quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Sufocar a loucura do escrever



No último fim de semana, lendo A gaivota, de Anton Tchekhov, fiquei um bom tempo matutando sobre o ofício da escrita literária, principalmente depois de topar com esta fala do personagem Trigórin:

"Se eu morasse numa propriedade como esta, à beira de um lago, vocês acham que eu teria vontade de escrever? Eu trataria de sufocar essa loucura e não faria outra coisa senão pescar no lago"

Convém, entretanto, ressaltar que pode não haver sinceridade no que foi dito - a vontade de escrever, qualquer um poderia objetar, em nada se assemelha à loucura. Além disso, segundo Trepliov (outro personagem da peça, também um escritor), "Trigórin desenvolveu algumas técnicas para uso próprio e assim ficou fácil para ele...". Falemos um pouco dessas duas figuras.

O jovem Trepliov é melancólico e inseguro. Acredita que a dramaturgia (e a literatura, por extensão) precisa de "formas novas" ("Formas novas são indispensáveis e, se não existirem, então é melhor que não haja nada"). Mas, no último ato de A gaivota, revê suas convicções iniciais:

"Cada vez mais me convenço de que a questão não consiste em formas novas e formas velhas, mas sim em que a pessoa escreva sem pensar em formas, sejam quais forem, que ela escreva porque isso flui livremente da sua alma".

Por sua vez, Trigórin, homem já de meia idade, é um autor renomado na Rússia (embora aqueles que passarem pelo seu túmulo, no futuro, talvez digam: " 'Aqui jaz Trigórin. Foi um bom escritor, mas não escrevia tão bem quanto Turguêniev' ").

E entre esses dois, existe Nina, uma ingênua moça do interior, aspirante a atriz. Após um período de desilusão e sofrimento em Moscou, ela afirma agora compreender que

"no nosso trabalho, representando no palco ou escrevendo, o que importa não é a glória, não é o esplendor, não é aquilo com que eu tanto sonhava, mas sim a capacidade de suportar. Aprenda a carregar a sua cruz e acredite. Eu acredito e, assim, nem sofro tanto e, quando penso na minha vocação, não sinto medo da vida".

A narrativa de Tchekhov assume duas funções. A primária, obviamente, é ser uma peça de teatro na qual, vale notar, a ação é sofreada pelos devaneios e frustrações confessadas de seus personagens (sem qualquer prejuízo, é bom que se diga, para a qualidade do texto). E a função secundária é veicular algumas das reflexões do autor sobre o fazer literário.

O que se pode concluir a partir daí?

Tchekhov parece não estar disposto a conceber o trabalho do escritor como sendo apenas uma questão de escolher as palavras certas para compor uma história qualquer. Sobre as falas de alguns personagens de A gaivota paira a sensação de que produzir arte deve ser algo mais profundo do que isso: Trepliov alude à importância da "alma"; Nina fala em "carregar a sua cruz". Até mesmo o profissional e bem sucedido Trigórin, numa conversa com a garota interiorana que o admirava, declara:

"E é sempre assim, sempre, nunca dou sossego a mim mesmo e tenho a sensação de que estou devorando a minha própria vida, tenho a sensação de que, para fabricar o mel que entrego, num vazio, a pessoas que nem mesmo sei quem são, eu retiro o pólen das minhas melhores flores, arranco da terra essas mesmas flores e pisoteio suas raízes". 

Um pouco mais à frente, Trigórin revela a própria insegurança, mesmo sendo uma celebridade literária:

"Será que não estou louco? Será que meus conhecidos e amigos se dirigem a mim como a uma pessoa sã? 'O que o senhor anda escrevendo? Com que nos brindará a seguir?' Sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, e fico com a impressão de que essa atenção de meus conhecidos, os elogios, a admiração, tudo isso é uma mentira, tenho a sensação de que estão me enganando, como fazem com uma pessoa doente, e às vezes tenho medo de que eles se aproximem sorrateiramente pelas minhas costas, me agarrem e me arrastem para o hospício, como ocorreu a Popríchin, o personagem de Gógol"

Por que diabos algumas pessoas se metem a fazer literatura/arte? - essa parece ser uma das questões a emergir nessa valiosa peça de Anton Tchekhov. Felizmente, para nós, apreciadores desse ofício, autores e autoras de talento (como o dramaturgo russo) preferiram não sufocar em si a loucura do escrever

* TCHEKHOV, Anton. A gaivota. São Paulo: Cosac & Naify, 2004 [Tradução de Rubens Figueiredo]
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Este blog encerra seus trabalhos no ano de 2015 e retornará ao batente - espero - em 1º de fevereiro do próximo ano. Ao(à) eventual leitor(a), boas festas e um aprazível (ou pelo menos suportável) 2016!

BG de Hoje

Este foi um dos piores anos da minha vida. Para encerrá-lo, acho que seria bem adequado escutar uma canção de que sempre gostei, desde garoto: Nostradamus, de EDUARDO DUSEK