quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Abaixo da superfície do que gostaríamos de ser

"Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa, sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto".

Do conto Verde lagarto amarelo, de Lygia Fagundes Telles

 
 
Final de ano é sempre a mesma coisa: reuniõezinhas de confraternização no trabalho, amigo-secreto (ou oculto, como se diz aqui em BH) com o pessoal da faculdade, almoços e jantares em família, aos quais comparece, maciçamente, a parentada, etc. E com nossa vida irreversivelmente determinada pela economia - além de uma pesada "contribuição" da publicidade - caímos de boca, com gula. Brindamos, sorrimos, dançamos: parece comercial de shopping center ou mensagem de final de ano da Globo, só que mal ensaiada.

Abaixo da superfície do que gostaríamos de ser, entretanto...

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Há sempre um jogo em todo diálogo: do debate mais sofisticado com especialistas de uma determinada área do conhecimento, à mais banal e insossa série de perguntas e respostas que empreendemos, por exemplo, quando solicitamos algum serviço ou produto pelo telefone.

Em Verde lagarto amarelo*, Lygia Fagundes Telles compõe um desses jogos ao narrar o encontro de dois irmãos, Rodolfo e Eduardo. Há uma disputa, o reavivamento de um antigo conflito, ainda que não seja explicitamente assumido. Às vezes, os jogadores nem precisam verbalizar. A escritora nos exibe as estratégias dos personagens pela maneira como estes se colocam em cena, através do que nos diz o narrador, Rodolfo.

Mágoas renitentes, demonstrações de afeto negadas, lembranças de injustiças: tudo ameaça vir à tona, como o suor que tanto incomoda o narrador: "Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar mais". A presença do irmão evoca recordações desagradáveis:

"E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar de nada, não quero saber de nada!"

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Rodolfo olha para dentro de si ao mesmo tempo em que sente o "suor de bicho venenoso, traiçoeiro, malsão". O retrato de Eduardo é completamente diferente: "era bonito, inteligente, amado, conseguia sempre fazer tudo muito melhor [...], muito melhor do que os outros, em suas mãos as menores coisas adquiriam outra importância".

É curioso: a esmagadora maioria das pessoas não se vê como um réptil nojento. Mas é nessa época do ano que as minhas (e acho que também as suas) viscosidades deletérias e mais recônditas escorrem em abundância, maculando a superfície do que gostaríamos de ser.

Melhor tomar uns porres.
 
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* TELLES, Lygia Fagundes. Verde lagarto amarelo. In: ___________. Antes do baile verde. Rio de Janeiro: Rocco, 1989

RECESSO

Este blog - e este blogueiro - entram em recesso. A página  voltará a ser atualizada no dia 17/01/2011. Ao(à) leitor(a) habitual e ao(à) visitante acidental, boas festas e até a volta.

BG de Hoje

Sempre se espera que nalguma esquina da vida a nossa sorte mude. Mesmo os mais pessimistas têm essa sensação de vez em quando. O RADIOHEAD talvez seja o grupo de rock mais deprê das últimas décadas (e também um dos mais apurados, é necessário acrescentar). Em Lucky, Thom Yorke arrisca: "I feel my luck could change"... o ano que vem... Será?

OBS: o clipe é triste, triste...

domingo, 12 de dezembro de 2010

Facebook: entre a "bagaça" e o "papo-cabeça"



"Olha, quando um cara acha tudo muito bom, ele é que não presta".
Millôr Fernandes

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo".

Fernando Pessoa/Álvaro de Campos no Poema em linha reta


As chamadas redes sociais (sites de relacionamento) vieram para ficar (goste-se ou não delas). Algumas, nada populares (Sonico, Hi-5 e outras), provavelmente serão desativadas num futuro próximo ou incorporadas a outras. Veja o caso do MySpace: há pouco firmou parceria com o Facebook, uma vez que vem perdendo usuários globalmente. E por falar em Facebook, que "lugar" interessante para observar o comportamento das pessoas, através dos perfis que lá mantêm.

Em setembro, Contardo Calligaris* (colunista que, ao lado de Tostão, não posso deixar de ler) relatou o que ocorre com sua (dele) amiga. Ao chegar em casa, ela abre o laptop na cama para curtir sua fossa vendo a felicidade dos conhecidos exposta no Facebook:

"Minha amiga - escreve Calligaris - , em suma, sente-se excluída da felicidade geral da nação facebookiana: só ela não foi promovida, não encontrou um namorado fabuloso, não mudou de casa, não ganhou nesta rodada da loto. É mesmo um bom jeito de aprofundar e curtir a fossa: a sensação de um privilégio negativo, pelo qual nós seríamos os únicos a sofrer, enquanto o resto do mundo se diverte".

Mas a amiga acaba se dando conta de que sua página não é diferente das outras: também exibe fotos felizes e notas amenas e alegrinhas e quem passasse por lá acharia que ela tem uma vida ótima. Calligaris, então, nos lembra que a infelicidade nem sempre é um problema:

"Por exemplo, a infelicidade é uma das motivações essenciais; sem ela nos empurrando, provavelmente, ficaríamos parados no tempo, no espaço e na vida. Ou ainda, a infelicidade é indissociável da razão e da memória, pois a razão nos repete que a significação de nossa existência só pode ser ilusória e a memória não para de fazer comparações desvantajosas entre o que alcançamos e o que desejávamos inicialmente".

No Facebook todo mundo tenta parecer feliz e de bem com a vida, mesmo que, na realidade, não seja bem assim. Todo mundo é "engraçadinho" e virtuoso, além, é claro, daqueles carentes virtuais (já falei deles aqui) que entopem a rede com futilidades e, no fundo, querem apenas gritar: "Ei, estou aqui! Lembrem-se de mim! Eu sou legal". Por que tantos querem impingir aos outros essa imagem de "felicidade total"? Calligaris dá uma magistral resposta:

"[...] somos cronicamente dependentes do olhar dos outros. Consequência: para ter certeza de que sou feliz, preciso constatar que os outros enxergam minha felicidade. Nada grave, mas isso leva a algo mais chato: a prova de minha felicidade é a inveja dos outros. O resultado dessa necessidade de parecermos felizes é que a felicidade é este paradoxo: uma grande impostura da qual receamos não fazer parte e que, por isso mesmo, não conseguimos denunciar".

Não quero dar uma de "fodão". Que fique claro o seguinte: também estou no Facebook para me divertir a maior parte do tempo. E  se, de vez em quando, tento incluir alguma coisa mais "papo-cabeça" é porque tenho o péssimo (e inútil) hábito de me levar a sério - mais uma imagem (possivelmente falsa e certamente patética) que tento apresentar aos outros. Mas nem por isso deixo de me incomodar com o excesso de "bagaça" que encontro diariamente naquela rede social.

P. S. Vale a pena também ler o que escreveu Adelaide Amorim, alguns meses atrás, sobre o Facebook (clique aqui).
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* CALLIGARIS, Contardo. Felicidade nas telas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23 set. 2010, p. 11 (Caderno Ilustrada)


BG de Hoje

O LED ZEPPELIN talvez seja o grupo de rock com mais álbuns incluídos nas listas dos melhores ou dos maiores discos do gênero em todos os tempos. Nada mais justo, penso eu. Porém, Houses Of The Holy (1973) dificilmente entra nessas relações. Álbum variegado, flerta com ritmos e levadas incomuns ao som que até então caracterizava a banda. Qualquer dia dedico uma postagem exclusiva para esse trabalho. Por enquanto, vai aqui Over The Hills And Far Away, canção marcante de Houses Of The Holy.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Arrebanhando gatos


"Na verdade, organizar ateus já foi comparado a arrebanhar gatos, porque eles tendem a pensar de forma independente e não se adaptar à autoridade [...] Embora não formem um rebanho, gatos em número suficiente podem fazer bastante barulho e não ser ignorados".

Richard Dawkins

 
 
Na última postagem, falei da importância histórica das religiões para o fortalecimento da leitura e da consolidação da cultura livresca em todo o mundo. Por isso, posso ter dado a impressão de ser adepto de alguma dessas doutrinas. Não sou, muito pelo contrário.

Durante bastante tempo, relutei em partir para o ateísmo militante. Explico: quando você milita por algo precisa, no mínimo, dispor-se a discutir com aqueles que têm convicções diferentes da sua. E eu acho que a discussão entre teístas e ateus prosseguirá até o Juízo Final (perdão, mas a piada foi irresistível...) e, provavelmente, perderei meu tempo - e minha paciência - entrando nela. Isso se não acontecer coisa pior.

Só que estou de saco cheio. Saco cheio de gente do meu convívio pensando que, por não acreditar em Deus, estou com alguma doença ou "problema emocional" ("coitadinho dele, depois passa"); saco cheio de gente me enviando mensagens indesejáveis - dentro e fora da Web -, fazendo proselitismo religioso na minha cabeça, quando, de minha parte, não saio por aí "pregando" meu ateísmo. E, extrapolando a esfera pessoal, estou profundamente preocupado em ver tantos "empresários da fé" comprando espaços na mídia (às vezes, adquirem até os próprios veículos), sejam jornais, emissoras de rádio ou TV, para disseminar preconceitos e desinformação. E não pouco decepcionado ao constatar como o debate público se empobrece, como ocorreu no 2º turno da eleição presidencial brasileira, quando, ao invés de se discutir política externa, relação entre os Três Poderes ou tributação, por exemplo, um candidato preferiu beijar símbolos religiosos e rezar o terço, enquanto a outra foi à missa e recebeu defesa, num jornal de grande circulação, que só faltou dizer que ela saiu de um convento direto para o pleito*.

Tenho fortes razões (e faço questão de destacar: razões) para assumir e agora professar, sempre que puder, meu ateísmo, mas menciono apenas duas, nessa oportunidade:

1) escapar da infantilidade inerente a toda crença religiosa. Como observou Sigmund Freud, em O futuro de uma ilusão**,

"Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem a proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção. Assim, seu anseio por um pai constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as consequências de sua debilidade humana. É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer - reação que é, exatamente, a formação da religião".

2) problematizar o costume, no mínimo estranho e antidemocrático, de sempre se colocar a religião e a crença em Deus fora e acima de qualquer crítica. O biólogo Richard Dawkins, em Deus, um delírio***, sem não-me-toques, ataca esse privilégio:

"O cristianismo, tanto quanto o islamismo, ensina às crianças que a fé sem questionamentos é uma virtude. Não é preciso defender aquilo em que se acredita. Se alguém anuncia que isso faz parte de sua , o resto da sociedade, tenha a mesma fé, outra fé ou nenhuma fé, é obrigado, por costume arraigado, a 'respeitar' sem questionar, respeitar até o dia em que aquilo se manifestar na forma de um massacre horrendo como a destruição do World Trade Center ou os ataques a bomba em Londres ou Madri. Surge então um forte coro de reprovações, enquanto clérigos e 'líderes de comunidades' (quem os elegeu, aliás?) fazem fila para explicar que esse extremismo é uma perversão da fé 'verdadeira' . Mas como pode haver uma perversão da fé se a fé, por não ter justificação objetiva, não tem nenhum parâmetro demonstrável para ser pervertido?"

Recuperando agora a epígrafe da postagem, daqui do Besta Quadrada passo, eventualmente, a lançar também meus miados descrentes, disposto a engrossar o coral dos bichanos sem Deus.
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* BETTO, Frei. Dilma e a fé cristã. Folha de S. Paulo, São Paulo, 10 out. 2010, p. 3 (Caderno Poder). Sempre levo em consideração o que escreve Frei Betto, mas nesse artigo acho que ele errou a medida. Gerou até uma resposta por parte de Daniel Sottomaior, da ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos). O Antonio Cicero republicou no blog dele: http://antoniocicero.blogspot.com/2010/10/daniel-sottomaior-ateismo-e-cidadania.html

** FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. In: ___________. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 85-128 [tradução de José Octávio de Aguiar Abreu]

*** DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

BG de Hoje

Gosto de alguns bateristas de estilos bem diferentes: Lars Ulrich (Metallica), Alex Van Halen (Van Halen), John Bonham (Led Zeppelin), Mike Bordin (Faith no More) e - para mim, o melhor deles - Stewart Copeland (THE POLICE). Copeland é absurdamente preciso. Comprove a competência do baterista em Spirits in the material world (do álbum Ghosts in the machine, de 1981)


terça-feira, 30 de novembro de 2010

As religiões do livro

[Postagem atualizada em 22/05/2020]

Dentro do "pacote" de filmes assistidos recentemente estava O livro de Eli (The Book of Eli - direção: Hughes Brothers, 2009). NOTA: Surpreendi-me ao encontrar no elenco a atriz Jennifer Beals - já madura e ainda muito bonita - que permanece na memória de bastante gente (na minha, pelo menos) como a inverossímil operária-bailarina de Flashdance (1983 )

Não vi nada de mais no filme, mas sou espectador inapto para dar opinião, pois não entendo nada de Cinema. O livro de Eli me interessou por dramatizar, ao modo hollywoodiano (of course!), a relação entre palavra escrita e o processo civilizatório.

Num mundo pós-apocalíptico, Eli (Denzel Washington) peregrina em direção ao Oeste, carregando um livro. O mesmo livro é procurado por Carnegie (Gary Oldman), seu antagonista. Detalhe: quase a totalidade dos sobreviventes nessa terra desolada não sabe decifrar códigos escritos. Em determinada cena, dá-se o seguinte diálogo:

"[Carnegie] - Você lê?
  [Eli] - Todos os dias.
  [Carnegie] - Bom pra você. Eu também. É curioso. Velhos como nós, eu e você, somos o futuro".

Isso é bastante significativo. Num mundo inóspito, hostil, embrutecido, os livros - e a leitura, por extensão - podem ser o principal (ou, talvez, único) remédio contra a barbárie. E são as pessoas mais velhas as responsáveis por administrar o "medicamento".

Mas - ai, ai, ai - esse é um filme que trata, sobretudo, de fé e religião. Em outra cena, após declamar o famosíssimo Salmo 23 (versículos 1, 2, 3 e 4), o personagem central dá informações sobre o "misterioso" livro que leva (a essa altura, óbvio para qualquer espectador) a uma jovem cuja vida acabara de salvar:

"[Solara] - Por que disse que não era um livro qualquer?
  [Eli] - É um exemplar único. Depois da guerra, fizeram questão de caçar e destruir todos os que os incêndios não tinham destruído. Dizem que foi o que motivou a guerra. Seja como for, é o último que sobreviveu".

Eli diz ainda que encontrou o livro graças a uma "voz" que o orientaria e protegeria na jornada. Apesar de decepcionado com o filme, nesse trecho - se me permite uma breve digressão - não pude deixar de pensar na controversa e conhecida tese de Samuel Huntington sobre o "choque de civilizações"*.

Para o cientista político norte-americano

"[...] civilizações diferentes têm concepções diferentes das relações entre Deus e os homens, os cidadãos e o Estado, pais e filhos, liberdade e autoridade, igualdade e hierarquia. Essas diferenças são produto de séculos. Não desaparecerão em pouco tempo. São muito mais elementares do que as diferenças entre ideologias e regimes políticos".

E Huntington é taxativo: "A próxima guerra mundial, se houver, será uma guerra entre civilizações".

Mas há outra coisa para se refletir.

Todas as atuais grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo, islamismo) erigiram-se a partir de livros. O objeto-livro vira objeto sagrado; mas também o ato de ler passa a ser reverenciado. E essa é uma contribuição bem peculiar das religiões para a prática da leitura, digamos, secular: conferir a esse ato um valor simbólico difícil de medir.

Até bem pouco tempo, eu não atentava para o papel importante desempenhado por essas religiões no plano da cultura livresca. Num trabalho que não cansarei de citar (História da Leitura**), Steven Roger Fischer nos lembra que,

"Ao longo da história, a religião foi um dos principais motores da alfabetização. Os escribas-padres figurariam entre os primeiros leitores da sociedade. Depois deles, vieram os eruditos da elite e, a seguir, os celebrantes seculares que, por sua vez, expandiram e diversificaram o material de leitura, acabando por indicar um conceito de educação geral. É fato esclarecedor na história da leitura que a difusão de sistemas de escrita e leitura no mundo hoje reflete com muito mais clareza a difusão das religiões do mundo do que a difusão de famílias de idiomas".

É evidente também que as religiões desenvolveram métodos para limitar o que e como ler, gerando mais desentendimento do que conciliação, mais obscurecimento do que iluminação. Mas isso já é outro assunto.
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* HUNTINGTON, Samuel. Choque do futuro. In: UPDIKE, John et al. Veja 25 anos: reflexões para o futuro. São Paulo: Abril, 1993. p. 135-147

** FISCHER, Steven R.  História da Leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006 [tradução Claudia Freire]

BG de Hoje

Ontem, chegando ao Bar do Dinei, pedi uma cerveja e uma dose de cachaça. Antes de "beiçar a mardita", cantarolei "bobeou, eu tomo pinga", parodiando o refrão de um antigo sucesso das rádios AM. Lá de dentro, alguém secundou e imediatamente começou a cantar a canção com a letra original. Era um antigo morador do bairro. Não me fiz de rogado e acompanhei. Tomamos um porre medonho. Vasculhei no Youtube e achei a pérola: TRIO PARADA DURA, Bobeou, a gente pimba.


sexta-feira, 26 de novembro de 2010

WALL.E


Já li em mais de uma resenha publicada na imprensa que, atualmente, os melhores trabalhos do Cinema estão sendo feitos na área da animação, seja na indústria voltada para o entretenimento de massas, seja no dito "mercado independente". Uns dizem que há esgotamento nos modos de narrar dos filmes em "carne e osso"; outros - com veneno - argumentam: numa época em que se tornou possível fazer quase tudo visualmente falando, graças aos recursos tecnológicos digitais , os efeitos especiais ocupam espaço desmedido nas produções e, nesse caso, é preferível ficar com os desenhos animados mesmo, mais vantajosos por não incluírem atores de 5ª categoria... Nesse ponto, não tenho opinião formada. Só sei dizer que WALL.E (WALL.E - direção: Andrew Stanton, 2008) foi um dos melhores filmes que pude assistir ultimamente. Seus primeiros 30 minutos são grandiosos.

Claro, é direcionado para crianças, mas todos sabemos que hoje em dia não é muito inteligente, nem lucrativo, produzir desenhos sem pensar também no público adulto. E se deixarmos de lado as mensagens "educativas" mais explícitas - enaltecer a reciclagem do lixo e a preservação ambiental, criticar o sedentarismo e a tecnofilia extremados, etc. - notaremos que é um filme a lidar com temas quase sempre melancólicos, como, por exemplo, a solidão e o envelhecimento. NOTA: Esses temas, a propósito, estão presentes em outras animações excelentes, de curta-metragem; Geri's game (com direção de Jan Pinkava, 1997) e Bunny (dirigido por Chris Wedge, 1998). Bunny é belissimamente triste; Geri's game, engraçadíssimo, de uma forma um tanto demente, devo acrescentar.

Não dou muita trela a quem proclama as "vantagens" do envelhecimento. Confesso que não vejo nenhuma. Mas reconheço que os velhos costumam ser obstinados (alguns diriam teimosos). E WALL.E é obstinado. Executa a mesma tarefa por centenas de anos, aparentemente sem se importar com a inutilidade de seu trabalho.

E o robô é extremamente solitário, tendo apenas a seu lado uma baratinha, que o acompanha naquele mundo vazio. Guarda cacarecos e bugigangas em casa (coisa de velho!) e, apesar de seus estoicismo, a solidão lhe pesa muito.

Para mim - e peço desculpas por minha pieguice - a sequência mais tocante do filme é quando WALL.E, a despeito da impossibilidade de se comunicar com EVE, a sonda que visita o planeta, após esta ter cumprido sua tarefa, fica ao lado dela durante um longo, longo tempo, sempre velando-a, sempre esperançoso.

A parceria bem sucedida entre Pixar e Disney, até aqui, foi muito rentável, comercialmente falando. E, de vez em quando, seus trabalhos conseguem deixar o espectador emocionado, como fiquei ao final de WALL.E.

BG de Hoje (duplo)

Falando em desenhos animados, um dos filmes que marcaram minha adolescência foi Uma cilada para Roger Rabbit. E uma das cenas mais inesquecíveis é aquela em que Jessica Rabbit canta Why don't you do right? A personagem foi dublada por Kathleen Turner, símbolo sexual nos anos 1980, mas quem interpreta a canção é outra atriz, Amy Irving, na época, esposa de Steven Spielberg, o produtor do filme.

E ao fazer a busca por essa cena, acabei encontrando este outro vídeo, de uma desconhecida, interpretando (e bem) a mesma canção.

sábado, 20 de novembro de 2010

Blogs: entre a egolatria e o rancor



Pelo menos do nascedouro, blogs  expunham, a maior parte do tempo, as divagações, os desabafos, os acontecimentos privados e íntimos relacionados à vida do seu autor, o blogueiro.

De acordo com o   Dicionário de gêneros textuais , de Sérgio Roberto Costa*,

"O blog  pode ser definido, então, como jornal/diário digital/eletrônico pessoal publicado na Web, normalmente com toque informal, atualizado com frequência e direcionado ao público em geral.  Blogs   geralmente trazem a personalidade do autor, seus interesses, gostos, opiniões e um relato de suas atividades. Portanto, geralmente são simples, com textos curtos, predominando os narrativos (relatos) , descritivos e opinativos. O   blog   é o gênero discursivo da auto-expressão, isto é, da expressão escrita do cotidiano e das histórias de pessoas comuns".

Mas desde os pioneiros - Justin's Links from the Underworld  (1994), Carolyn Diary  (1995) e outros - essas jangadas de personalismo no oceano da Internet foram ganhando, felizmente, outras características.

Wikipédia  (acesso em 20/11/2010) afirma que "o  blog atual é uma evolução dos diários online" e o mesmo verbete informa que

"Um blog [...] é um site cuja estrutura permite a atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos, ou posts. Estes são, em geral, organizados de forma cronológica inversa, tendo como foco a temática proposta do blog  [...]" (grifo meu).

Do ponto de vista do conteúdo, então, encontramos dois tipos básicos de blog: 1) aqueles aparentados com os diários íntimos e/ou privados; 2) aqueles estruturados em torno de um assunto.

Já deixei transparecer algumas vezes aqui minha preferência pelo segundo tipo, embora - e isto pode ser curioso -, dos cerca de 60 blogs que leio mais frequentemente, apenas uma pequena parte se encaixa nessa categoria. Não gosto muito de ser lançado no "mundo pegajoso da vida doméstica" das pessoas, para usar uma expressão do escritor Jonathan Franzen.

Entretanto, por mais que um blog procure centrar-se numa temática, aquilo que o faz ser atraente para boa parte dos leitores, penso eu, é a possibilidade de construir uma  ponte entre indivíduos , a possibilidade de  estabelecer novas relações interpessoais , ainda que por meio da Web. Daí a importância da seção de comentários. No verbete da  Wikipédia   lemos que "a capacidade de leitores deixarem comentários de forma a interagir como o autor e outros leitores é uma parte importante de muitos blogs". Já no  Dicionário de gêneros textuais   encontra-se a seguinte afirmativa: "a interatividade com o leitor é uma característica básica". Deseja-se, muitas vezes, propor um diálogo ; afinal, blogs são, majoritariamente, páginas relacionadas a perfis que, no plano não-virtual - a nossa vidinha costumeira -, ligam-se a seres humanos (com preferências, sentimentos e desejos) sequiosos por comunicarem-se com outros, às vezes tão ávidos quanto eles.

Então, ao pensar nos blogs como  espaço de expressão pessoal, também estabelecemos dois tipos básicos: 1) aqueles eivados de egolatria ; 2) aqueles saturados de rancor. O leitor habitual deste espaço naturalmente percebe que prefiro a segunda categoria, na qual meu próprio blog se inclui.

Postagens "felizes" e que, por meio da exibição nauseante da vida particular do blogueiro, jogam na cara de quem lê a mensagem (nada sutil) "vejam-como-eu-sou-especial-e-gente-fina" me dão vontade de vomitar.

Prefiro aquelas feitas por "arquitetos de ruínas", valendo-me de Machado de Assis na caracterização de um de seus personagens menores.

* COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008

BG de Hoje

O que é necessário para criar um clássico do rock'n'roll ? Alguns elementos básicos: entre eles, acho, é preciso um riff de guitarra poderoso, inesquecível. E não consigo me lembrar agora de outro tão indefectível quanto o de Jumpin' Jack Flash, dos ROLLING STONES.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A idealizada imunidade dos escritores (2)


Antes de tratar, propriamente, do tema central desta postagem (continuação da anterior) gostaria de emitir uma opinião que parecerá exagerada - e é bem possível que seja - mas ao menos nascida de minha razoável experiência trabalhando em bibliotecas escolares de diferentes unidades: hoje em dia, efetivamente, Monteiro Lobato é muito pouco lido.

As crianças e adolescentes costumam evitá-lo por causa do número de páginas dos exemplares, tidos como extensos por pessoas - infelizmente - cada vez mais desabituadas a textos robustos. Há ainda a questão da linguagem (mais ampla do que a questão da língua, é bom que se diga): o "público-alvo" na década de 1930 (ou seja, a criança daquela época) difere muito do atual, inclusive no modo como se relaciona com textos escritos.

Até leitores adultos, a quem supostamente caberia a tarefa de mediação da obra de Lobato (bibliotecários, professores, educadores em geral), têm pouca ou nenhuma familiaridade com o autor. Isso é uma pena: considero A chave do tamanho, por exemplo, um dos livros infantis mais importantes do mundo, e a boneca de pano por ele inventada (e que depois vira gente) é um dos personagens mais extraordinários de toda a nossa Literatura, voltada ou não para crianças (ainda que seja, para dizer o mínimo, figurinha controversa, como veremos adiante...)

Ocorre o seguinte: a Turma do Sítio do Picapau Amarelo independe, hoje, dos livros em que estava contida; é uma marca poderosa, com existência autônoma em relação ao texto escrito originalmente.

Fica, portanto, a pulga atrás da orelha: será que o melindre estridente por parte da imprensa, em torno do parecer do CNE até aqui discutido (ver postagem anterior), não teria partido de indivíduos que não leem (ou não leram) efetivamente os livros do escritor e acabaram emitindo suas opiniões ancorados apenas numa imagem idealizada do trabalho literário de Monteiro Lobato, imagem esta agora associada a uma marca forte no campo dos produtos para a infância?

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Marisa Lajolo, conceituada estudiosa da obra do autor de Caçadas de Pedrinho, abre o artigo A figura do negro em Monteiro Lobato* - também disponível aqui - declarando por que análises como esta são necessárias:

"Discutir a representação do negro na obra de Monteiro Lobato, além de contribuir para um conhecimento maior deste grande escritor brasileiro, pode renovar os olhares com que se olham os sempre delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e similares binômios que tentam dar conta do que na página literária, fica entre seu aquém e seu além.
Além do texto, aquém da vida".

Pode-se perfeitamente ler Literatura privilegiando apenas (ou principalmente) aspectos formais e/ou estéticos; entretanto, este não é o tipo de leitura que procuro fazer. Só para exemplificação, cito o caso de dois escritores: Henry Miller e Nelson Rodrigues; aprecio o primeiro, não gosto do segundo. O universo desencantado e "desglamourizado" no qual transitam as personagens de Henry Miller é, para mim, sempre interessante. Contudo, encontro frequentemente trechos de conteúdo antissemita (segundo minha avaliação) em seus livros. Já nas crônicas e peças de Nelson Rodrigues vejo (de novo, na minha avaliação) o quanto era reacionário o dramaturgo, não obstante seus aforismos terem se tornado famosos, pois Rodrigues foi, antes de tudo, um competente frasista. Tanto num quanto noutro, o texto às vezes sai perdendo para a vida. Mas voltemos ao artigo de Marisa Lajolo.

A professora da Unicamp fala em "ambiguidade" - este blogueiro chamaria simplesmente de racismo - na obra de Lobato com relação à representação que se faz do negro. Destaca, em sua análise, o livro Histórias de Tia Nastácia**, no qual podemos ler trechos como este:

" - Pois cá comigo - disse Emília [sempre ela!] - só aturo essas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto..."

No entanto, Marisa Lajolo acredita que, para observar como se dá essa, segundo ela, ambiguidade de representação, é preciso ir além da "denúncia bem intencionada dos xingamentos de Emília", observando, por exemplo, a assimetria existente entre Tia Nastácia e os outros personagens da Turma do Sítio. Escreve a articulista:

"Sem idealizações e sem meias palavras, os leitores das Histórias de Tia Nastácia são voyeurs de uma situação na qual os ouvintes das mesmas histórias, sem complacência e sem papas na língua, desqualificam as matrizes populares de onde vêm as histórias que ouvem".

O que se vê é um "rebaixamento cultural" do mundo representado por Tia Nastácia, já que este mundo é incompatível com a visão de modernidade típica dos anos 1930, defendida por Lobato e outros intelectuais da época. E discutindo o modo como os outros personagens recebiam as narrativas apresentadas pela "negra de estimação" (assim apresentada em Reinações de Narizinho, lembremos), Lajolo demonstra como essa visão de modernidade age sobre o leitor (inclusive o contemporâneo):

"Ao ir lendo, a reação dos ouvintes às histórias que Tia Nastácia vai contando, o leitor de Lobato sente-se tentado a tomar partido. E só por estar lendo, são muito pequenas as chances de que sua solidariedade vá para a preta velha que desfia histórias por quem, na melhor das hipóteses e como os pica-pauzinhos [Emília, Narizinho e Pedrinho], ele (leitor) nutre sentimentos de afeto, mas que, nem por serem autênticos, deixam de ser uma das expressões que o racismo assume na cultura brasileira. O livro sublinha a inadequação das histórias a seu auditório na voz dos próprios ouvintes: são eles que estabelecem a diferença que afasta a tradição letrada e moderna que, erigindo-se em referente, confirma à marginalidade a produção cultural que não venha desse mundo urbano e moderno".

Teria mais a dizer sobre esse assunto, inclusive a respeito do projeto de Lobato intitulado O presidente negro, mas deixo para outra oportunidade, poupando o generoso e paciente leitor que me acompanhou até o fim desta postagem em duas partes.
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* LAJOLO, Marisa. A figura do negro em Monteiro Lobato. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v.4. n.23, p. 21-31, set/out. 1998

** LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. 9 ed. São Paulo: Brasiliense, 1970 [ilustrações de Manoel Victor Filho] [volume 4 (série A) das Obras Infantis Completas]

BG de Hoje

Sou fã de André Abujamra e do KARNAK. E gosto muito da canção Espinho na roseira/Drumonda. Quando procurei no Youtube, achei este vídeo tosco e engraçado.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A idealizada imunidade dos escritores (1)


No mês de setembro, um parecer do CNE (Conselho Nacional de Educação) - disponível aqui - provocou polêmica, gerando matérias em alguns veículos da imprensa. Mas vamos ao começo da história.

O parecer (aprovado por unanimidade pelo Conselho e aguardando homologação) é resultante de consulta encaminhada por um técnico da Secretaria de Educação do Distrito Federal a diversos órgãos administrativos. Antônio Gomes Costa Neto solicitava que a Secretaria na qual trabalha e as unidades subordinadas a esta não deveriam "utilizar livros, material didático ou qualquer forma de expressão que, em tese, contenha expressões de prática de racismo cultural, institucional ou individual". Citava especificamente o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, que, segundo o técnico, manifestava conteúdo racista.

De acordo com a relatora do parecer sobre o caso, Nilma Lino Gomes, professora da Faculdade de Educação da UFMG, "[...] a denúncia do Sr. Antônio Gomes Costa Neto deve ser considerada coerente". Para a conselheira do CNE,

"Não se pode desconsiderar todo um conjunto de estudos e análises sobre a representação do negro na literatura infantil [...], os quais vêm apontando como as obras literárias e seus autores são produtos do seu próprio tempo e, dessa forma, podem apresentar, por meio da narrativa, das personagens e das ilustrações, representações e ideologias que, se não forem trabalhadas de maneira crítica pela escola e pelas políticas públicas, acabam por reforçar lugares de subalternização do negro".

Nilma Lino Gomes observa que "a ficção não se constrói em um espaço social vazio". E recomenda algumas ações a serem empregadas para evitar atitudes reprodutoras do racismo no ambiente escolar, entre elas, fazer com que a Coordenação-Geral de Material Didático do MEC (uma vez que Caçadas de Pedrinho integra o acervo do PNBE*) exija "da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura".

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Há quem tenha interpretado o parecer (não é meu caso) como uma tentativa de proibir a circulação do livro de Monteiro Lobato. Além disso, o caso faz emergir outros pontos que merecem ser discutidos: a desconfiança que se tem sobre o preparo dos professores para lidar com situações complexas e que vão além da prática pedagógica rotineira; o papel das bibliotecas escolares - setor particularmente afetado por decisões internas e externas referentes a permissão ou restrição de acesso a determinados livros; ou mesmo um suposto patrulhamento motivado pelo chamado politicamente correto.

Uma questão, entretanto, pareceu-me passar batida, apesar de toda a celeuma em torno do assunto: a maneira como enxergamos os escritores, sobretudo aqueles consagrados e/ou considerados canônicos, como Lobato. Com frequência, achamos que os escritores, por serem artistas conceituados - indivíduos geniais, em alguns casos - deveriam merecer análises de sua obra baseadas apenas em critérios estéticos. Possuiriam eles uma espécie de "imunidade artística". Tal posicionamento indica, a meu ver, uma idealização (ingênua, como não poderia deixar de ser) da relação escritor-obra.

Devemos lembrar, penso eu, que a capacidade criadora de um escritor não está isenta da influência de fatores sociais e históricos que condicionam a existência de qualquer indivíduo. E é possível criticar seu trabalho incorporando ao exercício analítico a observação desses fatores, indo além da Teoria da Literatura e da Estética. Escritores são meros mortais (apesar da ABL afirmar o contrário sobre um seleto grupo, do qual, aliás, Monteiro Lobato foi excluído).

Marisa Lajolo, em um ensaio excepcional sobre o escritor paulista** - disponível aqui - (e que foi citado pela conselheira Nilma Lino Gomes no parecer em discussão) realiza um desses estudos mais abrangentes a que me referi; falo a seu respeito na próxima postagem.
__________
* PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) - Ação do MEC, através do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, responsável pela distribuição periódica de livros e outras publicações destinadas a alunos e professores das escolas públicas, executada desde 1997, incrementando bibliotecas escolares e salas de leitura.

** LAJOLO, Marisa. A figura do negro em Monteiro Lobato. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 4, n. 23, p. 21-31, set/out. 1998

BG de Hoje

Num ranking - completamente arbitrário e inútil -, existente apenas na minha cabeça, o FAITH NO MORE ocupa lugar garantido na lista das dez bandas de rock mais importantes. Sabe dosar agressividade e contenção, tem uma "cozinha" ducarai (Billy Gould e Mike Bordin), além do vocalista Mike Patton, que possui a capacidade impressionante de "mudar o registro" a cada canção (ou dentro até da mesma música). Ashes to ashes é um bom retrato do grupo.


quinta-feira, 21 de outubro de 2010

"O que quer que um outro disser bem é meu"

A frase que intitula esta postagem é de Sêneca. Naturalmente, levando em consideração seu sentido, passa agora também a ser minha. Nada mais adequado para este blog no qual as citações brotam amiúde.

Sobre elas, Luis Fernando Verissimo* escreveu: "são uma espécie de testemunho insuspeito que a gente invoca para reforçar - ou pelo menos, para tornar mais respeitáveis - nossos argumentos". E passa então, comicamente, a discorrer sobre as citações falsas (o que há de mais saboroso nessa sua crônica):

"É difícil provar que uma citação não é verdadeira. Por isso você está livre pra inventar à vontade, sem limites. A não ser, é claro, os limites da honestidade. Mas estes andam muito elásticos ultimamente. Quem arriscará passar por ignorante, desafiando a legitimidade de uma citação? Basta que elas soem autênticas".

Você pode, assim, simular um saber que está longe de possuir, dotando o que escreve de uma aura profunda e inteligente. E pode ficar ainda melhor, sugere o humorista gaúcho:

"Para estar mais seguro, faça o seguinte: invente a citação e invente o seu autor. Escreva por exemplo: 'Na imortal frase de Raspail de Grunyére, na famosa carta que escreveu da prisão para Dindonet, 'les oiseaux, etc'. O etc. dá a entender que todos, claro, conhecem a frase a que você se refere e seria maçante repeti-la".

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Com intenção completamente distinta daquela manifestada por Verissimo, o ensaísta argentino Alberto Manguel (em artigo já mencionado aqui) também fala a respeito do ato de citar**. Lembrando dos movimentos urbanos de protesto, iniciados a partir do maio de 1968, que repudiavam o conservadorismo, ele faz a seguinte observação:

"Nas revoltas estudantis que sacudiram o mundo ao final da década de 60, uma das palavras de ordem, berradas aos professores da Universidade de Heidelberg foi  ' Her wird nicht zitiert! ' ' Nada de citações aqui! '.

Mas Manguel aponta o quanto essa reivindicação era equivocada:

"Os estudantes exigiam pensamento original, esquecendo que citar é continuar uma conversa do passado e dar contexto ao presente; citar é fazer uso da Biblioteca de Babel, citar é refletir sobre o que foi dito antes, pois, se não o fizermos, falamos no vácuo, onde a voz humana não faz som".

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Não me sinto nem um pouco incomodado em incluir, profusamente, longos trechos de outros textos, que acabam suplantando a "parte que me cabe nesse latifúndio". Como já disse Borges, "Que outros se jactem das páginas que escreveram; a mim me orgulham as que tenha lido".

E preciso confessar: há uma certa dose de vaidade em tornar públicas minhas leituras... Dane-se! Estou muito longe de ser santo...

P. S. E para que não recebam a pecha de falsas, as citações apresentadas nas postagens do blog são extraídas das referências incluídas nas notas, presentes ao final de quase todas as atualizações (como essas duas, logo abaixo).
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* VERISSIMO, Luis Fernando. Citações. In: ___________. O rei do rock. 4 ed. São Paulo: Globo, 1999

** MANGUEL, Alberto. O destino da leitura na era da web. Veja, São Paulo, n. 1681, 27 dez. 2000. Disponível em http://veja.abril.com.br/especiais/perspectivas/p_100a.html Acesso em 19 out. 2010

BG de Hoje

CAETANO VELOSO, acho eu, compôs poucos sambas "típicos" na sua longa carreira. Alguns deles são muito bons, como Gema. No vídeo abaixo, vemos TERESA CRISTINA acompanhada do músico baiano.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Para quando a África (2)

"A África é o berço da humanidade [...]. Estou certo de que se Adão e Eva tivessem aparecido no Texas, ouviríamos falar disso todos os dias na CNN".


Joseph Ki-Zerbo

Como observei na última postagem, Joseph Ki-Zerbo trata de muitos assuntos fundamentais para a compreensão mais aprofundada do continente africano, na entrevista concedida a René Holenstein*.

Porém, vou abordar apenas o problema da desvalorização e da homegeneização linguísticas.

A esse respeito, o pensador burquinense tem posição definida: "para repensar o Estado, a partir da natureza plurinacional das sociedades, seria necessário, na minha opinião, regressar à alfabetização e à escolarização nas línguas maternas africanas", ainda que reconheça ser "impensável e impossível rejeitar as línguas impostas pela colonização porque, objetivamente, elas foram integradas ao nosso patrimônio cultural, elas unem povos africanos entre si e com a comunidade internacional".

Como se vê, a proposta de educação linguística de Ki-Zerbo vai ao encontro do que pensa em termos de organização em nível de Estado para os países do contimente:

"Não se pode instalar um Estado federal, na África, com cerca de trinta línguas. Mas reduzindo o seu número a três línguas principais, geralmente pode-se abranger 80% a 90% da população. Se os custos desta estratégia são muito pesados; os ganhos são incomensuráveis".


Diversos países africanos, do ponto de vista da língua oficial, são tidos como lugares nos quais a maioria da população se expressa, supostamente, em francês, inglês ou português. Mas veja o caso do Senegal: "Oitenta por cento da população senegalesa fala uolof; no entanto, não se diz que o Senegal é uolofófono, mas francófono".

Com o objetivo de promover o modelo de alfabetização que propõe, o historiador sugere a adoção de línguas-pontes:

"O haussá, o bambará e o diulá são línguas pontes, que já existem. O diulá é falado pelo menos em oito países da África Ocidental; o haussá, pelo menos em quatro ou cinco, entre os quais a Nigéria, que constitui facilmente metade da população da África Ocidental. As pontes linguísticas entre as diferentes regiões da África Ocidental ajudariam todos esses países a constituírem-se mais rapidamente".


É uma proposta que inverte a lógica da globalização. E pode representar, a meu ver, um antídoto para o perigoso cenário da novilíngua - imaginado por George Orwell - e que temo ser mais próximo da realidade do que seria desejável. Com a palavra, Ki-Zerbo:

"As línguas também dizem respeito à cultura, aos problemas da nação, à capacidade de imaginar, à criatividade. Quando falamos numa língua que não é originalmente a nossa, exprimimo-nos de forma mecânica e mimética, salvo exceções (mas governa-se para as exceções?). Não podemos mais do que imitar. Mas quando nos exprimimos na nossa língua materna, a imaginação liberta-se [...]"

* KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África?: entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2009 [tradução de Carlos Aboim de Brito]

BG de Hoje

O Rush tocou no Brasil este ano, para a felicidade de muitos fãs. Mas em matéria de bandas vindas do Canadá, sempre fui mais BACHMAN-TURNER OVERDRIVE. Down Down tem o saudável groove adequado a todo bom rock'n'roll. OBS: Não dê atenção ao slideshow meio idiota, curta apenas a música.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Para quando a África (1)



"A revolução é o inverso do existente. É não só virar a página, mas mudar o dicionário".
Joseph Ki-Zerbo

As notícias sobre a África, nos grandes veículos de comunicação de massa brasileiros, tratam, geralmente, de dois únicos assuntos: a fauna da região (de fato, impressionante) ou o persistente estado de guerra em alguns de seus países. Durante a Copa do Mundo de Futebol deste ano, disputada na África do Sul, esperava um retrato mais ampliado do continente. Mas não foi o que vi (nem li) naquele período.

Por isso, considero fundamental a publicação de livros como este que acabei de ler: Para quando a África?*, resultado de longa entrevista feita com o historiador Joseph Ki-Zerbo. Nascido no Alto Volta (atual Burkina Fasso ou Burkina Faso), Ki-Zerbo desempenhou papel relevante nos campos educacional e político em diversos países africanos, como Senegal e Mali, entre outros. Tendo feito seus estudos na Sorbonne, o historiador foi dos primeiros, nas décadas de 1960-1970, a retomar o esforço de produzir, para as ciências sociais em geral, um conhecimento menos etnocêntrico, até então (e é necessário que se diga, ainda hoje) dominado por europeus e norte-americanos. E eis aí outro motivo para a leitura de livros como esse: dar ouvidos a intelectuais de peso fora do eixo EUA-Comunidade Europeia.

Joseph Ki-Zerbo procura compreender o atual estágio - econômico, político e cultural - africano a partir de dois eventos que marcaram, de forma profunda e negativa, a história do continente: o tráfico de escravos durante mais de 350 anos e a condição de colônia, consequência das ações imperialistas deflagradas principalmente a partir do século XIX.

Pensador assumidamente de esquerda - crítico do modelo capitalista de desenvolvimento "sugerido" a todos os países (pobres ou ricos) -, o historiador burquinense afirma que

"[...] não se globaliza inocentemente. Penso que dificilmente poderemos ter um lugar na globalização porque fomos desestruturados e deixamos de contar como seres coletivos. Se você comparar o papel da África e dos Estados Unidos, verá os dois pólos da situação na globalização: os globalizadores, que são os Estados Unidos, e os globalizados, que são os africanos. Não sei de que lado você se situa; quanto a mim, eu sei que sou um globalizado. A África, como continente, situa-se mais nesta categoria, porque é uma questão de relação de forças. É a questão de saber se somos sujeitos da história, se estamos aqui para desempenhar um papel na peça de teatro. Na realidade, não há peça onde só há atores principais. Também deve haver figurantes, isto é, como utensílios e segundas figuras para por em destaque os papéis dos protagonistas".

A desigualdade das trocas culturais entre a África e o "mundo desenvolvido"; a desvalorização e a homogeneização linguísticas; as causas das constantes guerras, o papel do Estado e das formas tradicionais de organização política para o fortalecimento das nações; a importância do conceito de identidade. Esses são alguns dos muitos temas discutidos em Para quando a África?. Retomarei parte deles na próxima postagem. Um, no entanto, considero fundamental: a defesa de uma outra ideia do que significa desenvolvimento. Escreve Ki-Zerbo:

"[...] é necessário tomar a decisão de reconhecer que é difícil classificar países pelo nível de desenvolvimento. É certo que a Ciência postula, exige mesmo a quantificação. Mas as coisas requintadas, refinadas, são realizadas em muitos países pobres do mundo. Pense na cozinha, no vestuário, no artesanato, na arte ou, ainda, na delicadeza e no refinamento das expressões de certas línguas: são coisas que tornam o homem perfeito, no plano humanista, mas que não podem ser tomadas em consideração na identificação ou na classificação do desenvolvimento".

* KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? : entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2009 [tradução de Carlos Aboim de Brito]

BG de Hoje

Esta era um banda que eu curtia muito nos anos 1990, quando era um fã xiita do rock pesado: SLAYER. Continuo escutando até hoje, mas sou agora (felizmente, acho) mais aberto a outros gêneros musicais. O nome da canção é Seasons in the abyss.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Adriana Falcão e Lia Neiva

(Adriana Falcão)

"Doze anos, oito meses e quinze dias é o tempo que se leva para dar a volta ao mundo procurando uma pessoa".
 Luna Clara & Apolo Onze - Adriana Falcão.

 
 
Outras duas excelentes obras voltadas para o público infanto-juvenil lidas recentemente foram Luna Clara & Apolo Onze* e Reis, viajantes e vampiros: aventuras ao redor do mundo**.

. . . . . .

A escritora Adriana Falcão já havia lançado, em 2001, um ótimo livro para crianças: Mania de explicação (premiado pela FNLIJ - Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil). Luna Clara & Apolo Onze, publicado logo depois, mantém o bom humor característico da autora. Mas também chamaram minha atenção neste livro as criativas alterações no tempo narrativo e as mudanças ligeiras de cena, destacando ora um, ora outro personagem (ou grupo de personagens). Aliás, a profusão destes anima e tonifica o texto. Adriana Falcão foge da linearidade pouco imaginativa que costuma afetar alguns livros escritos para crianças e adolescentes.

Luna Clara & Apolo Onze, entre outras coisas, fala do poder exercido em nossas vidas pelas coincidências (ação do acaso ou do destino, pouco importa). Nesse aspecto, é preciso atentar para o papel de certas velhinhas surgidas na narrativa (mas não vou revelar o segredo delas para não tirar o prazer do possível leitor).

Exemplos do bom humor do texto? Observe esta explicação do culto papagaio Pilhério, personagem do livro:

" - Por favor, Pilhério, o que vem a ser eufemismo?
  - É o ato de suavizar uma ideia substituindo a palavra ou expressão por outra mais agradável, mais polida.
  - Fiquei na mesma.
  - Eufemismo é em vez de se dizer que você é uma burra completa, dizer apenas que você é um pouco desprovida de inteligência, sua burra completa! - ele simplificava!"

Repare agora nesta tentativa de metaforização:

"A ponte oscilava de um lado para o outro como um pêndulo furioso, explicando melhor, como uma colher de pau batendo um bolo, explicando melhor ainda, como uma ponte frágil, feita de cordas e troncos balangando de um lado para o outro debaixo de uma tempestade".

Ou ainda as muitas "Nossas Senhoras" invocadas ao longo da história. Uma pequena mostra: Nossa Senhora do Falta Bem Pouquinho, Nossa Senhora do Preciso Urgentemente de Uma Boa Notícia, Nossa Senhora dos Amigos que Precisam da Gente, Nossa Senhora do Que é Que Eu Faço...

É para ler e curtir.

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Reis, viajantes e vampiros é de Lia Neiva, escritora habilidosíssima, que tem o saudável hábito de respeitar a inteligência das crianças e dos jovens para os quais escreve.

Neste livro, Neiva trata da(s) narrativa(s) por detrás das narrativas. Dizendo de outro modo: a autora relata os antecedentes históricos e o contexto cultural e geográfico relacionado a grandes obras da ficção universal, valendo-se de cinco personagens legendários: Robinson Crusoé, Rei Arthur, Drácula, o Máscara de Ferro e Simbad, O Marujo. "Conduzido pela prosa cativante e bem construída de Lia Neiva, o leitor atravessa diferentes períodos da História e da Literatura", como observa Maria Elizabeth Graça de Vasconcellos, no prefácio do livro.

Em minha opinião, entre os muitos méritos de Reis, viajantes e vampiros, destacaria dois deles: 1) o postscriptum ao final de cada capítulo, trazendo dados complementares e curiosidades relacionadas a cada uma das narrativas; 2) a maneira competente como a autora ajuda a qualificar as leituras do público jovem, uma vez que este trabalho de Lia Neiva é também um exercício de crítica literária.
 
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* FALCÃO, Adriana. Luna Clara & Apolo Onze. 2 ed. São Paulo: Salamandra, 2006 [ ilustrações de José Carlos Lollo]

** NEIVA, Lia. Reis, viajantes e vampiros: aventuras ao redor do mundo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008 [ilustrações de Iuri Lioi]

BG de Hoje

O Brasil tem tantas ótimas cantoras (e compositoras) que fica difícil destacar algumas delas. CÉU é uma das que mais gosto. Abaixo, Malemolência, apresentada no indispensável programa Ensaio, da TV Cultura.


terça-feira, 28 de setembro de 2010

Angela Lago e Selma Maria



Depois de um longo e tenebroso inverno, volto a escrever sobre Literatura Infantojuvenil - afinal, essa é a minha praia e parte do meu ganha-pão.

Sou suspeito para falar do trabalho de Angela Lago* - ilustradora e escritora de quem sou admirador há muito tempo - mas considero, até agora, Marginal à esquerda (Editora RHJ, 2009) o melhor livro que conheci neste ano, independentemente do gênero literário ou da categoria de publicação.

Para início de conversa, é um livro de temas fortes, em que há muita tristeza, contrariando certa imagem estereotipada da Literatura Infantojuvenil, na qual só caberiam amenidades. Fala de miséria, criminalidade, doença, mas também de esperança. A narradora, companheira de um traficante de drogas, conta a pequena-grande história do irmão caçula, cuja vida nunca mais será a mesma, graças ao contato com a Música.

O projeto gráfico é maravilhoso e, tentando reproduzir o falar das grandes periferias brasileiras, Angela Lago é precisa, exata, ampliando o impacto do que diz (levando-se em conta, aliás, o público principal ao qual o texto se destina):

"Mamãe adoeceu e largou o serviço. Zé Pita ofereceu uns duzentos, se não mais, para o Miúdo fazer um avião. Para levar uma brita. Uma pedra, crack".[...]
"E ele, Vivaldino-Miúdo, Marginal-à-esquerda, o saco, era quem buscava o remédio para a dor da mamãe. Morfina, um remédio que é droga também. E a morfina começou a acabar antes do tempo".[...]
"E os dois ainda culpavam o Miúdo. Desfaziam dele. Miúdo Vivaldino era virgem, era trouxa. Tocar violino: coisa de bicha. Um imprestável".

Faço questão de repetir: a melhor obra que li neste ano. E sobre a qual escreverei uma análise mais detida numa próxima postagem.

. . . . . .

Um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos (Editora Print House, 2009), reunião de poemas da arte-educadora Selma Maria, acompanhados de ilustrações de Anne Vidal, é também uma preciosidade. O título do livro lembra coisa do Manoel de Barros. Não à toa, o "poeta pantaneiro" comparece na orelha da publicação e nos diz que "as crianças quietas estão guardando os primeiros conhecimentos do mundo", corroborando o que diz a Psicologia, quando esta destaca a importância essencial do ato de brincar no desenvolvimento das pessoas.

Mas é Guimarães Rosa o autor onipresente, direta e indiretamente citado em todo o livro. Selma Maria realizou intenso trabalho de pesquisa nas cidades mineiras de Cordisburgo, Morro das Garças e Andrequicé. Ela nos diz que descobriu gostar "muito de brinquedo que [a] deixa quieta" e procurava meninos que tivessem esse jeito de brincar (como o Rosa menino). "E o que acabou acontecendo, sem querer na minha vida, foi que viajei lá longe, pelo sertão de Minas Gerais, para conhecer mais desses meninos. E os seus brinquedos".

Além da primeira seção de poemas do livro (Os brincares), destacaria também aquela denominada  Brinquedo-livro, na qual se encontra o poema Corpos:

"As pessoas usam o corpo para contar suas histórias.
Histórias não precisam de livros para existir.
Mas uma história pode se perder fora do livro
e ser encontrada dentro dos olhos do leitor".

Além da seção Brinquedo-terra, que tem o poema Bonecas

"Enrolando o dia e uns panos velhos numa raiz,
uma menina transforma uma mandioca
numa boneca com a cabeça cheia de minhoca".

Ótimos poemas. Ainda mais numa época em que a quietude é tão rara de se encontrar...
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* Conheça também o site da artista: http://www.angela-lago.com.br/

BG de Hoje

O vídeo de O que sobrou do céu, d'O RAPPA, sempre me deixa emocionado. Num país tão desigual quanto este, como tomar decisões que sejam moralmente acertadas? Acho que essa é uma das perguntas que se tenta responder na história paralela que acompanha a canção.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

"[...] revolução silenciosa chamada literatura"

Em conferência* que não chegou a proferir, Lima Barreto expõe, de maneira intensamente apaixonada, qual seria, para ele, a função da Literatura (disponível aqui). Em determinado trecho, o autor menciona Crime e Castigo, de F. Dostoiévski e se pergunta: "onde está a beleza dessa estranha obra?". Como encontrar algo belo - ou apreciável - num livro que trata, principalmente, das lucubrações atormentadas de um paupérrimo e desesperado estudante, responsável pela morte brutal de duas pessoas? Responde Lima Barreto:

"[A beleza] Está na manifestação sem auxílio dos processos habituais do romance, do caráter saliente da ideia que não há lógica nem rigor de raciocínio que justifiquem, perante nossa consciência, o assassinato, nem mesmo quando é perpretado no mais ínfimo e repugnante dos nossos semelhantes e tem por destino facilitar a execução de um nobre ideal; e mais: no ressumar de toda a obra que quem o pratica embora obedecendo a generalizações aparentemente verdadeiras, executado que seja o crime, logo se sente outro - não é ele mesmo".

Mas apenas esse mote, esse tema, não seriam suficientes para construir um livro invulgar. Prossegue Barreto:

"É preciso que esse argumento se transforme em sentimento; e a arte, literatura salutar, tem o poder de fazê-lo, de transformar a ideia, o preceito, a regra em sentimento; e mais do que isso, torná-lo assimilável à memória, de incorporá-lo ao leitor, em auxílio de seus recursos próprios, em auxílio de sua técnica".

E acrescenta:

"É verificado por todos nós que, quando acabamos de ler um livro verdadeiramente artístico, convencemo-nos de que já havíamos sentido a sensação que o outro nos transmitiu e pensado no assunto".

Para o escritor carioca, a arte literária contribui para que não se esgarce de vez a tão precária solidariedade humana. Ele considera que

"Ela [a arte literária] sempre fez baixar das altas regiões das abstrações da Filosofia e das inacessíveis revelações da Fé, para torná-las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e interessam a perfeição da nossa sociedade; ela explicou e explica a dor dos humildes aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, uns aos outros, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais dispersas épocas, das mais divergentes raças, ela se apieda tanto do criminoso, do vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à guilhotina; ela, não cansada de ligar as nossas almas, umas às outras, ainda nos liga à árvore, à flor, ao cão, ao rio, ao mar e à estrela inacessível; ela nos faz compreender o Universo, a Terra, Deus e o Mistério que nos cerca, para o qual abre perspectivas infinitas de sonhos e altos desejos".

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O título desta postagem foi extraído de um pequeno artigo escrito pelo filósofo francês Jacques Rancière** e que analisa também Crime e Castigo.

Dostoiévski é, segundo o filósofo, um representante exemplar "dessa revolução silenciosa chamada literatura". E como se dá essa revolução?

Com Dostoiévski (tal como Balzac, Proust, Faulkner, Italo Svevo, Virginia Woolf, entre tantos outros) houve uma equivalência entre a ordem e a desordem, entre a razão e a desrazão, entre o ser ativo e o ser passivo, nessa complexidade partilhada pela humanidade e que chamamos simplesmente de vida, de acordo com Rancière. Para ele, as intrigas de Crime e Castigo (e de centenas de outras narrativas literárias) indicam

"[...] essa nova maneira de praticar a arte da escrita que se chama literatura e que se manifesta na igualdade dos episódios importantes ou ' insignificantes ', sonhados ou reais, num ritmo feito de estiramentos indefinidos ou de acelerações fulminantes".

Um personagem excepcional como Raskólnikov é movido "apenas por intensidades nômades", por "febres, impulsos e acasos", nos lembra o filósofo. Entretanto, no mundo contemporâneo, não somos todos um pouco assim?

Se há alguma função política e/ou revolucionária na Literatura - e acredito que há - esta reside na sua capacidade de concentrar, num conjunto de palavras pré-ordenadas e organizadas, altas doses de sensações, sentimentos e emoções, das quais podemos nos valer, experimentando outros modos de viver e pensar, diferentes do ordinário a que estamos acostumados.
___________
* BARRETO, Lima. O Destino da Literatura. In: _____________. Lima Barreto. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico por Antônio Arnoni Prado) [Coleção Literatura Comentada]

** RANCIÈRE, Jacques. De um Dostoiévski a outro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 mai. 2001, Caderno Mais!, p. 10-11

BG de Hoje

Acho essa versão acústica (a gravação original é da banda The Knife) simples e lindíssima: JOSÉ GONZÁLEZ, Heartbeats.