o evento inevitável presente no título do livro, como bem destacou a professora Claudia Sibylle Dornbusch no (ótimo) programa Literatura Fundamental, da Univesp TV (link para o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=YACCGqpZZBQ).

Claudia Dornbusch também ressalta a influência do pensamento nietzschiano na obra de Thomas Mann. Tal influência fica evidenciada no modo como o autor expõe a "fratura" espiritual ocorrida no interior de Gustav Aschenbach. Profundamente racional e metódico ao longo da vida (o personagem "tinha extrema necessidade de disciplina" e "não era um amante do prazer"), Aschenbach, agora apaixonadamente modificado pela aparição do jovem Tadzio, percebe em si os traços da euforia proporcionada pelo desregramento do ato de criar. Thomas Mann corporifica no personagem central de Morte em Veneza o embate entre os dois princípios que governam o trabalho dos artistas - o apolíneo e o dionisíaco -, tratados por Friedrich Nietzsche n' O nascimento da tragédia no espírito da música (1871).

A despeito da influência assinalada, entretanto, o livro de Mann defronta-se, sobretudo, com o platonismo. As citações quase textuais do Fedro comprovam essa observação (inclusive o trecho daquele famoso diálogo em que se condena a arte, com Platão mais uma vez falando pela boca de Sócrates), assim como as elaboradas reflexões metafísicas do narrador (e do personagem) sobre os conceitos/ideias de Beleza e de Amor. É possível, diria ainda, estabelecer paralelos entre o homoerotismo da convivência "distanciada" de Aschenbach e Tadzio e o homoerotismo da relação mestre-discípulo percebida no texto platônico.

Apesar do seu pequeno número de páginas - não chegam a uma centena - Morte em Veneza, como já dissemos, é, antes de tudo, uma concentrada (e profunda) meditação sobre o fazer artístico: aí reside seu valor. A esse respeito, o capítulo 4 é de especial interesse. De lá, retiro esta passagem belíssima:

"Certamente é bom que o mundo conheça apenas a obra-prima, sem conhecer suas origens e as condições de sua gênese, pois o conhecimento das fontes de onde flui a inspiração do artista muitas vezes confundiria o público, o intimidaria, anulando assim os efeitos da perfeição".

É um livro a nos lembrar todo o tempo (e o excerto acima o confirma) que grandes obras de arte costumam resultar de um espírito dividido, em luta consigo mesmo.

Na próxima postagem, começo a escrever sobre aquele que é considerado por alguns o trabalho mais importante de Thomas Mann: A montanha mágica.
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* MANN, Thomas. Morte em Veneza. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003 [Tradução de Eloísa Ferreira Araújo Silva]

BG de Hoje

No ano passado, o universo do rock perdeu o incomparável Ian Frasier Kilmister - mais conhecido como Lemmy -, a alma e o coração do MOTÖRHEAD, Não posso deixar de mencionar também a morte do baterista Phil "Philthy Animal" Taylor, semanas antes do falecimento de Lemmy. Ambos fizeram parte da formação original do Motörhead e, junto com "Fast" Eddie Clarke, gravaram um dos álbuns mais importantes na história da música pesada: Ace of spades (1980). Desse discaço, escolho The chase is better than the catch.