"Ora, a crítica política não se ocupa somente com ideias mas também com as condutas que tais ideias mascaram em vez de exprimir"
Maurice Merleau-Ponty
Um dos três livros que pretendo comprar em breve e ler durante as benditas e intensamente desejadas férias é Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, da filósofa e escritora Márcia Tiburi.
O Brasil atravessa, a meu ver, um período no qual declarações e posicionamentos reacionários e antidemocráticos são despejados na esfera pública sem o menor pejo, muitas vezes intimidando ou calando à força as vozes divergentes. Seus arautos estão por quase toda parte: lideranças religiosas das igrejas caça-níqueis, parlamentares filhotes-da-ditadura, "celebridades" televisivas de talento questionável, jornalistas paus-mandados dos chefões da nossa mídia oligopolizada... Isso sem falar nos milhões de "comentaristas de redes sociais", com sua truculência, grosseria e desinformação, infestando o Twitter, Facebook e Whatsapp, vinte e quatro horas por dia. O livro de Márcia Tiburi, espero, talvez possa me ajudar a respirar e pensar melhor nesse pântano de involução política em que estamos nos atolando.
Os reacionários com pretensões autoritárias de nossos dias são frequentemente chamados de fascistas. Essa denominação é válida?
Penso que sim.
Embora o fascismo, stricto sensu, esteja relacionado ao período entre 1922 (quando Benito Mussolini chega pela primeira vez ao poder na Itália) e 1945 (quando o ditador é fuzilado), seu ideário, obviamente, não ficou circunscrito a um único país, nem deixou de se propagar através do tempo. O fascismo, como um conjunto organizado de princípios, sobrevive em estado de latência em nosso tempo - algumas vezes sendo testado e revivido na prática, para nosso repúdio, horror e vergonha. Seus ideólogos contemporâneos dificilmente se assumirão como tal em público. Nada, porém, nos autoriza a considerá-lo uma etapa histórica já vencida.
Entretanto, é preciso notar que, durante uma certa época pelo menos, aqueles encarregados das tarefas mais intelectualizadas entre os defensores e entusiastas do fascismo não agiam dissimuladamente quando se tratava de afirmar sua ideologia com todas as letras. É a um desses indivíduos que o filósofo Maurice Merleau-Ponty se dirige, especificamente, no ensaio Em torno do marxismo*. Apesar de reconhecer que há "lucidez", bem como "honestidade e vigor", nas reflexões de um tal Thierry Maulnier (o autor de direita cujos textos critica), Merleau-Ponty procura demonstrar que essas mesmas reflexões são conformistas e retrógradas pois cessam "de fato de escolher a revolução".
É estranho, reconheço, escrever sobre um artigo (quase) de circunstância publicado há 70 anos. É estranho, sobretudo, quando, como gosta de dizer certa gente influente e "formadora de opinião", estaríamos vivenciando uma era "pós-ideológica". Tenho, entretanto, duas intenções: a primeira é lembrar que o debate político, ao longo da história, nem sempre ficou amesquinhado pelo disse-me-disse dos bastidores da administração estatal ou pelas torcidas organizadas de agremiações partidárias; e a segunda é reconhecer que contrapor-se ao fascismo, na primeira metade do século passado, tinha um outro sentido - mais profundo, talvez. Tentemos compreender isso um pouco melhor.
Se considerarmos o fascismo (mesmo que apenas) em seu sentido estrito, verificaremos que muitas atitudes e opiniões circulando atualmente na esfera pública nacional e internacional refletem concepções fascistas já presentes nos anos 1920, tais como racismo, xenofobia, apego ao militarismo, defesa do estabelecimento dos regimes de exceção a qualquer momento e desprezo pela noção de direitos humanos válidos para todos. Acrescentaria, ainda, o comportamento hostil em relação às minorias e o anti-intelectualismo. Mas deve-se lembrar que, em suas origens, o fascismo pretendia instaurar uma nova sociedade a partir, sobretudo, de ações "salvadoras" na economia. E é no campo econômico que se nota a diferença entre os fascismos contemporâneos e o fascismo "original", digamos assim.
Regimes políticos fascistas caracterizavam-se por um enorme intervencionismo estatal na atividade econômica, visando incrementar áreas consideradas estratégicas, sobretudo aquelas ligadas ao setor bélico. Sabemos, contudo, que muitos dos reacionários atuais têm verdadeiro horror a controles e regulamentações, de qualquer natureza (principalmente da parte do Estado), quando se trata de seu deus, o Mercado**.
Merleau-Ponty escreveu Em torno do marxismo num contexto em que o debate ideológico ainda era muito relevante, já que se tratava de apontar, de forma crucial, como a sociedade deveria conduzir-se (ou ser conduzida) economicamente. De uns tempos pra cá, lamentavelmente, esse debate não parece fazer mais sentido, pois somos levados a crer que o mundo como o conhecemos não pode ser mudado.
Como bom marxista, Merleau-Ponty acredita que "se conhecerá mais seguramente a essência de uma sociedade pela análise das relações inter-humanas cristalizadas e generalizadas na vida econômica do que pela análise de movimentos de ideias frágeis e fugazes, assim como se conhece melhor o homem por suas condutas do que por seus pensamentos" [grifos meus]
Por isso sua critica ao fascismo tenciona saber quais mudanças estruturais, de natureza econômica, esse ideário político poderia apresentar. Em termos marxistas: como ele resolveria a questão fundamental da luta de classes?
"[...] a igualdade formal dos direitos e a liberdade política mascaram relações de força, em vez de suprimi-las"... Posso até participar de eleições periodicamente e imaginar que meu direito a um salário digno ou a igualdade perante a lei estão assegurados. Tudo isso, entretanto, é ilusório. Bilhões de indivíduos como eu (e outros tantos ainda mais pobres) somos manietados e arrastados diariamente pelas decisões tomadas por conglomerados empresariais globais e pelo setor bancário transnacional, para os quais o bem-estar das pessoas localizadas na base da pirâmide econômica é irrelevante. Diante dessa situação, como não reconhecer que a luta de classes - opondo os detentores do capital e plutocratas ao restante de nós - é um traço definidor da realidade? E que a grande batalha é tentar "instituir estruturas sociais e relações reais" que possam tornar efetivas "a liberdade, a igualdade e o direito"?
Mas essas questões não são sequer cogitadas pelos fascistas. Aferrados a um conceito não igualitário de sociedade, a "solução" que poderiam apresentar para os problemas sociais passa, inevitavelmente, pelo que pensam as suas elites dirigentes. E estas são o núcleo-duro do conservadorismo econômico e político, posicionado no lado que está, há séculos, vencendo a luta de classes.
Para Merleau-Ponty - assim como para boa parte dos pensadores marxistas - as condições de existência só serão alteradas por meio da ação revolucionária. É preciso admitir, contudo, que um dos motivos pelos quais o marxismo é desprestigiado hoje em dia tem a ver com o fato de que a ideia de revolução foi perdida.
De todo modo, apesar de meu conformismo, procurarei sempre ter em mente estas palavras, com as quais encerro a postagem de hoje:
* MERLEAU-PONTY, Maurice. Em torno do marxismo. São Paulo: Abril Cultural, 1980. [Tradução de Marilena Chauí] (Coleção Os pensadores)
** Há ainda, para o fascismo "original" outra deusa - no caso, a Nação. O integralismo de Plínio Salgado, nos anos 1930, manteve essa tendência ultranacionalista aqui no Brasil. Porém, é curioso notar que muitos brasileiros de hoje, entusiastas de ideias e noções de cunho fascista, apesar de vestirem o verde e amarelo quando se manifestam, têm imenso desejo de se mudar para o estrangeiro, principalmente para os EUA.
Semana passada assisti a um programa de TV, no estilo documentário, sobre o Nirvana. Deu-me então uma grande vontade de rememorar a cena grunge (na minha opinião, o último grande momento criativo do velho rock). Passei um fim-de-semana todo ouvindo os discos de Kurt Cobain e cia., Alice In Chains (minha banda favorita), Pearl Jam e SOUNDGARDEN (este último, o mais subestimado dos grupos grunge de sucesso comercial) Reforcei minha convicção de que Chris Cornell é um cantor fenomenal, o melhor - disparado - entre todos os que fizeram parte daquela cena musical. Você pode perceber isso conferindo, por exemplo, Burden in my hand.
O Brasil atravessa, a meu ver, um período no qual declarações e posicionamentos reacionários e antidemocráticos são despejados na esfera pública sem o menor pejo, muitas vezes intimidando ou calando à força as vozes divergentes. Seus arautos estão por quase toda parte: lideranças religiosas das igrejas caça-níqueis, parlamentares filhotes-da-ditadura, "celebridades" televisivas de talento questionável, jornalistas paus-mandados dos chefões da nossa mídia oligopolizada... Isso sem falar nos milhões de "comentaristas de redes sociais", com sua truculência, grosseria e desinformação, infestando o Twitter, Facebook e Whatsapp, vinte e quatro horas por dia. O livro de Márcia Tiburi, espero, talvez possa me ajudar a respirar e pensar melhor nesse pântano de involução política em que estamos nos atolando.
Os reacionários com pretensões autoritárias de nossos dias são frequentemente chamados de fascistas. Essa denominação é válida?
Penso que sim.
Embora o fascismo, stricto sensu, esteja relacionado ao período entre 1922 (quando Benito Mussolini chega pela primeira vez ao poder na Itália) e 1945 (quando o ditador é fuzilado), seu ideário, obviamente, não ficou circunscrito a um único país, nem deixou de se propagar através do tempo. O fascismo, como um conjunto organizado de princípios, sobrevive em estado de latência em nosso tempo - algumas vezes sendo testado e revivido na prática, para nosso repúdio, horror e vergonha. Seus ideólogos contemporâneos dificilmente se assumirão como tal em público. Nada, porém, nos autoriza a considerá-lo uma etapa histórica já vencida.
Entretanto, é preciso notar que, durante uma certa época pelo menos, aqueles encarregados das tarefas mais intelectualizadas entre os defensores e entusiastas do fascismo não agiam dissimuladamente quando se tratava de afirmar sua ideologia com todas as letras. É a um desses indivíduos que o filósofo Maurice Merleau-Ponty se dirige, especificamente, no ensaio Em torno do marxismo*. Apesar de reconhecer que há "lucidez", bem como "honestidade e vigor", nas reflexões de um tal Thierry Maulnier (o autor de direita cujos textos critica), Merleau-Ponty procura demonstrar que essas mesmas reflexões são conformistas e retrógradas pois cessam "de fato de escolher a revolução".
É estranho, reconheço, escrever sobre um artigo (quase) de circunstância publicado há 70 anos. É estranho, sobretudo, quando, como gosta de dizer certa gente influente e "formadora de opinião", estaríamos vivenciando uma era "pós-ideológica". Tenho, entretanto, duas intenções: a primeira é lembrar que o debate político, ao longo da história, nem sempre ficou amesquinhado pelo disse-me-disse dos bastidores da administração estatal ou pelas torcidas organizadas de agremiações partidárias; e a segunda é reconhecer que contrapor-se ao fascismo, na primeira metade do século passado, tinha um outro sentido - mais profundo, talvez. Tentemos compreender isso um pouco melhor.
Se considerarmos o fascismo (mesmo que apenas) em seu sentido estrito, verificaremos que muitas atitudes e opiniões circulando atualmente na esfera pública nacional e internacional refletem concepções fascistas já presentes nos anos 1920, tais como racismo, xenofobia, apego ao militarismo, defesa do estabelecimento dos regimes de exceção a qualquer momento e desprezo pela noção de direitos humanos válidos para todos. Acrescentaria, ainda, o comportamento hostil em relação às minorias e o anti-intelectualismo. Mas deve-se lembrar que, em suas origens, o fascismo pretendia instaurar uma nova sociedade a partir, sobretudo, de ações "salvadoras" na economia. E é no campo econômico que se nota a diferença entre os fascismos contemporâneos e o fascismo "original", digamos assim.
Regimes políticos fascistas caracterizavam-se por um enorme intervencionismo estatal na atividade econômica, visando incrementar áreas consideradas estratégicas, sobretudo aquelas ligadas ao setor bélico. Sabemos, contudo, que muitos dos reacionários atuais têm verdadeiro horror a controles e regulamentações, de qualquer natureza (principalmente da parte do Estado), quando se trata de seu deus, o Mercado**.
Merleau-Ponty escreveu Em torno do marxismo num contexto em que o debate ideológico ainda era muito relevante, já que se tratava de apontar, de forma crucial, como a sociedade deveria conduzir-se (ou ser conduzida) economicamente. De uns tempos pra cá, lamentavelmente, esse debate não parece fazer mais sentido, pois somos levados a crer que o mundo como o conhecemos não pode ser mudado.
Como bom marxista, Merleau-Ponty acredita que "se conhecerá mais seguramente a essência de uma sociedade pela análise das relações inter-humanas cristalizadas e generalizadas na vida econômica do que pela análise de movimentos de ideias frágeis e fugazes, assim como se conhece melhor o homem por suas condutas do que por seus pensamentos" [grifos meus]
Por isso sua critica ao fascismo tenciona saber quais mudanças estruturais, de natureza econômica, esse ideário político poderia apresentar. Em termos marxistas: como ele resolveria a questão fundamental da luta de classes?
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A democracia é um grande valor. Mas é apenas isso. Ela não é garantida por nenhuma lei universal presente na natureza. Atentemos para essa passagem de Em torno do marxismo:"O otimismo democrático admite que, num Estado onde os direitos do homem são garantidos, nenhuma liberdade usurpa as outras liberdades e a coexistência dos homens como sujeitos autônomos e racionais encontra-se assegurada. Isto significa supor que a violência faz uma aparição episódica na história humana, que as relações econômicas, em particular, tendem por si mesmas a realizar a justiça e a harmonia e, enfim, que a estrutura do mundo natural e humano é racional. Hoje sabemos que a igualdade formal dos direitos e a liberdade política mascaram relações de força, em vez de suprimi-las. E, assim, o problema político consiste em instituir estruturas sociais e relações reais entre os homens tais que a liberdade, a igualdade e o direito tornem-se efetivos. A fraqueza do pensamento democrático reside no fato de ser menos uma política e mais uma moral, visto que não coloca qualquer problema de estrutura social e considera as condições do exercício da liberdade como dadas com a humanidade. Contra tal moralismo, nós nos alinhamos do lado do realismo, desde que este seja entendido como uma política ocupada com a realização das condições de existência dos valores por ela escolhidos". [grifos meus]
Mas essas questões não são sequer cogitadas pelos fascistas. Aferrados a um conceito não igualitário de sociedade, a "solução" que poderiam apresentar para os problemas sociais passa, inevitavelmente, pelo que pensam as suas elites dirigentes. E estas são o núcleo-duro do conservadorismo econômico e político, posicionado no lado que está, há séculos, vencendo a luta de classes.
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Para Merleau-Ponty - assim como para boa parte dos pensadores marxistas - as condições de existência só serão alteradas por meio da ação revolucionária. É preciso admitir, contudo, que um dos motivos pelos quais o marxismo é desprestigiado hoje em dia tem a ver com o fato de que a ideia de revolução foi perdida.
De todo modo, apesar de meu conformismo, procurarei sempre ter em mente estas palavras, com as quais encerro a postagem de hoje:
"Todavia, se a alternativa é: ou socialismo ou caos, então a imprudência estará do lado daqueles que contribuem para agravar o caos sob o pretexto de que a revolução é um risco. Reconduzido ao essencial, o marxismo não é uma filosofia otimista - é somente a ideia de que uma outra história é possível, que não há destino e que a existência do homem é aberta. É a tentativa resoluta por esse futuro que ninguém no mundo, nem fora do mundo, sabe se será ou não será".____________
* MERLEAU-PONTY, Maurice. Em torno do marxismo. São Paulo: Abril Cultural, 1980. [Tradução de Marilena Chauí] (Coleção Os pensadores)
** Há ainda, para o fascismo "original" outra deusa - no caso, a Nação. O integralismo de Plínio Salgado, nos anos 1930, manteve essa tendência ultranacionalista aqui no Brasil. Porém, é curioso notar que muitos brasileiros de hoje, entusiastas de ideias e noções de cunho fascista, apesar de vestirem o verde e amarelo quando se manifestam, têm imenso desejo de se mudar para o estrangeiro, principalmente para os EUA.
BG de Hoje
Semana passada assisti a um programa de TV, no estilo documentário, sobre o Nirvana. Deu-me então uma grande vontade de rememorar a cena grunge (na minha opinião, o último grande momento criativo do velho rock). Passei um fim-de-semana todo ouvindo os discos de Kurt Cobain e cia., Alice In Chains (minha banda favorita), Pearl Jam e SOUNDGARDEN (este último, o mais subestimado dos grupos grunge de sucesso comercial) Reforcei minha convicção de que Chris Cornell é um cantor fenomenal, o melhor - disparado - entre todos os que fizeram parte daquela cena musical. Você pode perceber isso conferindo, por exemplo, Burden in my hand.