Pouco tempo depois do lançamento do livro Guardar, em entrevista concedida ao jornal Estado de São Paulo (disponível no site do poeta), Antonio Cicero - também filósofo - afirmou que
"A poesia não pretende dizer nenhuma verdade, são palavras gratuitas, são proezas, não têm a obrigação de existir. Já a filosofia, pelo menos a filosofia que me interessa, tem a pretensão de dizer verdades e até verdades absolutas. E eu acho que precisam ser ditas".
É interessante (e tentador) atribuir a qualquer poeta a imagem de insubordinado, intuitivo e aos filósofos, qualificativos do tipo rigoroso, metódico, mesmo sabendo que os papéis são às vezes trocados. O lado filósofo do autor torna, para meu gosto, ainda mais atraente o seu lado poeta. NOTA: Todavia, como observei na postagem anterior, Cicero faz questão de separar claramente os dois campos de atuação.
Na mesma entrevista, quando perguntado se o exercício da filosofia inibiu o da poesia, Cicero declara:
"[...] A poesia exige tempo livre, você tem de estar inteiramente dedicado a ela ou não consegue escrever direito. Ela tem um lado que não parece sério. Você está o tempo todo brincando com as palavras e isso pode resultar em algo, mas pode ser apenas delírio. Eu tinha muitas verdades filosóficas engasgadas. Brincar com as palavras me dava sempre muita culpa".
Mas fazer (e ler) poemas é um pouquinho mais do que apenas brincar com as palavras...
Num artigo intitulado O que é poesia?*, Antonio Cicero apresenta o seguinte argumento:
"[...] suponho que a poesia é aquilo que faz de um poema um poema, escrevi uma vez que ela consiste no grau de escritura de um texto. A ideia é que um poema (bem) realizado é um texto dotado de um altíssimo grau de escritura".
O termo escritura, aqui, refere-se, principalmente, à permanenência e fixidez de um texto. Para o poeta,
"[...] dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas. Por quê? Porque consistem em formas puras. No limite, não há, neles, diferença entre o que dizem e o modo como o dizem. Como não se pode, num poema separar o significado do significante, a rigor não se pode dizer em outras palavras o seu significado".
A expressão forma pura pode causar algum desconforto pois talvez seja interpretada como forma "desideologizada". Acredito não ser bem isso o teor do que diz Cicero. É apropriado, então, ler o artigo A poesia escrita**.
Diante das queixas esporádicas sobre uma "pretensa anemia poética" existente na atualidade, costumam surgir duas propostas de "terapia": 1) a transformação do poeta em "performer dos seus próprios poemas", recuperando a oralidade original do fazer poético; 2) a imersão do poeta "no seu contexto cultural", refletindo, nas suas obras, "uma tomada de posição em relação a ele" (para Antonio Cicero, essa segunda "terapia" nasce do "velho e compreensível ressentimento contra as torres de marfim").
O autor vê limitações nas duas propostas porque derivam "da dificuldade [...] de lidar com a exigência extrema e singular que a poesia escrita impõe não somente ao poeta, mas ao leitor".
Num poema, interessa a sua forma:
"são as palavras e sintagmas de que o poema se compõe; seus sentidos, sua sonoridade, seu ritmo, suas relações paronomásicas, suas aliterações, suas rimas, seus assíndetos, as relações icônicas que estabelecem... E o poema é lido, relido e comparado e contrastado, em princípio, com todos os poemas que o leitor conhece".
Interessa também o que o poema nos provoca: "temos que lhe dedicar o nosso tempo, convocando e deixando que interajam uns com os outros todos os recursos de que dispomos: intelecto, experiência, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor, etc."
Cicero, ao final deste artigo, reconhece que a leitura de poemas não é popular como outras formas de manifestação artística. Mas, pergunta ele, por que deveria ser?
E acrescenta:
"Há, de fato, tantos grandes filmes, discos e concertos de rock... Os poetas escrevem, em primeiro lugar, para aqueles que, como eles, acham que há algo incomparável à leitura de um grande poema".
. . . . . .
Faria uma análise de um texto muito bonito de Antonio Cicero. Porém, como a postagem ficou bem extensa, apenas transcrevo-o abaixo e cada leitor(a) apreenda-o como desejar:
CANÇÃO DA ALMA CAIADA
Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar
Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei
Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento apagar no mar
O fogo em que quero arder
De dia caio minh'alma
Só à noite caio em mim
por isso me falta a calma
e vivo inquieto assim
* CICERO, Antonio. O que é poesia? Folha de S. Paulo, São Paulo, 03 abr. 2010. Caderno Ilustrada, p. 10
** CICERO, Antonio. A poesia escrita. Folha de S. Paulo, São Paulo, 01 dez. 2007. Caderno Ilustrada, p. 15
BG de Hoje
Hoje não incluo nenhuma canção