segunda-feira, 23 de maio de 2011

Nocautes (5)


ESCLARECIMENTO: Dias atrás, através do Facebook, um amigo "cobrou-me" uma série de postagens que eu abandonara, cujo nome é Nocautes (em referência àquela célebre frase de Julio Cortázar: "Nesse combate que se trava entre um texto apaixonante e o leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por knock-out") . Decidi, então, retomá-la. A série é sobre os dez contos brasileiros que mais aprecio. Já escrevi a respeito de Roupinha de marinheiro, de Dalton Trevisan (aqui); Sorôco, sua mãe, sua filha, de João Guimarães Rosa (aqui); O homem que sabia javanês, escrito por Lima Barreto (aqui); e Feliz aniversário, de Clarice Lispector (aqui). Falta falar ainda sobre Pequenas distrações, de Gregório Bacic; Onde andam os didangos?, de José J. Veiga; O colocador de pronomes, de Monteiro Lobato; Missa do Galo (Machado de Assis); e A confissão de Leontina, de Lygia Fagundes Telles. Também falta O cobrador *, de Rubem Fonseca. Mas deste falo hoje mesmo.

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O COBRADOR - Rubem Fonseca

Antes de discutir propriamente a narrativa, preciso, mais uma vez, render-me ao poder da ficção literária. O narrador-personagem desse conto descreve-nos crimes em sequência, ao mesmo tempo que os executa: lesão corporal grave, uma tentativa de homicídio, um estupro, quatro assassinatos. Não obstante (e confesso com certo embaraço), durante a leitura do conto, uma figura tal não me provoca aversão. Estranha empatia provocada pela Literatura...

Pois bem. Há brutalidade e violência em todo o conto - atmosfera familiar a qualquer leitor de Rubem Fonseca. Entretanto, no caso d' O cobrador, esta brutalidade e essa violência estão a serviço de uma missão (assimilável ou não pela moralidade e a axiologia do leitor, sendo este um dos "sabores" do texto).

Se no início do conto a dívida a ser cobrada está circunscrita à esfera pessoal de quem narra, ao final - com a ajuda de Ana Palindrômica - a cobrança passa por uma "mudança de escala":

"Matar um por um é coisa mística e disso me libertei. [...] Nada de sair matando a esmo, sem objetivo definido. Eu não sabia o que queria, não buscava um resultado prático, meu ódio estava sendo desperdiçado. Eu estava certo nos meus impulsos, meu erro era não saber quem era o inimigo e por que era inimigo".

De  revoltado  para  revolucionário?

Porque, talvez, uma das únicas diferenças entre revolta revolução esteja no alcance e na profundidade das ações violentas. A Literatura, desobrigada dos modelos explicativos assumidos pela História, a Sociologia ou a Ciência Política, por exemplo, segue seu próprio caminho... E nasce a pergunta que coloca o dedo na ferida (e este chavão é apropriado ao falarmos de Rubem Fonseca): há alguma possibilidade de mudança social verdadeiramente digna desse nome (abolindo privilégios econômicos de classe e de casta, por exemplo) sem emprego de  violência? Eu, mineiro da cachaça antiga, não arrisco resposta. Além do mais, vale lembrar que Rubem Fonseca, fora do trabalho de ficcionista, nunca foi um insubmisso ao  status quo.

Voltemos ao conto, porém.

Há um trecho n' O cobrador que acho magnífico. Quando o ódio do narrador-personagem arrefece (e, consequentemente, sua motivação para a ação diminui), ele se senta na frente da televisão. Num único parágrafo, é possível ver toda a perversidade oculta (ou nem tão oculta assim) existente no conluio entre a comunicação de massa e a publicidade, numa sociedade altamente desigual:

"Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero muito pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora estão ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por esperar".

Rubem Fonseca escreveu outros bons contos. Mas O cobrador, acho eu, chegou perto da excelência.

Na próxima postagem, Pequenas distrações, de Gregório Bacic.
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* FONSECA, Rubem. O cobrador. In: ______________. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 491-507 

BG de Hoje

Direto ao ponto: BLACK SABBATHWar pigs.